Vícios privados, benefícios também: nimbys e o problema habitacional no Reino Unido
Desde 1977, a Grã-Bretanha tem construído menos habitações do que a média dos países da Europa Ocidental
colunista - Instituto Millenium
Publicado em 24 de julho de 2024 às 13h56.
A crise habitacional no Reino Unido é um dos grandes desafios a serem enfrentados pelo primeiro-ministro trabalhistaKeirStarmer, eleito no último dia 4 de julho. Para se ter uma ideia da magnitude do problema, seria necessário construir um número de habitações equivalente ao existente em Londres para suprir o déficit habitacional , que chega a impressionantes 4,3 milhões de unidades. Nem mesmo na cidade britânica com os preços mais baixos o custo da moradia é acessível para a população local.
Fonte: How Tokyo built its way to abundant housing, por James Gleeson
Vale destacar que, nos países ricos, o déficit habitacional é composto majoritariamente pelo alto custo da moradia, em que há um comprometimento significativo da renda familiar com gastos ligados à habitação. A realidade é muito diferente de países pobres ou emergentes, onde a composição do déficit habitacional também conta com grande parcela de moradias tidas como inadequadas, superpovoadas ou mesmo ausentes.
No Reino Unido, como a oferta de novas habitações não acompanhou a demanda de novos moradores, os preços se tornaram cada vez mais elevados. Ao analisar os dados, verifica-se que desde 1977 a Grã-Bretanha tem construído menos habitações do que a média dos países da Europa Ocidental e, caso tivesse acompanhado o ritmo das demais nações, que é modesto, os britânicos contariam com milhões de unidades adicionais e, consequentemente, um panorama melhor.
Todavia, a despeito de contarem com uma desempenho superior a do Reino Unido, os países da europa ocidental não podem ser considerados bons exemplos, uma vez que muitos deles também enfrentam crises habitacionais severas. Assim como na Grã-Bretanha, observa-se que a postura hostil da sociedade em relação ao desenvolvimento urbano é uma das causas principais do problema. Essa abordagem é conhecida como NIMBY (acrônimo em inglês para "not in my backyard").
Por mais que muitos indivíduos relutem em aceitar, no mercado imobiliário também vale a boa e velha mão invisível. Caso a produção de novas habitações não cresça na proporção da demanda por moradia, os preços aumentarão. Sempre haverá um trade off envolvido: mantidas as demais condicionantes, se uma legislação ou a população impedem a construção de mais domicílios, por qualquer motivo que seja, o custo da moradia será maior. Tentativas de congelamento de preços se mostraram um grande fiasco em diversos contextos.
Embora restrições possam ser justificáveis e, em alguns casos, fundamentais, elas impõem um custo à sociedade, que deve ser considerado antes de qualquer decisão. A crítica aos nimbys surge justamente pela defesa de medidas cujos benefícios são concentrados, enquanto o ônus é distribuído entre toda a sociedade. Não por acaso, boa parte dos argumentos utilizados são de ordem puramente subjetiva e estética, em que se utiliza de teses abstratas para alegar um suposto custo “inestimável” à sociedade.
A forte atuação nimby também é um obstáculo para a promoção de políticas habitacionais, pois os grupos organizados trabalham para manter determinado contexto inalterado, independente do projeto contar com a participação do setor público ou ser inteiramente privado. Em muitos casos a pressão pode ser até maior, uma vez que muitas das medidas promoveriam o estabelecimento de indivíduos de menor renda em bairros de elite.
Neste contexto, a economia urbana tem ganhado cada vez mais protagonismo no planejamento das cidades por oferecer uma visão mais clara dos custos e benefícios das decisões, permitindo aos stakeholders mais recursos para avaliar o que está sendo discutido. Por exemplo, uma pesquisa por Hsieh e Moretti (2015) apontou que legislações restritivas e consequente alocação distorcida do solo urbano nos Estados Unidos custam aproximadamente 1,6 trilhões de dólares por ano para a economia do país. Um burocrata ciente desta realidade possivelmente será mais cético quanto a mais restrições desarrazoadas na oferta de moradia.
Nos Estados Unidos, inclusive, recentes estudos apontaram correlações positivas entre a redução de restrições urbanísticas nas cidade americanas e a queda dos preços de de moradia - e se tornaram armas poderosas em campanhas YIMBY (acrônimo em inglês para “yes in my backyard”), movimento que contrapõe os nimby. Entre os yimby há um entendimento de que boa parte dos transtornos causados pelo desenvolvimento urbano são compensados pelos seus benefícios difusos, como a queda dos preços de habitação. Entretanto, é incorreto dizer que se defende a construção a qualquer custo, mas que quaisquer restrições devem ser muito bem fundamentadas.
