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A sedução de Bacurau

O novo filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles tornou-se um tema inescapável do debate público, em especial, da esquerda brasileira

BACURAU: filme se pretende uma espécie de alegoria do momento em que vivemos, com o imperialismo e as elites massacrando o povo pobre e sofredor / Divulgação (Divulgação/Divulgação)
DR

Da Redação

Publicado em 13 de setembro de 2019 às 15h12.

“Bacurau” é mais do que um filme: virou uma tábua de salvação para toda uma parcela do eleitorado brasileiro. Isso é, em parte, seu grande sucesso: tornou-se um tema inescapável do debate público. Mas é também um problema em dois níveis: o primeiro é que nos impede – ou no mínimo dificulta muito – de analisar o filme pelo que ele é, e não pelo que ele representa aqui no Brasil de 2019. O segundo nível nos leva para fora da crítica cinematográfica: o que o filme representa são justamente as ilusões autocomplacentes que a esquerda precisa perder para se tornar relevante e positiva.

Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles sabem fazer um filme. Constroem um atmosfera envolvente, deixam um mistério no ar que vai aos poucos se tornando claro, criam o sentimento de que algo terrível vai se abater sobre a pobre vila de Bacurau. Há beleza nas cenas – em especial o velório de uma matriarca da vila no começo do filme -, há criatividade nos detalhes que nos revelam um Brasil distópico – autoritário e tecnológico – de um futuro próximo.

Mesmo assim, ainda considerando Bacurau apenas como um filme, há problemas. Um enredo extremamente maniqueísta (em que o objetivo dos vilões é literalmente matar inocentes por puro sadismo, e no qual o povo pobre da vila é naturalmente puro, bom e unido) e com várias pontas soltas. Duas personagens femininas, que recebem bastante destaque, não fazem nada de relevante para a trama. Sonia Braga, em particular, parece que está ali apenas porque ela é presença obrigatória em filmes de esquerda: não faz nada de relevante (embora receba muita atenção) e em um momento específico faz uma ação sem pé nem cabeça e abre mão, sem motivo, de uma chance fácil de matar o grande vilão. O grande levante de Bacurau contra seus invasores norte-americanos, que prometia ser um grande clímax, decepciona por sua brevidade e pela facilidade com que é concretizado: e os vilões já estavam se matando uns aos outros.

Tenho que essas falhas, que prejudicam o filme, se explicam pelo desejo do diretor de fazer, antes de tudo, um manifesto político para a esquerda brasileira. O povo brasileiro pobre e bom contra o imperialismo malvado (e as elites nacionais que se aliam a ele). Em um momento que beira o cômico, em que um auto-falante lista os nomes dos mortos na vila, ouvimos os nomes “Marielle” e “Marisa Letícia”.

Sim, o filme se pretende uma espécie de alegoria do momento em que vivemos. O imperalismo e as elites estão massacrando o povo pobre e sofredor e seus representantes de esquerda (nem sequer existe diferença entre os dois). Mas a reação popular virá: a resistência ao invasor está sendo gestada no coração do povo.

O povo de “Bacurau” é a idealização de povo de nossa classe média intelectualizada: enraizado em seus folclores, sem religião relevante (a igreja da cidade? Fechada há anos. Evangélicos? Nem sinal.), vivendo na pobreza honesta e sem grande ímpeto de buscar algo diferente, de subir na vida. Quem os pode ajudar são os mais escolarizados – a própria classe média que se vê ali em uma personagem – e os radicalmente excluídos, os bandidos, que nada mais são do que revolucionários em luta contra o Estado opressor.

Na fantasia criada, o povo unido à classe média progressista e aos bandidos organizam a resistência armada. Do conforto das salas de cinema, intelectuais sonham com o dia em que serão heróis da revolução. Esse sonho é o problema.

Não porque a revolução seja algo violento. É óbvio que a tão sonhada revolução jamais virá. É um problema porque ele esconde a real natureza do que está em jogo: a opinião pública – o povo brasileiro – não está na mesma página da classe média progressista. Ela precisa, antes de tudo, se quiser se tornar politicamente relevante, conquistar as mentes e os corações do povo. E para fazer isso, não adianta pintar seu mundinho de fantasia e desprezar os valores que importam de fato para o brasileiro médio.

