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“Denegrir”, “judiar”, “lista negra”: a política da fala

"Enquanto uns promovem a inclusão de minorias na vida econômica e política, outros apostam em mudanças no plano simbólico e no da fala"

Racismo: "A língua guarda marcas de nosso passado" (RyanJLane/Getty Images)
Racismo: "A língua guarda marcas de nosso passado" (RyanJLane/Getty Images)
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Joel Pinheiro da Fonseca

Publicado em 25 de setembro de 2020 às, 21h57.

A busca por remediar desigualdades injustas é uma das marcas positivas de nosso tempo. Não pode ser a única bandeira, posto que a redistribuição em excesso pode distorcer o incentivo individual para crescer, mas sem dúvida poderíamos promover uma sociedade muito mais justa do que hoje. As maneiras de se fazê-lo, contudo, variam muito. Enquanto uns promovem a inclusão de minorias na vida econômica e política, por meio de ações afirmativas ou medidas de auxílio e formação, outros apostam em mudanças no plano simbólico e no da fala.

A lista de palavras e expressões verbais proibidas pela boa intenção progressista não para de crescer: “denegrir”, “judiar”, “fazer nas coxas”, “criado-mudo”, “meia tigela”, “mulato”, “mercado negro”, “lista negra”.

Em alguns casos a etimologia racista é simplesmente inventada. “Denegrir” vem do latim “denigrare”, palavra que em sua origem romana não fazia referência nenhuma à cor de pele. Igualmente fantasiosa é a história de que “nas coxas” remete a um método escravocrata de se fabricar telhas.

Mesmo no caso de etimologias reais, como “judiar” (que vem de “judeu”) ou “mulato” (que possivelmente vem de “mula”, embora possa vir do árabe “muwallad”, que deu em “muladi”, um muçulmano de origem cristã na Península Ibérica), acreditar que essas origens poluem moralmente a palavra hoje em dia é cometer a falácia genética: a crença de que o significado atual de um termo é determinado por sua origem. O que simplesmente não é verdade.

Vejamos um outro exemplo: o termo “escravo”. “Escravo” vem do termo latino medieval “sclavus”, que designava originalmente um povo do Leste Europeu. Como muitos dos escravos vinham de lá, o nome do povo passou a nomear a pessoa escravizada (antes dela, a palavra usada em latim era “servus”). Esse povo existe até hoje: conhecemo-los pelo nome de eslavos, e já sofreram muito preconceito ao longo da história. Entretanto, quando falamos “escravo”, estamos de alguma maneira desmerecendo o povo eslavo, contribuindo para preconceito contra ele ou piorando sua vida de qualquer maneira? É evidente que não.

A ofensa reside na intenção de ofender. Usar uma palavra que não tem significado preconceituoso, sem a intenção de ofender ou de excluir, é inócuo. Apenas trava a comunicação que deveria ser fluida, obrigando o falante a pisar em ovos para não cometer alguma ofensa involuntária, e reduzindo seu repertório imagético.

Uma outra proposta de mudança da língua portuguesa para avançar a justiça social é a criação e uso de pronomes neutros para tirar as marcas de gênero das nossas referências a pessoas, o que supostamente ajudaria a incluir pessoas que não se identificam no binarismo clássico homem-mulher. Em vez de “ele” ou “ela”, “elu”. Em vez de terminar adjetivos com “o” ou “a”, terminar com “e”.

A complexidade é tanta que, além de obviamente inviável, o efeito possível da tentativa de incorporar esse jeito de falar (cuja finalidade é única e exclusivamente não presumir que sabemos o gênero da pessoa a quem nos referimos) é a criação de um abismo intransponível de classes. Apenas a elite cultural brasileira tem a capacidade e a disposição para um projeto de engenharia voluntária de tal monta em nossa linguagem do dia a dia. Para o grosso da população, isso é inalcançável. Se nossa língua erudita já guarda marcas de classe que afastam o falar popular, com a mudança proposta pela militância de gênero o que teremos é diferentes classes falando línguas diferentes, sem sequer conseguir se compreender.

A língua guarda marcas de nosso passado. Por si só, ela não o perpetua. Uma palavra não carrega consigo o mesmo sentido que tinha em sua origem, e muito menos seu uso pode recriar a realidade social que deu origem a ela lá atrás. Ela é, se tanto, resultado, e não causa, de relações estruturais mais profundas. A mudança nessas estruturas, quem sabe, mudará a língua. Tentar o contrário é perda de tempo. O risco de concentrar as reformas sociais no campo simbólico é esquecer que a realidade existe além do símbolo.