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Transporte urbano: mobilidade para a liberdade

Facilitar o tráfego de veículos privados não pode ser tratado como heresia. Ao contrário: pode ser parte da solução

TRANSPORTE URBANO: prejuízo acumulado das empresas pode chegar a 8 bilhões de reais (Rovena Rosa/Agência Brasil)

TRANSPORTE URBANO: prejuízo acumulado das empresas pode chegar a 8 bilhões de reais (Rovena Rosa/Agência Brasil)

Instituto Millenium
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Instituto Millenium

Publicado em 29 de julho de 2025 às 22h31.

Muito do que se ensina nas escolas de urbanismo parte de uma premissa idealista e estática: que a cidade deve ser moldada por planos perfeitos, centralizados, com modais bem definidos, densidades equilibradas e meios de transporte públicos e coletivos como protagonistas absolutos. Essa visão, no entanto, esbarra numa realidade muito mais complexa e dinâmica, especialmente no Brasil. Nossas cidades não foram desenhadas por um gênio iluminado com régua e compasso. Elas cresceram como frutos de decisões descentralizadas, do encontro entre necessidades práticas e oportunidades espontâneas. E por isso mesmo, não devem ser tratadas como máquinas a serem calibradas por tecnocratas, mas como organismos vivos que respondem melhor à liberdade do que ao controle.

Hoje, o discurso dominante gira em torno da demonização do automóvel, como se o simples fato de se locomover de carro fosse um ato egoísta e antissocial. Mas basta olhar os dados para perceber o contrário: o transporte público perdeu milhões de usuários nos últimos anos, mesmo nas regiões metropolitanas mais populosas. A Trensurb, no Rio Grande do Sul, conforme dados da própria entidade, perdeu 20 milhões de passageiros na última década. Em São Paulo, levantamento feito pelo pesquisador Daniel Santini, que desenvolve estudos na Universidade de São Paulo, aponta que o transporte coletivo urbano perdeu cerca de 30% de seus usuários no mesmo período.

Essa tendência se acentuou no pós-pandemia, com o avanço do home office e a popularização de serviços como transporte por aplicativo, que aumentaram a flexibilidade e o conforto no deslocamento diário. E, sejamos francos: para milhões de brasileiros, o carro representa um sonho legítimo, um sinal de conquista, liberdade, segurança e conforto. É o oposto do que pregam os planejadores urbanos que, muitas vezes, ignoram a realidade concreta do cidadão comum.

Infelizmente, boa parte do urbanismo brasileiro está ancorada em uma visão excessivamente normativa, centralizadora e avessa ao mercado. Alain Bertaud, urbanista francês e ex-consultor do Banco Mundial, critica com precisão esse modelo no livro Ordem sem Design, no qual mostra que cidades eficientes são moldadas pelas decisões descentralizadas de milhões de indivíduos, e não por tecnocratas que impõem padrões rígidos de densidade, mobilidade e uso do solo.

Bertaud demonstra com dados o impacto positivo da velocidade de deslocamento urbano sobre o tamanho do mercado de trabalho acessível. Em estudo com 25 cidades francesas, verificou-se que cada aumento de 10% na velocidade média dos deslocamentos resultava em até 18% de ampliação no mercado de trabalho disponível. Ou seja: quanto mais rápido e livre o transporte, mais oportunidades para as pessoas.

Mas enquanto o mundo real aponta para essa necessidade de mobilidade ágil e acessível, muitos planejadores brasileiros seguem defendendo medidas que, na prática, restringem o tráfego de carros, limitam o uso do solo e burocratizam a vida urbana. Isso tudo com a promessa de cidades mais “humanas”, mas à custa da liberdade e da funcionalidade.

Importante destacar: propostas de adensamento e uso misto do solo são bem-vindas e devem ser incentivadas. Cidades mais densas e conectadas podem sim gerar menos deslocamentos e mais vitalidade urbana. Mas esses efeitos levam tempo, décadas, muitas vezes. Enquanto isso, ignorar a realidade atual das cidades brasileiras, com sua dispersão espacial, infraestrutura deficiente e transporte público pouco confiável, é fechar os olhos para a necessidade de grande parte da população. Nesse cenário, facilitar o tráfego de veículos privados não pode ser tratado como heresia. Ao contrário: pode ser parte da solução.

Adotar uma política de mobilidade urbana que reconheça a diversidade das necessidades e aspirações dos cidadãos significa entender que os modais não são rivais – são complementares. O carro não é inimigo do transporte público. Ao contrário, pode desafogar os sistemas coletivos, ampliar o acesso a zonas menos servidas e permitir flexibilidade para quem trabalha longe, faz múltiplos deslocamentos por dia ou simplesmente não tem um ônibus que passe perto de casa.

E se o carro é, para muitos, o meio que permite acesso ao emprego, à educação ou à saúde, tentar bani-lo à força é impor uma visão elitista e distante da realidade brasileira. Ao invés disso, deveríamos garantir infraestrutura viária adequada, revisar normas que travam a fluidez urbana, pensar estacionamentos de forma racional e integrar tecnologias que tornem o tráfego mais eficiente.

A lógica deve ser inversa: promover a liberdade de escolha. Quem quiser e puder usar transporte público, que o faça com conforto e eficiência. Quem puder andar a pé ou de bicicleta, que encontre segurança e infraestrutura para isso. Mas quem optar por ter um carro, algo simbólico e fruto de muito sacrifício e esforço pessoal para o brasileiro, deve encontrar uma cidade que reconhece e respeita essa escolha.

Enquanto esperarmos por uma cidade ideal que talvez nunca chegue, milhões continuarão enfrentando longas e dolorosas jornadas em sistemas de transporte público que não funcionam. Reconhecer o papel legítimo do carro, valorizar a pluralidade de modais e permitir mais liberdade no desenvolvimento urbano são passos urgentes para que nossas cidades deixem de ser obstáculos e voltem a ser alavancas de mobilidade social e prosperidade.

 

*Paulo Giacomelli é Presidente do Instituto Liberdade

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