No Reino Unido, o cenário é pouco animador, a forte resistência cultural ao desenvolvimento imobiliário encontra um terreno fertil no atual modelo de planejamento, que, apesar de ter grandes virtudes, favorece posturas reacionárias. O sistema vigente é aberto e flexível, não contemplando um zoneamento pré definido e normas edilícias rígidas, de modo que os projetos são aprovados caso a caso. O processo de licenciamento é sofisticado e utiliza ferramentas tecnológicas para potencializar a participação popular e as análises técnicas necessárias.
Como a anuência da comunidade local é fundamental para a aprovação dos projetos e existem muitos meios de participação e pressão, grupos organizados têm amplas possibilidades de obstruir a construção de empreendimentos, principalmente os mais ambiciosos, com muitas moradias. Curiosamente, essa lógica discricionária adotada é vista em muitos casos como a possibilidade de um desenvolvimento imobiliário desenfreado, pois, inexistindo os limites pré definidos, os desenvolvedores teriam um campo aberto para construção.
A implementação de reformas no modelo de planejamento é necessária para alterar essa realidade e conferir maior segurança jurídica aos desenvolvedores, mitigando as formas de obstrução descabidas. A flexibilidade presente no modelo é positiva, mas hoje representa insegurança jurídica, e a farta interlocução entre os stakeholders, fundamental ao desenvolvimento urbano, se tornou um meio para obstruções indevidas.
Mudanças estratégicas podem promover uma alteração drástica na realidade e devem acompanhadas de políticas habitacionais bem estruturadas para aumentar a oferta de imóveis e amenizar o custo da moradia na renda mensal das famílias. Além das melhorias evidentes, os beneficiários dessas medidas podem se tornar importantes aliados para enfrentar grupos nimby, que hoje não encontram adversários à altura.
Por fim, mesmo que obtenha êxito nas medidas indicadas, é muito importante que o novo governo eleito foque em promover um debate urbanístico sério, demonstrando que as soluções para as cidades britânicas dependem de uma maior aceitação de mudanças por parte da sociedade. A busca incessante pela manutenção de privilégios adquiridos às custas de terceiros, como argumentado, é parte significativa dos problemas. A administração Stammer precisa demonstrar - com todo cuidado do mundo - que os britânicos devem se olhar no espelho ao buscar os culpados.
A crise habitacional no Reino Unido é um dos grandes desafios a serem enfrentados pelo primeiro-ministro trabalhistaKeirStarmer, eleito no último dia 4 de julho. Para se ter uma ideia da magnitude do problema, seria necessário construir um número de habitações equivalente ao existente em Londres para suprir o déficit habitacional , que chega a impressionantes 4,3 milhões de unidades. Nem mesmo na cidade britânica com os preços mais baixos o custo da moradia é acessível para a população local.
Fonte: How Tokyo built its way to abundant housing, por James Gleeson
Vale destacar que, nos países ricos, o déficit habitacional é composto majoritariamente pelo alto custo da moradia, em que há um comprometimento significativo da renda familiar com gastos ligados à habitação. A realidade é muito diferente de países pobres ou emergentes, onde a composição do déficit habitacional também conta com grande parcela de moradias tidas como inadequadas, superpovoadas ou mesmo ausentes.
No Reino Unido, como a oferta de novas habitações não acompanhou a demanda de novos moradores, os preços se tornaram cada vez mais elevados. Ao analisar os dados, verifica-se que desde 1977 a Grã-Bretanha tem construído menos habitações do que a média dos países da Europa Ocidental e, caso tivesse acompanhado o ritmo das demais nações, que é modesto, os britânicos contariam com milhões de unidades adicionais e, consequentemente, um panorama melhor.
Todavia, a despeito de contarem com uma desempenho superior a do Reino Unido, os países da europa ocidental não podem ser considerados bons exemplos, uma vez que muitos deles também enfrentam crises habitacionais severas. Assim como na Grã-Bretanha, observa-se que a postura hostil da sociedade em relação ao desenvolvimento urbano é uma das causas principais do problema. Essa abordagem é conhecida como NIMBY (acrônimo em inglês para "not in my backyard").
Por mais que muitos indivíduos relutem em aceitar, no mercado imobiliário também vale a boa e velha mão invisível. Caso a produção de novas habitações não cresça na proporção da demanda por moradia, os preços aumentarão. Sempre haverá um trade off envolvido: mantidas as demais condicionantes, se uma legislação ou a população impedem a construção de mais domicílios, por qualquer motivo que seja, o custo da moradia será maior. Tentativas de congelamento de preços se mostraram um grande fiasco em diversos contextos.
