Dove, MAM e a corrupção da nossa cultura
Sou um dos maiores críticos da mídia se pautar pelas polêmicas descartáveis das redes sociais. Mas lá vou eu de novo me deixar levar. De uma forma ou de outra, elas são um reflexo muito instrutivo dos males da nossa cultura. A bola da vez é uma propaganda da Dove que foi acusada de racismo. […]
Publicado em 12 de outubro de 2017 às, 10h34.
Sou um dos maiores críticos da mídia se pautar pelas polêmicas descartáveis das redes sociais. Mas lá vou eu de novo me deixar levar. De uma forma ou de outra, elas são um reflexo muito instrutivo dos males da nossa cultura.
A bola da vez é uma propaganda da Dove que foi acusada de racismo. Nessa propaganda de um produto de pele, uma modelo negra tira uma camiseta marrom e se transforma numa modelo branca. Isso seria um claro exemplo de racismo. A acusação correu as redes, a indignação foi geral, e a própria empresa pediu desculpas.
Claro, se os críticos tivessem assistido de fato à propaganda, teriam visto uma realidade um pouquinho diferente: na sequência, a modelo branca tira sua camiseta branca e se transforma numa morena. Se houve racismo aí, só pode ter sido pela supremacia da pele morena!
A própria modelo negra da propaganda veio a público dizer que não considerava a propaganda racista. Na verdade, tratava-se de uma celebração da diversidade. Para quem assiste de maneira minimamente imparcial, isso fica evidente. A transição de modelos (todas lindas) nem sequer é algo inédito. Trata-se de uma reedição para o século 21 da famosa cena similar do clipe “Black and White” do Michael Jackson (se esse clipe ou a própria música do rei do pop seriam permitidos no “avançado” século 21 é outra história…). Não tem o menor cabimento a celeuma que ela gerou.
A celeuma só se explica de um modo: oportunistas tentando ganhar fama ou poder incitando a revolta popular contra crimes fictícios. Mentiras deslavadas que apelam para a indignação das massas.
Nesse sentido, a acusação de racismo na propaganda da Dove é o espelho perfeito da acusação de pedofilia no MAM que nos sacudiu na semana passada. Quem sabe num futuro próximo as “polêmicas” se sucedam com frequência diária, ou até de hora em hora. No MAM, um artista nu era objeto da interação dos espectadores. Uma mãe levou sua filha à exposição, e há filmagem da menina encostando na perna do artista nu. Não há absolutamente nenhuma sexualização no ato. Entendo que pais tenham posições diferentes quanto à conveniência do que se passou ali. Mas pedofilia simplesmente não existiu.
Em ambos os casos, uma acusação falsa (basta ver as obras) que apela para os sentimentos morais de uma massa que está mais do que pronta para mostrar sua indignação.
O resultado é uma cultura mais policiada e autocensurada, em que tudo é politizado. Não pode haver mais leveza, humor ou alegria, pois qualquer coisa pode ser interpretada da pior forma possível. Ao invés da confiança mútua e da mínima boa vontade, patrulhas dispostas a ver sempre o pior. Assim, todo mundo que se manifesta de alguma maneira (na arte, na publicidade, mesmo no convívio) precisa medir milimetricamente cada passo. O efeito mais provável é o afastamento e o isolamento dos grupos. E isso é, evidentemente, o exato oposto de uma atmosfera de liberdade.
Tem algo de terrível nisso. As boas intenções – o desejo de corrigir algum mal do mundo (pedofilia, racismo) – são o motor de um processo destrutivo para a cultura e para a sociedade. Fica a lição: nossas boas intenções, se não forem acompanhadas de um compromisso ainda mais forte com a objetividade, tornam-nos pessoas piores. Isso sem falar que, nessa dinâmica toda, em que também estão em jogo curtidas e popularidade, há muito mais do que apenas “boas intenções”…