França, Croácia e Brasil: as seleções e as sociedades
A seleção francesa é mais igualitária. Na seleção brasileira, o sincretismo é o campo fértil no qual se geraram os maiores talentos do futebol
Da Redação
Publicado em 19 de julho de 2018 às 13h14.
Última atualização em 19 de julho de 2018 às 15h42.
A vitória da seleção francesa na Copa serviu também para uma celebração de valores. Quem ganhou não foi apenas um time, mas uma certa visão do que a sociedade pode ser. Não escapou a ninguém que a equipe é formada majoritariamente por sobrenomes e peles cuja origem não é francesa. São todos franceses – a maioria ali, inclusive, de nascidos na França –, mas refletem a sociedade plural que a França busca construir, incluindo todos dentro de um mesmo conceito: o de cidadão.
Desde 1789 – com algumas idas e voltas no meio do caminho – a França é fundada sobre uma ideia fundamental: a igualdade radical perante a lei. Para essa ideologia oficial, é como se as diferenças de raça e de religião fossem irrelevantes; ou até mesmo inexistentes. Todo cidadão francês é igual e sequer perguntar algo além disso já é uma atitude suspeita, que pode trazer de volta as diferenciações sociais contra as quais a Revolução se insurgiu. A humanidade fala mais alto do que os diversos subgrupos que a compõem.
Dessa maneira, a França era a seleção europeia com maior número de africanos e de muçulmanos, mas todos ali são igualmente franceses. Essa identidade serve para mascarar também preconceitos e diferenças que continuam a existir sob o discurso oficial, mas ele ainda assim dá o norte da cultura. Pessoas bastante diferentes são unidas, pela força da ideologia, em um só povo.
Do outro lado, estava a Croácia, que é quase o oposto disso: é um país definido pelo que há de mais estreito e paroquial: a etnia. Olhando apenas a aparência física, é impossível sequer distinguir um croata de um sérvio ou de um bósnio. E, mesmo assim, se odeiam de morte, e grande parte da história de suas nações consiste na luta para dominar ou para se libertar da dominação. Aqui, pessoas praticamente iguais se dividem em diversos povos.
Por isso, os jogadores croatas dão mostras de um nacionalismo orgulhoso que choca pessoas vindas de outros contextos. Não quer dizer que defendam qualquer tipo de genocídio ou mesmo dominação de povos vizinhos; é apenas que, para eles, a afirmação constante da própria identidade – que os distingue daqueles ao seu redor – foi um dos elementos que garantiram sua sobrevivência nos piores momentos.
A Croácia é uma nação baseada nos traços culturais do passado remoto. A França, no multiculturalismo sustentado por uma ideologia civil comum. O Brasil, nessa lógica, aparece como um terceiro modelo. As características culturais e raciais não nos definem: brancos e negros de várias origens, japoneses, árabes, cristãos, judeus, muçulmanos, espíritas e religiões afro: todos são igualmente brasileiros.
Ao mesmo tempo, não há uma ideologia oficial que vise criar a igualdade apagando à força todas as diferenças. Aqui, a unidade é forjada pela mistura espontânea, de baixo para cima, dos elementos díspares. Essa mistura se dá em meio a muita violência e injustiças, mas é guiada pela sociabilidade e sensualidade que movem os indivíduos, acima de quaisquer sentimentos coletivistas de raça, religião ou origem.
A Croácia é uma nação unitária, que busca preservar sua identidade histórica e vê com receio grandes influxos migratórios. O time inteiro tem nomes e feições similares. A França é uma nação multicultural, em que todos os jogadores podem ser franceses mas têm suas origens familiares claramente marcadas. Em um país multicultural, diversas culturas existem lado a lado. E o Brasil, por fim, é uma nação sincrética, na qual impera a mistura. O branco e o negro se fundem em um degradé indistinto, e os caracteres culturais se misturam de maneira irreverente para criar novas sínteses.
Nos times, isso existe com mais perfeição do que nas sociedades. A seleção francesa é mais igualitária e tem melhor convivência do que a sociedade francesa, como se viu nos protestos destrutivos na noite da vitória; por baixo da ideologia oficial, o ódio coletivista – de um tipo similar ao que produziu tantas guerras nos Balcãs – permanece. A seleção brasileira é mais misturada – mais próxima de uma autêntica democracia racial – do que a sociedade brasileira, na qual a hierarquia social ainda se correlaciona com a cor da pele.
Apesar da longa seca, o sincretismo brasileiro é o campo fértil no qual se geraram os maiores talentos do futebol, jogado com graça e alegria. Acredito que isso guarde alguma lição civilizacional. A resposta para os conflitos que dividem os povos e promovem o ódio não está na criação de uma ideologia uniformizante, mas na mistura que ocorre quando as pessoas se veem livres para se relacionar buscando a alegria e o prazer.