Embora restrições possam ser justificáveis e, em alguns casos, fundamentais, elas impõem um custo à sociedade, que deve ser considerado antes de qualquer decisão. A crítica aos nimbys surge justamente pela defesa de medidas cujos benefícios são concentrados, enquanto o ônus é distribuído entre toda a sociedade. Não por acaso, boa parte dos argumentos utilizados são de ordem puramente subjetiva e estética, em que se utiliza de teses abstratas para alegar um suposto custo “inestimável” à sociedade.
A forte atuação nimby também é um obstáculo para a promoção de políticas habitacionais, pois os grupos organizados trabalham para manter determinado contexto inalterado, independente do projeto contar com a participação do setor público ou ser inteiramente privado. Em muitos casos a pressão pode ser até maior, uma vez que muitas das medidas promoveriam o estabelecimento de indivíduos de menor renda em bairros de elite.
Neste contexto, a economia urbana tem ganhado cada vez mais protagonismo no planejamento das cidades por oferecer uma visão mais clara dos custos e benefícios das decisões, permitindo aos stakeholders mais recursos para avaliar o que está sendo discutido. Por exemplo, uma pesquisa por Hsieh e Moretti (2015) apontou que legislações restritivas e consequente alocação distorcida do solo urbano nos Estados Unidos custam aproximadamente 1,6 trilhões de dólares por ano para a economia do país. Um burocrata ciente desta realidade possivelmente será mais cético quanto a mais restrições desarrazoadas na oferta de moradia.
Nos Estados Unidos, inclusive, recentes estudos apontaram correlações positivas entre a redução de restrições urbanísticas nas cidade americanas e a queda dos preços de de moradia - e se tornaram armas poderosas em campanhas YIMBY (acrônimo em inglês para “yes in my backyard”), movimento que contrapõe os nimby. Entre os yimby há um entendimento de que boa parte dos transtornos causados pelo desenvolvimento urbano são compensados pelos seus benefícios difusos, como a queda dos preços de habitação. Entretanto, é incorreto dizer que se defende a construção a qualquer custo, mas que quaisquer restrições devem ser muito bem fundamentadas.
No Reino Unido, o cenário é pouco animador, a forte resistência cultural ao desenvolvimento imobiliário encontra um terreno fertil no atual modelo de planejamento, que, apesar de ter grandes virtudes, favorece posturas reacionárias. O sistema vigente é aberto e flexível, não contemplando um zoneamento pré definido e normas edilícias rígidas, de modo que os projetos são aprovados caso a caso. O processo de licenciamento é sofisticado e utiliza ferramentas tecnológicas para potencializar a participação popular e as análises técnicas necessárias.
Como a anuência da comunidade local é fundamental para a aprovação dos projetos e existem muitos meios de participação e pressão, grupos organizados têm amplas possibilidades de obstruir a construção de empreendimentos, principalmente os mais ambiciosos, com muitas moradias. Curiosamente, essa lógica discricionária adotada é vista em muitos casos como a possibilidade de um desenvolvimento imobiliário desenfreado, pois, inexistindo os limites pré definidos, os desenvolvedores teriam um campo aberto para construção.
A implementação de reformas no modelo de planejamento é necessária para alterar essa realidade e conferir maior segurança jurídica aos desenvolvedores, mitigando as formas de obstrução descabidas. A flexibilidade presente no modelo é positiva, mas hoje representa insegurança jurídica, e a farta interlocução entre os stakeholders, fundamental ao desenvolvimento urbano, se tornou um meio para obstruções indevidas.
Mudanças estratégicas podem promover uma alteração drástica na realidade e devem acompanhadas de políticas habitacionais bem estruturadas para aumentar a oferta de imóveis e amenizar o custo da moradia na renda mensal das famílias. Além das melhorias evidentes, os beneficiários dessas medidas podem se tornar importantes aliados para enfrentar grupos nimby, que hoje não encontram adversários à altura.
Por fim, mesmo que obtenha êxito nas medidas indicadas, é muito importante que o novo governo eleito foque em promover um debate urbanístico sério, demonstrando que as soluções para as cidades britânicas dependem de uma maior aceitação de mudanças por parte da sociedade. A busca incessante pela manutenção de privilégios adquiridos às custas de terceiros, como argumentado, é parte significativa dos problemas. A administração Stammer precisa demonstrar - com todo cuidado do mundo - que os britânicos devem se olhar no espelho ao buscar os culpados.