A quem pertence Jerusalém?
Se trinta anos atrás Israel ainda era a fonte dos maiores conflitos na região, hoje poucos estão dispostos a se sacrificar pela causa palestina
Da Redação
Publicado em 7 de dezembro de 2017 às 15h31.
Última atualização em 7 de dezembro de 2017 às 18h18.
Não existe nenhuma lei divina ou lei natural que nos diga que certo território esteja legitimamente sob o domínio de um certo grupo de pessoas. Que um pedaço de terra “tenha” que pertencer a um certo dono. Existem os desejos humanos e a força para colocá-los em prática; as regras de legitimidade são convencionais, variáveis e sua aplicação está sujeita a diferentes interpretações. Vale aquilo que conseguir se impor.
Isso vale para os indivíduos e para as nações. Para os indivíduos, temos um Estado organizado sob certas regras (um Estado de Direito) para garantir as leis de propriedade e para impedir que indivíduos muito poderosos imponham seu capricho sobre todos os outros. Já no plano das nações, ou seja, das relações entre Estados, não há um super-Estado de Direito. Nesse plano impera a anarquia.
O século 20 conheceu enormes tentativas de superar a anarquia com uma ordem mundial baseada em leis e acordos. Mas nenhum órgão internacional, como a ONU, jamais teve a supremacia bélica necessária para impor suas resoluções. Alternativamente, temos o Estado americano como o grande policial do mundo, garantindo a estabilidade de uma certa ordem entre as nações. Mas há lugares em que a estabilidade simplesmente não existe e nos quais diferentes ideias de legitimidade concorrem. Israel é um desses lugares.
A quem pertence Jerusalém? Para a ONU, ela deveria ser dividida entre Israel e a autoridade palestina, sendo assim a capital de duas nações em paz. O papa Francisco, chefe da instituição que em outros tempos também tentou ser o que a ONU aspira, concorda. Nem israelenses e nem palestinos gostam muito da ideia. E, na prática, Israel conseguiu conquistar o território e afirmar-se dono da cidade, ainda que o resto do mundo não reconhecesse formalmente.
Mas o fato é que o jogo já mudou. Se trinta anos atrás Israel ainda era a fonte dos maiores conflitos na região, hoje poucos – mesmo regionalmente – estão dispostos a se sacrificar pela causa palestina. Egito e Jordânia estão em paz com Israel. A Arábia Saudita, embora não tenha relações formais, também coopera com o Estado israelense.
O medo do mundo árabe, hoje, está no Irã. E para contar com o apoio americano no combate ao Estado iraniano, aceitam que Israel e os EUA consigam esse ganho simbólico.
Para Trump, faz sentido também: é um agrado para seu eleitorado, e uma vitória para uma presidência em que nada tem saído como planejado. Sem falar que funciona como um acerto de contas para apoiadores de campanha. Hillary era, originalmente, a candidata mais engajada na defesa de Israel. Trump, assim como Obama antes dele, viu-se forçado a adotar uma retórica pesadamente pró-Israel para conseguir o apoio do lobby sionista (que não é só judeu; tem muitos cristãos também), e agora retribui.
Apesar do rebuliço inicial da mídia e de lideranças de países aliados aos EUA, esse reconhecimento (que na verdade o Congresso americano já havia determinado desde 1995) não vai provocar guerra em larga escala, porque os poderes árabes da região não querem mais esse problema. Vai, sim, dificultar uma solução pacífica mutuamente aceitável com os palestinos e serve para provocar o Irã e desmoralizar a ONU, reforçando o protagonismo unilateral americano.
Nesse cálculo, onde entram as diferentes concepções da legitimidade? Apenas nas cabeças do povo, aquelas que pressionam os políticos por decisões, mas que não tomam as decisões. Jerusalém ilustra muito bem a força e a fraqueza das crenças humanas. Por um lado, ela só é importante por causa de crenças e identidades: não há petróleo, importância militar nem nada disso. É o papel histórico, religioso e simbólico que a cidade tem para diferentes povos; ou seja, o resultado de crenças.
Somadas a essas, está o direito internacional, que busca estabelecer limites mutuamente reconhecidos aos países; uma legitimidade que só existe na medida em que se acredita nela. Ao mesmo tempo, do ponto de vista das autoridades, essas crenças são peças de um jogo que não acredita nelas; objetos que os governantes não podem ignorar (posto que o poder depende da adesão do povo), mas que ao mesmo tempo usam para o que, por baixo desse véu, é a mais pura disputa pelo poder.
