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Existe certo e errado na hora de derrubar uma estátua?

Não é porque algo foi erguido que ele tem que continuar ali pela eternidade. Mas cabe perguntar: o que merece ser derrubado?

 (Matthew Childs/Reuters)
(Matthew Childs/Reuters)
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Joel Pinheiro da Fonseca

Publicado em 13 de junho de 2020 às, 09h20.

Última atualização em 13 de junho de 2020 às, 09h22.

Erigir estátuas é um jeito de homenagear herois do passado, pessoas cuja contribuição em algum aspecto da vida nacional ou local merece ser lembrada. Elas funcionam como lembretes da história para quem passa e uma seleção de valores da sociedade. Tanto construir quanto derrubar estátuas é parte da vida de uma sociedade. Não é porque algo foi erguido que ele tem que continuar ali pela eternidade. Mas cabe perguntar: o que merece ser derrubado? E o que deveria se tolerado?

Se adotarmos como crivo a adesão perfeita aos valores da nossa época, então nenhuma estátua ou memorial de herói passado ficará de pé. Talvez um ou outro intelectual ou figura sem grande relevância na sociedade, e olhe lá!

Uma pergunta crucial é: por que a pessoa é homenageada? É por suas virtudes ou por seus defeitos? Uma estátua de Hitler exalta características odiosas da supremacia racial e do culto à força. Já uma do Padre Vieira (que foi alvo de pichação em Salvador), não.

O Padre Antônio Vieira é lembrado acima de tudo como o imperador de nossa língua. Além disso, teve também um papel político relativamente positivo como defensor dos judeus e cristãos-novos em Portugal e da liberdade dos indígenas no Brasil. Defendeu também a escravidão de africanos; um tema lateral em seus sermões e em sua vida, no qual ele aliás em nada influiu, e no que ele não diferia de nenhum outro português ou brasileiro.

Edward Colston, cuja estátua foi derrubada em Bristol, é homenageado por ter feito muitas obras de caridade em sua cidade. Ele foi um grande comerciante, que entre outros negócios participou da Royal African Company, empresa inglesa de tráfico de escravos, numa época em que portugueses, espanhóis (e brasileiros!) já dominavam o setor. Mas não é por isso - uma falha moral própria da época, e não particular dele - que ele é lembrado e homenageado.

Outra pergunta: os vícios da figura foi a participação em males tolerados ou até aceitos em sua época ou há grandes atos terríveis que o distinguem de seus semelhantes e se destacam muito acima de qualquer boa ação que ele tenha praticado? O imperador Leopoldo II, da Bélgica, governou o Congo belga com um regime de terror que possivelmente superou os horrores de Hitler e Stalin. Mesmo em seu tempo foi denunciado pelos crimes contra a humanidade. A derrubada de sua estátua em Antuérpia parece bem apropriada.

Já o genocídio dos romanos contra a cidade de Cartago não era visto como algo fora dos padrões da guerra de sua época. Catão, o Velho, senador romano que mais fez campanha pela destruição total de Cartago, não precisa ser julgado da mesma maneira. E homenagens a ele - que teve diversos méritos e cuja importância para Roma é inequívoca - não significa compactuar com genocídio. Estátuas públicas de Júlio César e de Augusto continuam a adornar Roma. Para os padrões de hoje, ambos seriam criminosos.

Mesmo no caso de pessoas cujo legado não gostamos, podemos reconhecer a relevância de memoriais e estátuas. Lênin inaugurou um regime monstruoso na Rússia. Ao mesmo tempo, foi inegavelmente um revolucionário de grande coragem - e também bastante cruel - e representou, para muita gente, os ideais de igualdade e solidariedade entre os povos, ainda que tenham sido traídos pelo futuro da URSS. Aqui no Brasil, Getúlio foi um ditador autoritário, chegando inclusive a flertar com a Alemanha nazista. Mas é por isso que ele recebe homenagens, memoriais e nomeia instituições? Não, e sim por sua preocupação com os trabalhadores e com seu projeto de grandeza econômica e cultural para o Brasil.

Povos americanos, povos africanos, povos europeus: todos sempre viveram sob a lógica da dominação. A escravidão fazia parte disso. Essa tem sido a regra em toda história humana. Se, hoje, conseguimos abolir a escravidão mundialmente (ela persiste residualmente, no entanto, à revelia da lei) e se a ação militar se encontra mais regrada, isso foi uma conquista lenta e ainda inacabada. Escravidão, colonialismo, racismo, dominação; estamos um pouco melhores que nossos antepassados nestes quesitos, mas isso não nos deveria impedir de homenagear os grandes personagens do passado, que nos servem de exemplo em diversos outros. Assim como, no futuro, não será justo julgar nosso tempo por valores que ainda nem existem.

