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100 anos da Revolução Russa

As diferentes perspectivas usadas para “comemorar” a revolução

STÁLIN: líder da União Soviética foi importante figura da controversa Revolução Russa (Andrey Volkov/Reuters)
STÁLIN: líder da União Soviética foi importante figura da controversa Revolução Russa (Andrey Volkov/Reuters)
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Joel Pinheiro da Fonseca

Publicado em 16 de novembro de 2017 às, 12h18.

A imagem que as pessoas fazem da Revolução de Outubro (que, pelo calendário gregoriano – o nosso – na verdade ocorreu em novembro) na Rússia em 1917 é de comunistas depondo violentamente o czar. É uma imagem falsa. O czar já havia caído na revolução de fevereiro. Quem governava o país era uma coalização de liberais, social-democratas e socialistas, que apostava no regime republicano. Foi isso que os comunistas tiraram violentamente – sem falar na na progressiva supressão de qualquer movimento ou partido que não fosse o Partido Comunista.

O que a Rússia recebeu foi um regime totalitário, de uma violência muito mais extrema do que os piores dias do czarismo, sem liberdades individuais, com extrema pobreza e na qual, nos momentos mais tenebrosos do regime, não se podia confiar nem em amigos, vizinhos ou familiares. Foi isso que a revolução russa promoveu. É isso que aqueles que a comemoram hoje em dia estão efetivamente comemorando.

É um grande equívoco analisar uma revolução principalmente pelos ideais aos quais ela supostamente serve. Ir a Marx para entender a URSS é ficar numa casca superficial sem grande poder para explicar as escolhas do regime. Marx era usado – e abusado, e retorcido – para a justificação pública daquilo que se fazia. Na prática, era a lógica da “razão de Estado” levada a seu extremo lógico: todos recursos da sociedade dedicados ao militarismo, a ordem interna mantida a ferro e fogo (e muita propaganda) e líderes que tornaram sua conduta habitual a violação de todo e qualquer preceito ético ou direito humano. Tudo estava na mesa para o jogo do poder.

Foi a revolução que o permitiu. Qualquer revolução, ao remover violentamente uma ordem que já não se sustenta, abre um imenso vácuo. É um período no qual vale tudo, e no qual, evidentemente, os inescrupulosos têm mais chance de ficar por cima. Os antigos valores caíram, e se segurar neles é uma aposta temerária.

A Rússia czarista negava o poder ao povo. Ao mesmo tempo, colocava alguns (poucos) limites à ação do soberano: os ditames da religião, por exemplo. Um regime democrático também coloca limites: regras eleitorais, direitos individuais, poderes divididos. Nada disso está diretamente sujeito à opinião popular. Ao propor um poder que seja pura e simplesmente a expressão dos desejos do povo, os bolcheviques – assim como os revolucionários franceses pouco mais de um século antes – removeram qualquer limite ao exercício do poder. E como é impossível que milhões de pessoas exerçam de fato o governo de um país, o Estado permanecerá nas mão de poucos. Quanto mais ele é visto como emanação do povo, maior a opressão que ele pode – sem contestação – exercer sobre o próprio povo.

Dentro de tudo isso, a doutrina socialista da propriedade pública dos meios de produção (que o próprio Lenin teve de flexibilizar – com os kulaks – para evitar o colapso econômico e social absoluto) entra como mais um elemento de poder para o Estado: afinal, a propriedade privada é um limite ao poder. Teve também o efeito de retardar o desenvolvimento soviético e torná-lo, finalmente, insustentável. O atraso com relação aos EUA – econômico, militar, social – tornou-se evidente demais. O peso das ideias acabou se fazendo sentir. Os erros no campo das ideias cobraram seu preço. Mas a dinâmica política totalitária que se seguiu à revolução não é monopólio do marxismo; é uma lógica de operação que pode se utilizar de quase qualquer ideologia ou religião.

A história da humanidade é uma história de acertos e erros, idas e voltas. Mesmo os maiores erros do passado contribuíram para estarmos onde estamos, e pode bem ser que eles tenham nos salvado de equívocos ainda maiores. Por isso, não cabe adotar uma postura refratária e histérica quanto ao passado: condenar e ficar lamentando eventos de um século atrás.

Podemos compreender as intenções de seus agentes e aprender com aqueles erros e ocasionais acertos, sem necessidade de sentenciá-los ao céu ou ao inferno. Ostentar os símbolos daquele regime como ideais a serem buscados hoje em dia, por outro lado, é de um ridículo constrangedor e indica uma disposição muito perigosa para a ordem social, o bem-estar e os direitos humanos.