A vitória da seleção francesa na Copa serviu também para uma celebração de valores. Quem ganhou não foi apenas um time, mas uma certa visão do que a sociedade pode ser. Não escapou a ninguém que a equipe é formada majoritariamente por sobrenomes e peles cuja origem não é francesa. São todos franceses – a maioria ali, inclusive, de nascidos na França –, mas refletem a sociedade plural que a França busca construir, incluindo todos dentro de um mesmo conceito: o de cidadão.
Desde 1789 – com algumas idas e voltas no meio do caminho – a França é fundada sobre uma ideia fundamental: a igualdade radical perante a lei. Para essa ideologia oficial, é como se as diferenças de raça e de religião fossem irrelevantes; ou até mesmo inexistentes. Todo cidadão francês é igual e sequer perguntar algo além disso já é uma atitude suspeita, que pode trazer de volta as diferenciações sociais contra as quais a Revolução se insurgiu. A humanidade fala mais alto do que os diversos subgrupos que a compõem.
Dessa maneira, a França era a seleção europeia com maior número de africanos e de muçulmanos, mas todos ali são igualmente franceses. Essa identidade serve para mascarar também preconceitos e diferenças que continuam a existir sob o discurso oficial, mas ele ainda assim dá o norte da cultura. Pessoas bastante diferentes são unidas, pela força da ideologia, em um só povo.
Do outro lado, estava a Croácia, que é quase o oposto disso: é um país definido pelo que há de mais estreito e paroquial: a etnia. Olhando apenas a aparência física, é impossível sequer distinguir um croata de um sérvio ou de um bósnio. E, mesmo assim, se odeiam de morte, e grande parte da história de suas nações consiste na luta para dominar ou para se libertar da dominação. Aqui, pessoas praticamente iguais se dividem em diversos povos.
Por isso, os jogadores croatas dão mostras de um nacionalismo orgulhoso que choca pessoas vindas de outros contextos. Não quer dizer que defendam qualquer tipo de genocídio ou mesmo dominação de povos vizinhos; é apenas que, para eles, a afirmação constante da própria identidade – que os distingue daqueles ao seu redor – foi um dos elementos que garantiram sua sobrevivência nos piores momentos.
A Croácia é uma nação baseada nos traços culturais do passado remoto. A França, no multiculturalismo sustentado por uma ideologia civil comum. O Brasil, nessa lógica, aparece como um terceiro modelo. As características culturais e raciais não nos definem: brancos e negros de várias origens, japoneses, árabes, cristãos, judeus, muçulmanos, espíritas e religiões afro: todos são igualmente brasileiros.
Ao mesmo tempo, não há uma ideologia oficial que vise criar a igualdade apagando à força todas as diferenças. Aqui, a unidade é forjada pela mistura espontânea, de baixo para cima, dos elementos díspares. Essa mistura se dá em meio a muita violência e injustiças, mas é guiada pela sociabilidade e sensualidade que movem os indivíduos, acima de quaisquer sentimentos coletivistas de raça, religião ou origem.
A Croácia é uma nação unitária, que busca preservar sua identidade histórica e vê com receio grandes influxos migratórios. O time inteiro tem nomes e feições similares. A França é uma nação multicultural, em que todos os jogadores podem ser franceses mas têm suas origens familiares claramente marcadas. Em um país multicultural, diversas culturas existem lado a lado. E o Brasil, por fim, é uma nação sincrética, na qual impera a mistura. O branco e o negro se fundem em um degradé indistinto, e os caracteres culturais se misturam de maneira irreverente para criar novas sínteses.
Nos times, isso existe com mais perfeição do que nas sociedades. A seleção francesa é mais igualitária e tem melhor convivência do que a sociedade francesa, como se viu nos protestos destrutivos na noite da vitória; por baixo da ideologia oficial, o ódio coletivista – de um tipo similar ao que produziu tantas guerras nos Balcãs – permanece. A seleção brasileira é mais misturada – mais próxima de uma autêntica democracia racial – do que a sociedade brasileira, na qual a hierarquia social ainda se correlaciona com a cor da pele.
Apesar da longa seca, o sincretismo brasileiro é o campo fértil no qual se geraram os maiores talentos do futebol, jogado com graça e alegria. Acredito que isso guarde alguma lição civilizacional. A resposta para os conflitos que dividem os povos e promovem o ódio não está na criação de uma ideologia uniformizante, mas na mistura que ocorre quando as pessoas se veem livres para se relacionar buscando a alegria e o prazer.