Uma nação é fruto de forças e personagens muitas vezes antagônicos. Ambos compostos de bem e mal. A Inglaterra sabe honrar Henrique VIII e Thomas More; Oliver Cromwell e Carlos I. Todos têm espaço na memória coletiva e homenagens visíveis. Aqui no Brasil, nada nos impede de honrar Borba Gato e Zumbi; ambos homens e portanto com sua cota de defeitos. Tempos brutais produziam homens brutais; e é graças a eles que nosso país existe. É possível admirar cada um e respeitar quem admira os outros, sabendo que o que está sendo admirado não são os males que fizeram, mas as virtudes que tiveram ou que vieram a representar em nossa construção.Erigir estátuas é um jeito de homenagear herois do passado, pessoas cuja contribuição em algum aspecto da vida nacional ou local merece ser lembrada. Elas funcionam como lembretes da história para quem passa e uma seleção de valores da sociedade. Tanto construir quanto derrubar estátuas é parte da vida de uma sociedade. Não é porque algo foi erguido que ele tem que continuar ali pela eternidade. Mas cabe perguntar: o que merece ser derrubado? E o que deveria se tolerado?

Se adotarmos como crivo a adesão perfeita aos valores da nossa época, então nenhuma estátua ou memorial de herói passado ficará de pé. Talvez um ou outro intelectual ou figura sem grande relevância na sociedade, e olhe lá!

Uma pergunta crucial é: por que a pessoa é homenageada? É por suas virtudes ou por seus defeitos? Uma estátua de Hitler exalta características odiosas da supremacia racial e do culto à força. Já uma do Padre Vieira (que foi alvo de pichação em Salvador), não.

O Padre Antônio Vieira é lembrado acima de tudo como o imperador de nossa língua. Além disso, teve também um papel político relativamente positivo como defensor dos judeus e cristãos-novos em Portugal e da liberdade dos indígenas no Brasil. Defendeu também a escravidão de africanos; um tema lateral em seus sermões e em sua vida, no qual ele aliás em nada influiu, e no que ele não diferia de nenhum outro português ou brasileiro.

Edward Colston, cuja estátua foi derrubada em Bristol, é homenageado por ter feito muitas obras de caridade em sua cidade. Ele foi um grande comerciante, que entre outros negócios participou da Royal African Company, empresa inglesa de tráfico de escravos, numa época em que portugueses, espanhóis (e brasileiros!) já dominavam o setor. Mas não é por isso - uma falha moral própria da época, e não particular dele - que ele é lembrado e homenageado.

Outra pergunta: os vícios da figura foi a participação em males tolerados ou até aceitos em sua época ou há grandes atos terríveis que o distinguem de seus semelhantes e se destacam muito acima de qualquer boa ação que ele tenha praticado? O imperador Leopoldo II, da Bélgica, governou o Congo belga com um regime de terror que possivelmente superou os horrores de Hitler e Stalin. Mesmo em seu tempo foi denunciado pelos crimes contra a humanidade. A derrubada de sua estátua em Antuérpia parece bem apropriada.

Já o genocídio dos romanos contra a cidade de Cartago não era visto como algo fora dos padrões da guerra de sua época. Catão, o Velho, senador romano que mais fez campanha pela destruição total de Cartago, não precisa ser julgado da mesma maneira. E homenagens a ele - que teve diversos méritos e cuja importância para Roma é inequívoca - não significa compactuar com genocídio. Estátuas públicas de Júlio César e de Augusto continuam a adornar Roma. Para os padrões de hoje, ambos seriam criminosos.

Mesmo no caso de pessoas cujo legado não gostamos, podemos reconhecer a relevância de memoriais e estátuas. Lênin inaugurou um regime monstruoso na Rússia. Ao mesmo tempo, foi inegavelmente um revolucionário de grande coragem - e também bastante cruel - e representou, para muita gente, os ideais de igualdade e solidariedade entre os povos, ainda que tenham sido traídos pelo futuro da URSS. Aqui no Brasil, Getúlio foi um ditador autoritário, chegando inclusive a flertar com a Alemanha nazista. Mas é por isso que ele recebe homenagens, memoriais e nomeia instituições? Não, e sim por sua preocupação com os trabalhadores e com seu projeto de grandeza econômica e cultural para o Brasil.

Povos americanos, povos africanos, povos europeus: todos sempre viveram sob a lógica da dominação. A escravidão fazia parte disso. Essa tem sido a regra em toda história humana. Se, hoje, conseguimos abolir a escravidão mundialmente (ela persiste residualmente, no entanto, à revelia da lei) e se a ação militar se encontra mais regrada, isso foi uma conquista lenta e ainda inacabada. Escravidão, colonialismo, racismo, dominação; estamos um pouco melhores que nossos antepassados nestes quesitos, mas isso não nos deveria impedir de homenagear os grandes personagens do passado, que nos servem de exemplo em diversos outros. Assim como, no futuro, não será justo julgar nosso tempo por valores que ainda nem existem.

Uma nação é fruto de forças e personagens muitas vezes antagônicos. Ambos compostos de bem e mal. A Inglaterra sabe honrar Henrique VIII e Thomas More; Oliver Cromwell e Carlos I. Todos têm espaço na memória coletiva e homenagens visíveis. Aqui no Brasil, nada nos impede de honrar Borba Gato e Zumbi; ambos homens e portanto com sua cota de defeitos. Tempos brutais produziam homens brutais; e é graças a eles que nosso país existe. É possível admirar cada um e respeitar quem admira os outros, sabendo que o que está sendo admirado não são os males que fizeram, mas as virtudes que tiveram ou que vieram a representar em nossa construção.