É legítimo bater em nazistas?
Maoísmo, stalinismo e outras variantes recebem tratamento benigno, embora tenham sido tão destrutivos quanto o nazismo
Da Redação
Publicado em 16 de agosto de 2017 às 11h35.
Última atualização em 2 de junho de 2020 às 09h52.
Foi um grande mal para a nossa cultura erigir o nazismo e seus símbolos numa espécie de mal absoluto encarnado. Não porque ele tenha algo de positivo ou meritório, mas porque essa identificação nos impede de reconhecer fenômenos semelhantes. Basta que a coloração mude um pouquinho, e tratamos algo que é, em essência, igual ao nazismo, como se fosse algo muito menos grave. Maoísmo, stalinismo e outras variantes recebem tratamento muito mais benigno, embora tenham sido tão destrutivos quanto a Alemanha nazista.
O grande perigo para uma sociedade de leis e de liberdades individuais é o totalitarismo, um fenômeno antigo (que recebia, na filosofia clássica, o nome de tirania) e que pode vir em muitas diferentes roupagens. Em todas elas, o discurso e os símbolos (aquilo que chamo de coloração ideológica) servem como disfarces para o que é, em essência, a concentração absoluta do poder nas mão de um pequeno grupo ou de um indivíduo.
Como todo poder, ele consiste na disposição de uma grande quantidade de pessoas a obedecer qualquer ordem sua, inclusive no que diz respeito à vida e à morte de outras pessoas. Essa massa obediente é mantida no cabresto pelo poder da ideologia dominante, que passa a constituir parte de sua identidade enquanto povo. Invariavelmente, essa identidade se opõe a inimigos externos e internos.
O conteúdo específico da ideologia totalitária importa pouco; ele modula alguns aspectos de uma experiência que é sempre a mesma em todo lugar. Determina, por exemplo, quem é o inimigo da vez (judeus, burgueses, nobres, negros, especuladores, fazendeiros individuais, etc.). Mas, via de regra, o discurso tolera quase tudo. Lembremos que Stalin foi capaz de fazer o socialismo soviético se tornar nacionalista e ainda apoiar a família tradicional e até se reconciliar com a religião russo-ortodoxa, o oposto de tudo que seu antecessor, Lenin, ensinara.
O nazismo nos é particularmente odioso porque tem como elemento central o racismo, e nossa cultura tem ainda a memória clara dos males do ódio racial. Contudo, isso é a cereja do bolo ideológico, um elemento da roupagem exterior, que mais esconde do que revela a natureza do regime, que não é algo especial e novo na história da humanidade, mas apenas mais uma versão de totalitarismo.
Pouco se aprende sobre a realidade social dos diversos totalitarismos lendo a literatura que seus líderes e intelectuais deixaram, palavras pensadas para manipular as massas, e não compreender a realidade nem propor um sistema universalizável. Tudo ali muda conforme o sabor da expediência política. No final das contas, com ódio de raça, de classe ou o que quer que seja, os totalitarismos matam quanto podem.
Não é contabilizando mortos que chegaremos ao ranking das ideologias mais nefastas (nesse quesito, é provável que China ou Camboja liderem); é só uma questão de ocasião. E praticamente qualquer base doutrinária pode ser devidamente transformada para apoiar um projeto totalitário. Na medida que a crença numa doutrina leva a pessoa a obedecer cegamente a um líder tido como seu representante, as bases estão dadas.
Voltemos ao presente. Marchas neonazistas em Charlottesville, nos EUA. Geram uma justificada repugnância em qualquer ser humano minimamente racional. Mas se deixamos as particularidades ideológicas de lado, o que temos? Uma tribo de jovens em busca de uma identidade coletiva e desejosos de inimigos para validá-la. Em que os tais grupos “antifas” (de “ antifascistas ”) que se organizam para bater e matar neonazistas, se diferenciam deles? Em muito pouco, quase nada.
