Uma área inexplorada pela macroeconomia
"Literatura econômica padece da ausência de elaboração teórica", afirma Marcello Averbug
Publicado em 25 de agosto de 2020 às, 09h47.
Última atualização em 25 de agosto de 2020 às, 12h43.
* Por Marcello Averbug
A literatura econômica padece da ausência de uma elaboração teórica, com dimensão equivalente à keynesiana, dedicada a traçar caminhos para enfrentar os fenômenos que hoje mais influenciam o destino da humanidade: a inequidade social e a degradação ambiental. Este artigo abordará apenas a inequidade.
Muito já foi escrito sobre concentração de renda, sendo que o texto recente de maior repercussão foi o livro “Capital no Século XXI”, do economista francês Thomas Piketty, publicado em 2014. Minucioso diagnóstico a respeito do tema, abrangendo longo período de observação, o livro prestou valiosa contribuição ao árduo processo de conscientizar os detentores do poder a respeito da urgência em amenizar os desníveis extremados de renda.
Embora Piketty também aponte alguns caminhos para enfrentar a inequidade, a teoria econômica se ressente da ausência de profunda abordagem sobre políticas redistributivas. Perguntas essenciais ainda não foram respondidas, tais como:
a) qual o melhor conjunto de instrumentos de políticas públicas capaz de promover maior grau de equidade?
b) como esse conjunto modifica-se em função das peculiaridades de cada país?
c) qual a correlação econométrica entre redistribuição de renda e as taxas de investimento e de crescimento econômico?
d) em que medida a produtividade é influenciada pela melhor igualdade social? e) quais os reflexos sobre a áreas fiscal, monetária e cambial?
Logo pós a Segunda Guerra Mundial prevalecia a crença de que a prosperidade dos então chamados países subdesenvolvidos abrandaria espontaneamente os contrastes radicais na qualidade de vida de seus habitantes. Mas isso não aconteceu. Hoje constata-se que a efetiva relação causa – efeito é oposta à imaginada no passado; isto é, a redução dos contrastes é que constitui um dos fatores fundamentais à prosperidade.
Para visualizar de forma simplificada como o perfil da equidade condiciona o desempenho de economias capitalistas, convém observar três casos emblemáticos. O primeiro é o da Inglaterra, pioneira na Revolução Industrial, e que logrou atingir elevada taxa de crescimento econômico apesar da extrema concentração interna de renda prevalecente naquela época. Esse progresso só foi possível porque o destino principal dos bens então elaborados pelas fábricas inglesas era o mercado externo. Somente após a Primeira Guerra Mundial o nível de vida das classes desprivilegiadas subiu, avanço acentuado após a Segunda Guerra.
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No caso da Coreia do Sul, quando a guerra local de 1950/53 terminou, a economia do país encontrava-se arrasada, o índice de pobreza era elevado e a ajuda americana contribuiu para a reconstrução. O esforço pelo crescimento econômico intenso foi deflagrado na década de 70, mediante incisiva atuação do Estado. Iniciou-se a instalação de grandes e competitivas indústrias voltadas à exportação, compensando o então raquitismo do mercado interno. A partir de meados da década de 80 surgem medidas direcionadas à equidade social, mas as exportações continuam sendo mola propulsora da economia.
A experiência dos Estados Unidos difere das duas anteriores. País novo, organizado em torno da atividade rural, desde os primórdios de sua história os parâmetros satisfatórios de distribuição de renda, entre a população branca, fez florescer um mercado interno suficiente para sustentar o crescimento da economia. Esse contexto viabilizou a rápida industrialização posterior, onde o papel do mercado externo era apenas coadjuvante. Graças ao volume de bens e serviços que os americanos foram e são capazes de consumir, o país tornou-se potência. Lamentavelmente, desde a década de 80 os Estados Unidos foram capturados por um mecanismo de recrudescimento da desigualdade, cujas consequências não são animadoras.
Cito os três exemplos acima para relembrar que :
a) em países onde prevalece intenso contraste social, a única forma de obter elevada taxa de crescimento do PIB restringe-se à existência de competitividade capaz de dinamizar as exportações. Posteriormente, é possível até um esforço para diminuir a desigualdade;
b) em países detentores de satisfatória equidade social e expressiva população, as chances de crescimento proveem do mercado interno, dependendo menos do externo.
A concepção de um novo arcabouço teórico que balize políticas redistributivas é especialmente essencial ao Brasil e demais nações populosas da América Latina. Isto porque a realidade exposta no parágrafo anterior conduz à conclusão de que a única hipótese desses países alcançarem patamar de desenvolvimento econômico e social elevado consiste em implementar políticas de atenuação das disparidades de renda, visando alargar o mercado consumidor interno. Agora não há espaço para acelerar o desenvolvimento mediante ingresso exuberante no comércio exportador de bens industrializados e de serviços, hoje comodamente habitado pelos países asiáticos, Estados Unidos e Europa.
Embora as exportações provenientes da agropecuária, do agronegócio e de recursos naturais possam ser benéficas aos países maiores do continente, dificilmente serão suficientes para promove-los à condição de desenvolvidos. Esse gênero de vendas ao exterior reúne potencial para produzir maior impacto sobre o PIB apenas em países menores que, por essa trilha, podem atingir confortável status econômico e social.
Não faz sentido politizar o debate sobre os males gerados pela extrema desigualdade de renda. Assim como a penúria ambiental é realidade cientificamente comprovada, imune a controvérsias ideológicas, também os benefícios da maior equidade social sobre o dinamismo da economia são inquestionáveis. Apesar de haver subvertido a rotina internacional, o covid-19 não anula a premência em encarar a extrema discrepância de renda como ameaça à economia do planeta.
Fonte: "Valor Econômico", 24/8/2020
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Marcello Averbug é economista e por três décadas lecionou Economia na Universidade Federal Fluminense (UFF). Trabalhou para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) durante cerca de vinte anos, onde foi chefe dos departamentos de Planejamento, Avaliação de Programas e de Indústria Naval, além de assessorar a presidência. É ex-economista do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em Washington, onde exerceu a função de “Country Economist” para a Argentina, Chile e Paraguai, e foi secretário de planejamento do Estado do Rio de Janeiro. Averbug é formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-graduado pelo Instituto Latinoamericano y del Caribe de Planificación Económica y Socia (ILPES/CEPAL – Chile) e pela Universidade de Paris. Participou como conferencista nos cursos “Economic Development in Latin America”, na George Washington University e “The Politics of Economic Integration”, na Georgetwon University, ambas em Washington. Autor do livro "Escritos Itinerantes - Economia e Política", editado pela Amazon. Atualmente Marcello é consultor econômico nos EUA e também dedica grande parte do seu tempo à fotografia.