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Republicanos, democratas e nacionalistas

Três visões de Brasil já estão no pano verde do jogo eleitoral

INDÚSTRIA: estão em disputa, até agora, três projetos diferentes para a economia do país (Germano Lüders/Site Exame)
INDÚSTRIA: estão em disputa, até agora, três projetos diferentes para a economia do país (Germano Lüders/Site Exame)
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João Gabriel de Lima

Publicado em 10 de maio de 2018 às, 16h20.

Nas eleições de 2014, os brasileiros se comportaram como os passageiros do Titanic momentos antes da trombada com o iceberg – sem atentar para o perigo em alto mar, dançavam polcas e bebiam champanhe. Às vésperas do último pleito presidencial, o desastre fiscal iminente era noticiado à larga nos jornais, mas os eleitores e os candidatos se portavam como se nada estivesse acontecendo. Dilma Rousseff não falava em crise porque era uma das principais responsáveis pela calamidade. Aécio Neves fechava a boca para não ser associado ao meme do personagem Pessimildo. Entre a polca e o champanhe, Dilma se reelegeu, o Titanic bateu no iceberg – e a economia encolheu 7% em 2015 e 2016, ceifando sonhos e empregos de milhões de brasileiros.

Em meio à turbulência política que antecede as eleições de 2018, há pelo menos uma boa notícia. Ao contrário do que aconteceu em 2014, um debate político começa a tomar corpo na sociedade brasileira. Três dos candidatos mais bem posicionados nas pesquisas – Ciro Gomes, Geraldo Alckmin e Jair Bolsonaro – já nomearam seus timoneiros na área econômica. Eles são, respectivamente, Nélson Marconi, Pérsio Arida e Paulo Guedes. Os três aproveitam o cochilo dos marqueteiros – tradicionalmente afeitos aos slogans e avessos às ideias – e expõem suas convicções em entrevistas frequentes na imprensa. Representantes de suas famílias acadêmicas afiam os floretes e duelam nos jornais, nem sempre respeitando as regras cavalheirescas da esgrima. Estocadas e arranhões devem ser vistos com alguma simpatia – melhor um debate com sangue que nenhum debate.

Estão em disputa, até agora, três projetos diferentes de Brasil. Pérsio é o “social-democrata”. Marconi, o “nacional-desenvolvimentista”. Paulo Guedes, o “liberal”. Outra boa notícia é que nenhum se porta como se a economia girasse em modo de lancha de corrida. Todos os três defendem a reforma da previdência e algum tipo de ajuste fiscal. Afinal, ainda há muitos icebergs a contornar.

O projeto social-democrata tem sido mainstream no Brasil desde a redemocratização. Vigorou a partir da administração Fernando Henrique, e se estendeu pela maior parte do governo Lula. Em linhas gerais, ele consiste em adaptar ao Brasil receitas consagradas na esquerda internacional, notadamente aquela que nos anos 1990 era chamada de “Terceira Via”. “É bobagem inventar a roda. Temos que aprender com os erros e acertos dos países mais desenvolvidos, que não ficaram mais desenvolvidos por acaso”, diz Pérsio Arida. O primeiro pilar, defendido recorrentemente Bill Clinton e Tony Blair, emblemas da Terceira Via, é que o setor privado é o motor da economia. Cabe ao Estado criar condições de confiança para que empresários e investidores se sintam seguros para abrir negócios e gerar empregos. Se a economia se tornar próspera, o governo pode cobrar impostos e usar o dinheiro na área social – em educação, combate à pobreza, saúde e segurança. Este é o segundo pilar de Clinton e Blair.

Pérsio tem defendido, em entrevistas, um ajuste fiscal duro, centrado na reforma da previdência, para recuperar a confiança perdida; mudanças que melhorem o ambiente de negócios e atraiam o capital, principalmente estrangeiro; fim do “intervencionismo seletivo” – ou seja, nada de subsídios, a não ser que propostos e aprovados pelo Congresso; reforma educacional, para melhorar a produtividade; e privatizações. De quais empresas? Pérsio diz apenas o que não será privatizado: Petrobras e Banco do Brasil. E antecipa que a Eletrobras deverá ir, sim, para o martelo.