Fiquei surpreso quando, aqui no Brasil (Osasco), em fins de julho, vi a notícia de um assassinato de um tatuador neonazista na periferia de São Paulo foi comemorada por diversos jovens desses grupos supostamente anti-fascistas. Seus integrantes mostravam o mesmo desejo de construir uma identidade grupal ao redor de certos símbolos, narrativas e mitos.
Viam-se como descendentes de soldados soviéticos da Segunda Guerra; alguns chegavam a adotar nomes russos em seus perfis de rede social. Um verdadeiro cosplay político, com a diferença de que eles acreditavam ser os personagens de sua fantasia. Descreviam sua luta contra os nazistas como se fosse parte de um esforço de guerra real, quando na verdade não passam de quebra-quebra de tribos urbanas.
Levar a sério suas ideologias é o mesmo que levar a sério as crenças de skatistas e clubbers que se batiam lá em meados dos anos 90. Eles não estão em uma cruzada contra um exército; são uma tribo bastante fanatizada à procura de um inimigo à sua altura. O mal do totalitarismo e da violência tribal não são oriundos do conteúdo ideológico; este é um elemento identitário, assim como as roupas e os cortes de cabelo, e não a origem do mal a que estão ligados. Levar a sério esses discursos apenas os fortalece, assim como criar grupos com a finalidade específica de combatê-los nas ruas. A existência de um inimigo a se combater é o maior atrator possível. Ninguém torce para time que não tem rival.
Acreditamos que o nazismo é o mal absoluto, dando passe livre para todos os outros discursos totalitários. Também julgamos as pessoas mais pelas ideias dentro da cabeça delas do que pelos atos para com seus semelhantes. O sujeito pode ser um canalha, mas se agir imbuído de uma ideologia considerada boa, é no máximo um nobre equivocado. E o sujeito pode ser uma pessoa decente, mas se tiver uma crença má, é o demônio na terra.
Para a vida em sociedade, não é assim. Muito mais importante do que a roupagem ideológica, é até onde a pessoa está disposta a se entregar aos ditamos da tribo. É isso que determinará se vivemos em um mundo de leis e liberdade individual ou num inferno totalitários. Se você literalmente acha que violência contra nazistas é algo positivo, você está contribuindo para produzir uma sociedade que matará tanto quanto a nazista. Muda só a cor da fantasia.
Foi um grande mal para a nossa cultura erigir o nazismo e seus símbolos numa espécie de mal absoluto encarnado. Não porque ele tenha algo de positivo ou meritório, mas porque essa identificação nos impede de reconhecer fenômenos semelhantes. Basta que a coloração mude um pouquinho, e tratamos algo que é, em essência, igual ao nazismo, como se fosse algo muito menos grave. Maoísmo, stalinismo e outras variantes recebem tratamento muito mais benigno, embora tenham sido tão destrutivos quanto a Alemanha nazista.
O grande perigo para uma sociedade de leis e de liberdades individuais é o totalitarismo, um fenômeno antigo (que recebia, na filosofia clássica, o nome de tirania) e que pode vir em muitas diferentes roupagens. Em todas elas, o discurso e os símbolos (aquilo que chamo de coloração ideológica) servem como disfarces para o que é, em essência, a concentração absoluta do poder nas mão de um pequeno grupo ou de um indivíduo.
Como todo poder, ele consiste na disposição de uma grande quantidade de pessoas a obedecer qualquer ordem sua, inclusive no que diz respeito à vida e à morte de outras pessoas. Essa massa obediente é mantida no cabresto pelo poder da ideologia dominante, que passa a constituir parte de sua identidade enquanto povo. Invariavelmente, essa identidade se opõe a inimigos externos e internos.
O conteúdo específico da ideologia totalitária importa pouco; ele modula alguns aspectos de uma experiência que é sempre a mesma em todo lugar. Determina, por exemplo, quem é o inimigo da vez (judeus, burgueses, nobres, negros, especuladores, fazendeiros individuais, etc.). Mas, via de regra, o discurso tolera quase tudo. Lembremos que Stalin foi capaz de fazer o socialismo soviético se tornar nacionalista e ainda apoiar a família tradicional e até se reconciliar com a religião russo-ortodoxa, o oposto de tudo que seu antecessor, Lenin, ensinara.
