A nova nova direita reacionária e pagã
Em janeiro de 2014, publiquei um artigo no Valor Econômico intitulado “O que há de novo na ‘direita’?”, em que trazia ao grande público uma distinção básica na “nova direita” que chegava à atenção pública e ia mudando o discurso político e cultural: a distinção entre conservadores e liberais. À época, o conservadorismo consistia em […]
Publicado em 19 de outubro de 2017 às, 12h53.
Em janeiro de 2014, publiquei um artigo no Valor Econômico intitulado “O que há de novo na ‘direita’?”, em que trazia ao grande público uma distinção básica na “nova direita” que chegava à atenção pública e ia mudando o discurso político e cultural: a distinção entre conservadores e liberais.
À época, o conservadorismo consistia em duas vertentes principais. (Aqui cabe lembrar que, nessas distinções todas, uma coisa não exclui a outra: muitas pessoas partilham de características de dois ou mais subdivisões.) A primeira era um conservadorismo mais filosófico e dos meios: o conservador é aquele que se opõe a mudanças bruscas, não acredita em mudanças significativas na condição humana e tem receio de perder nossas conquistas civilizacionais, construídas a duras penas mas facilmente destrutíveis.
Mais focados nos fins, o outro tipo de conservador pode ser chamado de reacionário: em geral motivado por uma visão religiosa do mundo ou pelo simples medo de outras culturas, ele considera sua agenda moral específica (em geral, de igrejas cristãs atuais) inegociável e é movido principalmente pelo ímpeto de derrotar pensamentos e grupos culturais diferentes. Ao contrário do primeiro, que aceita a mudança gradual nos costumes, esse faz questão de eternizar um modelo específico, em geral do passado.
Esse tipo de conservadorismo é que gera as controvérsias mais acirradas de nossos tempos, mas ele ainda, por ser cristão ou de influência cristã, está ligado a alguns pressupostos dessa religião que também inspiraram o iluminismo e o racionalismo em geral: o universalismo (a crença de que a verdade e o bem se destinam e são acessíveis a todos os homens), a igualdade fundamental (todos são imagem de Deus, o que nos une é mais importante do que o que nos diferencia), o individualismo (a salvação é individual, não de um povo indistinto) e a caridade (temos que querer o bem de todos, o que exclui tratá-los com puro ódio, seja quem for).
Por mais que essas características fiquem apagadas às vezes, elas ainda dão o tom do conservadorismo no Brasil e da direita evangélica americana. Podem ser bastante vitriólicos ao condenar os vícios (especialmente sexuais) do tempo, mas acreditam que todas as pessoas podem se converter, e é isso que desejam.
No entanto, já começamos a importar as táticas e o discurso do novo conservadorismo americano e europeu, esse já plenamente descristianizado, ou pagão. Os traços definidores do cristianismo são extirpados – no máximo, sobra um apego apenas folclórico às igrejas nacionais de cada país – e toma seu lugar o culto ao poder nu e cru, à lei do mais forte e à divisão da humanidade. O paganismo é capaz de reacionarismos muito mais profundos do que o mais carola dos cristãos.
Para esse tipo de conservador, o alt-righter, o universalismo cristão não vale. A humanidade é composta de grupos que são inimigos fundamentais e inconciliáveis. A razão (ou a fé) é incapaz de vencer as pulsões elementares da natureza tribal. Os homens são irremediavelmente desiguais, de modo que uns (os homens brancos) são plenamente humanos enquanto outros (em geral negros ou latinos, além das mulheres) são sub-humanos. O indivíduo e suas preferências não importam, ele deve servir aos interesses do povo ou raça, em geral identificados ao Estado. Da mesma forma, um indivíduo de um grupo “ruim” não poderá nunca ser bom ou confiável. Por fim, não há nenhum vínculo de amor entre ele e seus inimigos; ou ele busca aniquilá-los ou será, por sua vez, destruído.
É o que vemos chegar ao Brasil na onda crescente de xenofobia e até islamofobia que tem sido ativamente insuflada por sites de extrema direita. Invariavelmente, é uma ideologia de teorias da conspiração: não é a natureza humana decaída que, se deixada solta, degenera; o que se passa é que há forças globais poderosíssimas querendo destruir nossa nação por meio da cultura, promovendo a degeneração dos costumes para nos enfraquecer. Hoje em dia, o ódio tem vendido bem.
Como em tantos casos, aposto no Brasil como contendo os antídotos para muitos dos males ideológicos do nosso tempo. Um elemento essencial da direita neo-reacionária americana e europeia é o racismo, algo que simplesmente não é viável aqui no Brasil. Ainda assim, cabe a todos nós ficar de olho: há uma campanha forte contra a capacidade da razão humana de unir povos e pensar soluções; campanhas que preferem o conflito e a guerra, porque é aí que seus líderes ascendem. No longo prazo, elas se derrotam a si mesmas (como foi no nazismo); mas até esse dia chegar, podem provocar muitos estragos se não forem neutralizadas.