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Espaço público e espaço privado nas grandes cidades

Sou crítico de diversos aspectos da gestão de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo, que se encerrou no ano passado. Contudo, em um aspecto a direção do movimento que ele ajudou a imprimir à cidade (que não foi inteiramente criado por ele) me parece muito positiva: a revitalização das ruas como um espaço de […]

BECO DO BATMAN: mais diálogo pode derrubar ódios e preconceitos, e com alguma negociação desfechos mutuamente benéficos podem surgir / Rogerio Albuquerque/ Veja
DR

Da Redação

Publicado em 13 de abril de 2017 às 11h57.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h33.

Sou crítico de diversos aspectos da gestão de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo, que se encerrou no ano passado. Contudo, em um aspecto a direção do movimento que ele ajudou a imprimir à cidade (que não foi inteiramente criado por ele) me parece muito positiva: a revitalização das ruas como um espaço de convivência. Andar pela rua, encontrar pessoas, ter uma relação mais natural com a vizinhança – o que inclusive a torna mais segura. Houve ainda uma medida que encontrou resistência mas que também caminha na mesma direção: flexibilizar os zoneamentos da cidade, aproximando residência, comércio e serviços. Tudo que nos leve a uma existência mais urbana, intensa e afeita a pedestres, eu gosto. Tudo que nos aproxima do protótipo da “cidade” americana desde o pós-guerra, subúrbios distantes conectados a strip malls por verdadeiras estradas, eu rejeito.

Dito isso, o uso do espaço público também gera sua dose de problemas, e não é trivial pensar numa solução. Os conflitos oriundos das novas possibilidades são mais agudos justamente no coração geográfico da ideologia que Haddad representava: a Vila Madalena, bairro caro da Zona Oeste que concentra intelectuais, artistas e boêmios de maneira geral.

Nas últimas semanas, dois casos têm gerado algum comoção. O primeiro envolve um muro do chamado “beco do Batman”, um trecho de rua cujos muros estão todos plenamente grafitados, dando um aspecto pitoresco ao lugar, que virou um ponto de parada artístico e turístico.

Ligado a isso, todo fim-de-semana a rua é tomada por grafiteiros, visitantes e comércio de rua. Para quem frequenta é excelente. Para quem mora ali, nem tanto. Em reação à falta de sossego a que tem sido submetido, o aposentado João Batista da Silva, dono de um dos muros que compõem o beco, resolveu pintá-lo todo de cinza, apagando o grafite.

Ao mesmo tempo, perto dali o jornalista Gilberto Dimenstein comanda o Armazém da Cidade, uma iniciativa cultural que promove colóquios, debates, performances, vende bebida, etc. Desde a gestão Haddad, conseguiu permissão para fechar a rua durante os domingos. Para os frequentadores, é ótimo. Para quem mora ali, nem tanto.

Mobilizações da direita – que na minha opinião foram bastante imaturas – criaram um clima acusatório e polarizado na hora de tratar a questão. Apesar de todo o barulho, há questões reais e muito relevantes.

Um espaço público vivo é algo excelente. Mas o que ocorre no espaço público vaza para os espaços privados que lhe são contíguos. O morador não tem direito a silêncio, ou a poder entrar e sair de carro do seu portão? Por que eu não posso fechar o portão de uma casa com meus amigos mas um “espaço cultural” pode?

Há também questões ligadas ao próprio uso de um espaço público. Achar que é usado “por todos” é sempre ilusório. São alguns que o utilizam, a exclusão de outros. A população inteira da cidade não cabe ali. Algo determina quem vai e quem não vai. Até que ponto a fama e proximidade do idealizados com o prefeito determinou o privilégio dele de poder fechar a rua naquele ponto? Se ao invés de espaço cultural, o evento semanal na Vila Madalena fosse um culto evangélico, seria tratado de maneira diferente pelos que agora se entusiasmam com a “ocupação dos espaços públicos”?

Toda solução final, dada de cima para baixo, será muito imperfeita. Garantir sempre o direito dos moradores mataria diversas manifestações valiosas – inclusive carnaval, procissões religiosas, etc. Dar a alguns o direito de fechar ruas aos domingos é um exercício pessoal do poder. E dar a permissão a todos que atingirem alguns requisitos técnicos é tornar praticamente toda e qualquer vizinhança refém de grupos organizados que queiram “ocupá-la”.

