A cor da intolerância
O combate ao racismo não deveria servir de salvo-conduto para anular o critério artístico, como no episódio envolvendo Fabiana Cozza, que interpretaria a sambista Dona Ivone Lara em musical
Da Redação
Publicado em 7 de junho de 2018 às 17h07.
Vemos a intolerância de muito do movimento negro no recente episódio envolvendo Fabiana Cozza. Escolhida para viver a sambista Dona Ivone Lara no musical em homenagem a ela, Fabiana foi intimidada e agredida verbalmente por não ter a pele igual à de Ivone. Ela é negra, mas aparentemente não é negra o suficiente. Depois de muita pressão, renunciou ao papel, não sem dar algumas alfinetadas: “Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro. E virar pensamento por horas.”
Não há dúvida de que uma pessoa com pele mais clara e traços mais finos sofra menos racismo no Brasil. Mais do que uma divisão binária em que um lado busca expulsar ou matar o outro, o racismo no Brasil se dá na preferência pelo branco: quanto mais perto do branco de feição europeia se está, mais se é respeitado e valorizado. Assim, até hoje, muitas pessoas tentam mudar ou disfarçar traços associados ao negro. Tudo isso é real e justifica a ação dos movimentos negros. O preocupante é perceber a facilidade com que se vai dessa constatação para a tentativa de impor uma hierarquia da vitimização, para a qual tudo é racismo e a injustiça flagrante é tolerada – ou ainda exigida com ares de profunda indignação – em nome da causa.
Sejamos objetivos. A escolha de uma atriz de pele mais clara tinha a tez como critério? Os produtores queriam deixar Ivone Lara mais clara e por isso escolheram Fabiana Cozza? Ou Fabiana Cozza foi escolhida por uma série de motivos (capacidade de atuação, talento musical, proximidade com Ivone Lara, conhecimento do repertório, etc) que nada têm a ver com isso? Parece bem evidente que esse é o caso. A própria família de Ivone Lara se sentia honrada em ter Fabiana Cozza representando a primeira-dama do samba.
Um caso similar no sentido contrário ocorreu recentemente, mas sem nada próximo desta repercussão: Wagner Moura escalou Seu Jorge para viver Carlos Marighella no cinema. Marighella era um mulato de pele clara; ele próprio se definia como um “mulato baiano”. Muitos brasileiros talvez o considerassem branco. Seu Jorge é negro de pele escura. O diretor Wagner Moura o escolheu precisamente por isso. Disse: “Para mim, ele [Marighella] é um herói negro”. Ninguém se indignou nem pediram que Seu Jorge renunciasse o papel. Aqui sim, no entanto, temos a escolha baseada na cor da pele servindo a um critério político.
Esse tipo de problema ocorre porque o movimento negro brasileiro foi incapaz até hoje de levar a sério o fato da miscigenação brasileira. Importando os critérios do movimento americano, impôs à sociedade brasileira uma divisão binária e total entre brancos (opressores) e negros (oprimidos). Quando forçado a comentar a miscigenação, em geral a atribui a atos de violência passados, o estupro da escrava pelo senhor branco – o que não é verdade; esse tipo de violência também existia nos EUA, e não gerou uma miscigenação comparável à brasileira. O nosso diferencial foi e continua sendo o número significativo de matrimônios interraciais, como o que deu origem a Fabiana Cozza.
Sem poder aceitar fato – que exigiria mais nuance nos posicionamentos do movimento negro -, caímos no dilema atual, no qual os mestiços de pele mais clara (e também os mestiços com traços indígenas) são jogados como peças de conveniência: quando convêm, são “negros”; quando não convém, são brancos, ou ainda “não negros o suficiente”. Quando é para justificar cotas, qualquer traço de mestiçagem serve para caracterizar um negro. Quando é para aplicar cotas, tribunais raciais vêm decidir se aquele mestiço pode se considerar negro.
O combate ao racismo não deveria servir de salvo-conduto para anular o critério artístico. Em casos nos quais atores negros são preteridos por causa de sua cor, aí sim temos motivo para se posicionar contra e pressionar por mudança. Quando outros motivos levam à seleção de um ator ou intérprete, não. Quando o movimento antirracista deixa de combater a discriminação e passa a apenas impor uma hierarquia contrária, ao invés de promover a igualdade e a construção de pontes entre o que racismo quer separar, ele dificulta a superação do racismo no Brasil. Mais gente comparando tons de pele numa eterna competição para ver quem é mais oprimido e, portanto, tem direito de levantar o dedo acusador para o outro: é isso que vai solucionar a questão racial no Brasil?