O liberalismo brasileiro como conhecemos hoje surgiu nos anos 1980, com um movimento de frenética formação de “think tanks” – que, entretanto, repercutiu pouco na política. Desde a redemocratização, apenas um candidato competitivo abraçou integralmente as teses dos “think tanks”: Guilherme Afif Domingos, em 1989 (o mesmo Afif que, anos mais tarde, seria ministro de Dilma Rousseff). Seu programa, escrito precisamente por Paulo Guedes, defendia privatizar tudo o que fosse possível e, com isso, abater dívida, baixar juros e promover crescimento econômico. Guedes agora está com Bolsonaro. A aproximação entre ambos foi feita por outro expoente do movimento dos “think tanks”, o empresário Winston Ling, primeiro presidente do Instituto Liberdade. Nuances à parte, a filosofia se mantêm: fazer uma reforma profunda no Estado, diminuindo seu tamanho. O que, segundo Guedes, seria um tiro no patrimonialismo: “Privatizar reduz dívida, libera recursos para área social, diminui a corrupção. O estatismo corrompeu a política e estagnou a economia, em todos os países e em todos os tempos”, diz Guedes. Ele planeja arrecadar entre 600 e 800 bilhões de reais com privatizações. Guedes pretende ainda baixar impostos e, com isso, turbinar o crescimento.

É relevante notar (extrapolando o campo econômico) que não se trata de um “liberalismo à Vargas Llosa”. A associação com Bolsonaro implica posturas conservadoras na área dos costumes – por causa da índole do candidato e do foco no eleitor religioso. Trata-se de uma vertente “liberal-conservadora”. Algo, aliás, recorrente em vários países, a começar pelos Estados Unidos. Os liberais-conservadores brasileiros seriam, assim, nossos “Republicanos” — em contraposição aos “Democratas” que governaram o país nos governos de Fernando Henrique e Lula.

O nacionalismo brasileiro ganhou corpo também num “think tank”, o ISEB, Instituto Superior de Estudos Brasileiros – que, nos anos 1950, inspirou vários intelectuais, entre eles Luiz Carlos Bresser-Pereira. O economista Nelson Marconi, da Fundação Getúlio Vargas, é do grupo de Bresser. Marconi é o coordenador do programa de Ciro Gomes – que tem, em seu centro, o incentivo à indústria com o uso de instrumentos públicos, como o BNDES. As áreas incentivadas já estão até definidas: óleo e gás, saúde, agronegócio e defesa. “Foram escolhidas pelo impacto que geram em outros setores da economia”, diz Marconi.

Ele frisa que a proposta de Ciro nada tem a ver com o desenvolvimentismo de Dilma, regado a fartos subsídios e sem preocupação com a responsabilidade fiscal. A aposta é numa outra ideia: melhorar as exportações da indústria com a desvalorização do câmbio – o que pressupõe um ajuste fiscal bem duro. Tal política vem provocando polêmica entre os economistas que mantêm colunas em jornais. Outra estratégia para turbinar a indústria é valer-se das compras governamentais – as quais privilegiarão empresas sediadas no país, não necessariamente brasileiras. Estão descartadas as privatizações em áreas como energia e petróleo, consideradas estratégicas – o que significa que Petrobras e Eletrobras estão fora.

As três primeiras visões de Brasil estão no pano verde e são, como constatamos, recorrentes em nossa vida política. É possível que outros candidatos sigam as mesmas linhas gerais – o programa de Marina Silva, por exemplo, vem sendo elaborado por economistas social-democratas; João Amoedo e Flávio Rocha se alinham com o liberal-conservadorismo; e parte da esquerda se alinha com o nacionalismo de Ciro Gomes. O desenrolar do jogo eleitoral será acompanhado por esta coluna – leia, ao final, o quadro atualizado das propostas.

Um fato a se lamentar é que a área social, notadamente educação e combate à pobreza, pouco tem aparecido nas conversas dos candidatos e seus economistas. “Historicamente, no Brasil, pensa-se que é possível resolver os problemas sociais apenas com crescimento econômico. O crescimento é importante, mas não suficiente”, diz Naércio Menezes, coordenador de pesquisas do Centro de Políticas Públicas do Insper. Ele defende que políticas sociais, aliadas a responsabilidade fiscal, são essenciais num país desigual como o Brasil. Até porque, como se viu no filme Titanic, a turma que habita os porões é a primeira a sofrer quando o transatlântico vai a pique.