Não existe nenhuma lei divina ou lei natural que nos diga que certo território esteja legitimamente sob o domínio de um certo grupo de pessoas. Que um pedaço de terra “tenha” que pertencer a um certo dono. Existem os desejos humanos e a força para colocá-los em prática; as regras de legitimidade são convencionais, variáveis e sua aplicação está sujeita a diferentes interpretações. Vale aquilo que conseguir se impor.
Isso vale para os indivíduos e para as nações. Para os indivíduos, temos um Estado organizado sob certas regras (um Estado de Direito) para garantir as leis de propriedade e para impedir que indivíduos muito poderosos imponham seu capricho sobre todos os outros. Já no plano das nações, ou seja, das relações entre Estados, não há um super-Estado de Direito. Nesse plano impera a anarquia.
O século 20 conheceu enormes tentativas de superar a anarquia com uma ordem mundial baseada em leis e acordos. Mas nenhum órgão internacional, como a ONU, jamais teve a supremacia bélica necessária para impor suas resoluções. Alternativamente, temos o Estado americano como o grande policial do mundo, garantindo a estabilidade de uma certa ordem entre as nações. Mas há lugares em que a estabilidade simplesmente não existe e nos quais diferentes ideias de legitimidade concorrem. Israel é um desses lugares.
A quem pertence Jerusalém? Para a ONU, ela deveria ser dividida entre Israel e a autoridade palestina, sendo assim a capital de duas nações em paz. O papa Francisco, chefe da instituição que em outros tempos também tentou ser o que a ONU aspira, concorda. Nem israelenses e nem palestinos gostam muito da ideia. E, na prática, Israel conseguiu conquistar o território e afirmar-se dono da cidade, ainda que o resto do mundo não reconhecesse formalmente.
Mas o fato é que o jogo já mudou. Se trinta anos atrás Israel ainda era a fonte dos maiores conflitos na região, hoje poucos – mesmo regionalmente – estão dispostos a se sacrificar pela causa palestina. Egito e Jordânia estão em paz com Israel. A Arábia Saudita, embora não tenha relações formais, também coopera com o Estado israelense.
O medo do mundo árabe, hoje, está no Irã. E para contar com o apoio americano no combate ao Estado iraniano, aceitam que Israel e os EUA consigam esse ganho simbólico.
Para Trump, faz sentido também: é um agrado para seu eleitorado, e uma vitória para uma presidência em que nada tem saído como planejado. Sem falar que funciona como um acerto de contas para apoiadores de campanha. Hillary era, originalmente, a candidata mais engajada na defesa de Israel. Trump, assim como Obama antes dele, viu-se forçado a adotar uma retórica pesadamente pró-Israel para conseguir o apoio do lobby sionista (que não é só judeu; tem muitos cristãos também), e agora retribui.
Apesar do rebuliço inicial da mídia e de lideranças de países aliados aos EUA, esse reconhecimento (que na verdade o Congresso americano já havia determinado desde 1995) não vai provocar guerra em larga escala, porque os poderes árabes da região não querem mais esse problema. Vai, sim, dificultar uma solução pacífica mutuamente aceitável com os palestinos e serve para provocar o Irã e desmoralizar a ONU, reforçando o protagonismo unilateral americano.
Nesse cálculo, onde entram as diferentes concepções da legitimidade? Apenas nas cabeças do povo, aquelas que pressionam os políticos por decisões, mas que não tomam as decisões. Jerusalém ilustra muito bem a força e a fraqueza das crenças humanas. Por um lado, ela só é importante por causa de crenças e identidades: não há petróleo, importância militar nem nada disso. É o papel histórico, religioso e simbólico que a cidade tem para diferentes povos; ou seja, o resultado de crenças.
Somadas a essas, está o direito internacional, que busca estabelecer limites mutuamente reconhecidos aos países; uma legitimidade que só existe na medida em que se acredita nela. Ao mesmo tempo, do ponto de vista das autoridades, essas crenças são peças de um jogo que não acredita nelas; objetos que os governantes não podem ignorar (posto que o poder depende da adesão do povo), mas que ao mesmo tempo usam para o que, por baixo desse véu, é a mais pura disputa pelo poder.