Ao invés de uma resistência simbólica, intransigente e (por isso) impotente, precisamos de propostas, capacidade de compor e de criar valores que inspirem, imagens que vão além do mero enfrentamento do governo atual, pintado como o mal absoluto. Ninguém neste mundo é puro: nem mesmo o povo, e nem mesmo a classe média progressista que julga falar por ele.

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“Bacurau” é mais do que um filme: virou uma tábua de salvação para toda uma parcela do eleitorado brasileiro. Isso é, em parte, seu grande sucesso: tornou-se um tema inescapável do debate público. Mas é também um problema em dois níveis: o primeiro é que nos impede – ou no mínimo dificulta muito – de analisar o filme pelo que ele é, e não pelo que ele representa aqui no Brasil de 2019. O segundo nível nos leva para fora da crítica cinematográfica: o que o filme representa são justamente as ilusões autocomplacentes que a esquerda precisa perder para se tornar relevante e positiva.

Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles sabem fazer um filme. Constroem um atmosfera envolvente, deixam um mistério no ar que vai aos poucos se tornando claro, criam o sentimento de que algo terrível vai se abater sobre a pobre vila de Bacurau. Há beleza nas cenas – em especial o velório de uma matriarca da vila no começo do filme -, há criatividade nos detalhes que nos revelam um Brasil distópico – autoritário e tecnológico – de um futuro próximo.

Mesmo assim, ainda considerando Bacurau apenas como um filme, há problemas. Um enredo extremamente maniqueísta (em que o objetivo dos vilões é literalmente matar inocentes por puro sadismo, e no qual o povo pobre da vila é naturalmente puro, bom e unido) e com várias pontas soltas. Duas personagens femininas, que recebem bastante destaque, não fazem nada de relevante para a trama. Sonia Braga, em particular, parece que está ali apenas porque ela é presença obrigatória em filmes de esquerda: não faz nada de relevante (embora receba muita atenção) e em um momento específico faz uma ação sem pé nem cabeça e abre mão, sem motivo, de uma chance fácil de matar o grande vilão. O grande levante de Bacurau contra seus invasores norte-americanos, que prometia ser um grande clímax, decepciona por sua brevidade e pela facilidade com que é concretizado: e os vilões já estavam se matando uns aos outros.

Tenho que essas falhas, que prejudicam o filme, se explicam pelo desejo do diretor de fazer, antes de tudo, um manifesto político para a esquerda brasileira. O povo brasileiro pobre e bom contra o imperialismo malvado (e as elites nacionais que se aliam a ele). Em um momento que beira o cômico, em que um auto-falante lista os nomes dos mortos na vila, ouvimos os nomes “Marielle” e “Marisa Letícia”.

Sim, o filme se pretende uma espécie de alegoria do momento em que vivemos. O imperalismo e as elites estão massacrando o povo pobre e sofredor e seus representantes de esquerda (nem sequer existe diferença entre os dois). Mas a reação popular virá: a resistência ao invasor está sendo gestada no coração do povo.

O povo de “Bacurau” é a idealização de povo de nossa classe média intelectualizada: enraizado em seus folclores, sem religião relevante (a igreja da cidade? Fechada há anos. Evangélicos? Nem sinal.), vivendo na pobreza honesta e sem grande ímpeto de buscar algo diferente, de subir na vida. Quem os pode ajudar são os mais escolarizados – a própria classe média que se vê ali em uma personagem – e os radicalmente excluídos, os bandidos, que nada mais são do que revolucionários em luta contra o Estado opressor.

Na fantasia criada, o povo unido à classe média progressista e aos bandidos organizam a resistência armada. Do conforto das salas de cinema, intelectuais sonham com o dia em que serão heróis da revolução. Esse sonho é o problema.

Não porque a revolução seja algo violento. É óbvio que a tão sonhada revolução jamais virá. É um problema porque ele esconde a real natureza do que está em jogo: a opinião pública – o povo brasileiro – não está na mesma página da classe média progressista. Ela precisa, antes de tudo, se quiser se tornar politicamente relevante, conquistar as mentes e os corações do povo. E para fazer isso, não adianta pintar seu mundinho de fantasia e desprezar os valores que importam de fato para o brasileiro médio.

Ao invés de uma resistência simbólica, intransigente e (por isso) impotente, precisamos de propostas, capacidade de compor e de criar valores que inspirem, imagens que vão além do mero enfrentamento do governo atual, pintado como o mal absoluto. Ninguém neste mundo é puro: nem mesmo o povo, e nem mesmo a classe média progressista que julga falar por ele.

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