Idealmente, mais diálogo pode derrubar ódios e preconceitos, e com alguma negociação desfechos mutuamente benéficos podem surgir. João Batista da Silva, olhando o moro cinza, decidiu que grafitado era mais bonito, e vai chamar artistas para recolori-lo. É fora de cogitação imaginar que, depois de algum diálogo para baixar os ânimos, moradores aceitem um centro cultural aos domingos se receberem algo em troca dos organizadores? Com mais perguntas do que soluções, vivemos os dilemas de um Brasil mais urbano e que, ao invés de imitar soluções antigas, pode criar novas realidades.

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Sou crítico de diversos aspectos da gestão de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo, que se encerrou no ano passado. Contudo, em um aspecto a direção do movimento que ele ajudou a imprimir à cidade (que não foi inteiramente criado por ele) me parece muito positiva: a revitalização das ruas como um espaço de convivência. Andar pela rua, encontrar pessoas, ter uma relação mais natural com a vizinhança – o que inclusive a torna mais segura. Houve ainda uma medida que encontrou resistência mas que também caminha na mesma direção: flexibilizar os zoneamentos da cidade, aproximando residência, comércio e serviços. Tudo que nos leve a uma existência mais urbana, intensa e afeita a pedestres, eu gosto. Tudo que nos aproxima do protótipo da “cidade” americana desde o pós-guerra, subúrbios distantes conectados a strip malls por verdadeiras estradas, eu rejeito.

Dito isso, o uso do espaço público também gera sua dose de problemas, e não é trivial pensar numa solução. Os conflitos oriundos das novas possibilidades são mais agudos justamente no coração geográfico da ideologia que Haddad representava: a Vila Madalena, bairro caro da Zona Oeste que concentra intelectuais, artistas e boêmios de maneira geral.

Nas últimas semanas, dois casos têm gerado algum comoção. O primeiro envolve um muro do chamado “beco do Batman”, um trecho de rua cujos muros estão todos plenamente grafitados, dando um aspecto pitoresco ao lugar, que virou um ponto de parada artístico e turístico.

Ligado a isso, todo fim-de-semana a rua é tomada por grafiteiros, visitantes e comércio de rua. Para quem frequenta é excelente. Para quem mora ali, nem tanto. Em reação à falta de sossego a que tem sido submetido, o aposentado João Batista da Silva, dono de um dos muros que compõem o beco, resolveu pintá-lo todo de cinza, apagando o grafite.

Ao mesmo tempo, perto dali o jornalista Gilberto Dimenstein comanda o Armazém da Cidade, uma iniciativa cultural que promove colóquios, debates, performances, vende bebida, etc. Desde a gestão Haddad, conseguiu permissão para fechar a rua durante os domingos. Para os frequentadores, é ótimo. Para quem mora ali, nem tanto.

Mobilizações da direita – que na minha opinião foram bastante imaturas – criaram um clima acusatório e polarizado na hora de tratar a questão. Apesar de todo o barulho, há questões reais e muito relevantes.

Um espaço público vivo é algo excelente. Mas o que ocorre no espaço público vaza para os espaços privados que lhe são contíguos. O morador não tem direito a silêncio, ou a poder entrar e sair de carro do seu portão? Por que eu não posso fechar o portão de uma casa com meus amigos mas um “espaço cultural” pode?

Há também questões ligadas ao próprio uso de um espaço público. Achar que é usado “por todos” é sempre ilusório. São alguns que o utilizam, a exclusão de outros. A população inteira da cidade não cabe ali. Algo determina quem vai e quem não vai. Até que ponto a fama e proximidade do idealizados com o prefeito determinou o privilégio dele de poder fechar a rua naquele ponto? Se ao invés de espaço cultural, o evento semanal na Vila Madalena fosse um culto evangélico, seria tratado de maneira diferente pelos que agora se entusiasmam com a “ocupação dos espaços públicos”?

Toda solução final, dada de cima para baixo, será muito imperfeita. Garantir sempre o direito dos moradores mataria diversas manifestações valiosas – inclusive carnaval, procissões religiosas, etc. Dar a alguns o direito de fechar ruas aos domingos é um exercício pessoal do poder. E dar a permissão a todos que atingirem alguns requisitos técnicos é tornar praticamente toda e qualquer vizinhança refém de grupos organizados que queiram “ocupá-la”.

Idealmente, mais diálogo pode derrubar ódios e preconceitos, e com alguma negociação desfechos mutuamente benéficos podem surgir. João Batista da Silva, olhando o moro cinza, decidiu que grafitado era mais bonito, e vai chamar artistas para recolori-lo. É fora de cogitação imaginar que, depois de algum diálogo para baixar os ânimos, moradores aceitem um centro cultural aos domingos se receberem algo em troca dos organizadores? Com mais perguntas do que soluções, vivemos os dilemas de um Brasil mais urbano e que, ao invés de imitar soluções antigas, pode criar novas realidades.

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