O nazismo nos é particularmente odioso porque tem como elemento central o racismo, e nossa cultura tem ainda a memória clara dos males do ódio racial. Contudo, isso é a cereja do bolo ideológico, um elemento da roupagem exterior, que mais esconde do que revela a natureza do regime, que não é algo especial e novo na história da humanidade, mas apenas mais uma versão de totalitarismo.
Pouco se aprende sobre a realidade social dos diversos totalitarismos lendo a literatura que seus líderes e intelectuais deixaram, palavras pensadas para manipular as massas, e não compreender a realidade nem propor um sistema universalizável. Tudo ali muda conforme o sabor da expediência política. No final das contas, com ódio de raça, de classe ou o que quer que seja, os totalitarismos matam quanto podem.
Não é contabilizando mortos que chegaremos ao ranking das ideologias mais nefastas (nesse quesito, é provável que China ou Camboja liderem); é só uma questão de ocasião. E praticamente qualquer base doutrinária pode ser devidamente transformada para apoiar um projeto totalitário. Na medida que a crença numa doutrina leva a pessoa a obedecer cegamente a um líder tido como seu representante, as bases estão dadas.
Voltemos ao presente. Marchas neonazistas em Charlottesville, nos EUA. Geram uma justificada repugnância em qualquer ser humano minimamente racional. Mas se deixamos as particularidades ideológicas de lado, o que temos? Uma tribo de jovens em busca de uma identidade coletiva e desejosos de inimigos para validá-la. Em que os tais grupos “antifas” (de “ antifascistas ”) que se organizam para bater e matar neonazistas, se diferenciam deles? Em muito pouco, quase nada.
Fiquei surpreso quando, aqui no Brasil (Osasco), em fins de julho, vi a notícia de um assassinato de um tatuador neonazista na periferia de São Paulo foi comemorada por diversos jovens desses grupos supostamente anti-fascistas. Seus integrantes mostravam o mesmo desejo de construir uma identidade grupal ao redor de certos símbolos, narrativas e mitos.
Viam-se como descendentes de soldados soviéticos da Segunda Guerra; alguns chegavam a adotar nomes russos em seus perfis de rede social. Um verdadeiro cosplay político, com a diferença de que eles acreditavam ser os personagens de sua fantasia. Descreviam sua luta contra os nazistas como se fosse parte de um esforço de guerra real, quando na verdade não passam de quebra-quebra de tribos urbanas.
Levar a sério suas ideologias é o mesmo que levar a sério as crenças de skatistas e clubbers que se batiam lá em meados dos anos 90. Eles não estão em uma cruzada contra um exército; são uma tribo bastante fanatizada à procura de um inimigo à sua altura. O mal do totalitarismo e da violência tribal não são oriundos do conteúdo ideológico; este é um elemento identitário, assim como as roupas e os cortes de cabelo, e não a origem do mal a que estão ligados. Levar a sério esses discursos apenas os fortalece, assim como criar grupos com a finalidade específica de combatê-los nas ruas. A existência de um inimigo a se combater é o maior atrator possível. Ninguém torce para time que não tem rival.
Acreditamos que o nazismo é o mal absoluto, dando passe livre para todos os outros discursos totalitários. Também julgamos as pessoas mais pelas ideias dentro da cabeça delas do que pelos atos para com seus semelhantes. O sujeito pode ser um canalha, mas se agir imbuído de uma ideologia considerada boa, é no máximo um nobre equivocado. E o sujeito pode ser uma pessoa decente, mas se tiver uma crença má, é o demônio na terra.
Para a vida em sociedade, não é assim. Muito mais importante do que a roupagem ideológica, é até onde a pessoa está disposta a se entregar aos ditamos da tribo. É isso que determinará se vivemos em um mundo de leis e liberdade individual ou num inferno totalitários. Se você literalmente acha que violência contra nazistas é algo positivo, você está contribuindo para produzir uma sociedade que matará tanto quanto a nazista. Muda só a cor da fantasia.