Vemos a intolerância de muito do movimento negro no recente episódio envolvendo Fabiana Cozza. Escolhida para viver a sambista Dona Ivone Lara no musical em homenagem a ela, Fabiana foi intimidada e agredida verbalmente por não ter a pele igual à de Ivone. Ela é negra, mas aparentemente não é negra o suficiente. Depois de muita pressão, renunciou ao papel, não sem dar algumas alfinetadas: “Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro. E virar pensamento por horas.”
Não há dúvida de que uma pessoa com pele mais clara e traços mais finos sofra menos racismo no Brasil. Mais do que uma divisão binária em que um lado busca expulsar ou matar o outro, o racismo no Brasil se dá na preferência pelo branco: quanto mais perto do branco de feição europeia se está, mais se é respeitado e valorizado. Assim, até hoje, muitas pessoas tentam mudar ou disfarçar traços associados ao negro. Tudo isso é real e justifica a ação dos movimentos negros. O preocupante é perceber a facilidade com que se vai dessa constatação para a tentativa de impor uma hierarquia da vitimização, para a qual tudo é racismo e a injustiça flagrante é tolerada – ou ainda exigida com ares de profunda indignação – em nome da causa.
Sejamos objetivos. A escolha de uma atriz de pele mais clara tinha a tez como critério? Os produtores queriam deixar Ivone Lara mais clara e por isso escolheram Fabiana Cozza? Ou Fabiana Cozza foi escolhida por uma série de motivos (capacidade de atuação, talento musical, proximidade com Ivone Lara, conhecimento do repertório, etc) que nada têm a ver com isso? Parece bem evidente que esse é o caso. A própria família de Ivone Lara se sentia honrada em ter Fabiana Cozza representando a primeira-dama do samba.
Um caso similar no sentido contrário ocorreu recentemente, mas sem nada próximo desta repercussão: Wagner Moura escalou Seu Jorge para viver Carlos Marighella no cinema. Marighella era um mulato de pele clara; ele próprio se definia como um “mulato baiano”. Muitos brasileiros talvez o considerassem branco. Seu Jorge é negro de pele escura. O diretor Wagner Moura o escolheu precisamente por isso. Disse: “Para mim, ele [Marighella] é um herói negro”. Ninguém se indignou nem pediram que Seu Jorge renunciasse o papel. Aqui sim, no entanto, temos a escolha baseada na cor da pele servindo a um critério político.
Esse tipo de problema ocorre porque o movimento negro brasileiro foi incapaz até hoje de levar a sério o fato da miscigenação brasileira. Importando os critérios do movimento americano, impôs à sociedade brasileira uma divisão binária e total entre brancos (opressores) e negros (oprimidos). Quando forçado a comentar a miscigenação, em geral a atribui a atos de violência passados, o estupro da escrava pelo senhor branco – o que não é verdade; esse tipo de violência também existia nos EUA, e não gerou uma miscigenação comparável à brasileira. O nosso diferencial foi e continua sendo o número significativo de matrimônios interraciais, como o que deu origem a Fabiana Cozza.
Sem poder aceitar fato – que exigiria mais nuance nos posicionamentos do movimento negro -, caímos no dilema atual, no qual os mestiços de pele mais clara (e também os mestiços com traços indígenas) são jogados como peças de conveniência: quando convêm, são “negros”; quando não convém, são brancos, ou ainda “não negros o suficiente”. Quando é para justificar cotas, qualquer traço de mestiçagem serve para caracterizar um negro. Quando é para aplicar cotas, tribunais raciais vêm decidir se aquele mestiço pode se considerar negro.
O combate ao racismo não deveria servir de salvo-conduto para anular o critério artístico. Em casos nos quais atores negros são preteridos por causa de sua cor, aí sim temos motivo para se posicionar contra e pressionar por mudança. Quando outros motivos levam à seleção de um ator ou intérprete, não. Quando o movimento antirracista deixa de combater a discriminação e passa a apenas impor uma hierarquia contrária, ao invés de promover a igualdade e a construção de pontes entre o que racismo quer separar, ele dificulta a superação do racismo no Brasil. Mais gente comparando tons de pele numa eterna competição para ver quem é mais oprimido e, portanto, tem direito de levantar o dedo acusador para o outro: é isso que vai solucionar a questão racial no Brasil?