Colunistas

Tecnologia, soberania e crime organizado na Amazônia

O que o Brasil pode aprender com a Guerra da Ucrânia e conflitos contemporâneos para modernizar sua defesa nacional

 (Secom-MT/Divulgação)

(Secom-MT/Divulgação)

Instituto Millenium
Instituto Millenium

Instituto Millenium

Publicado em 13 de setembro de 2025 às 08h22.

*Rafael Mendonça

 

 

O entendimento sobre o que deve constar em um programa de segurança nacional mudou de forma rápida e profunda nos últimos anos. Para compreender tal fenômeno, podemos observar o caso mais extremo: a guerra provocada pela invasão russa na Ucrânia, que expõe como a predominância das batalhas clássicas nos teatros de guerra como elemento central do conflito se deslocou para operações híbridas e tecnológicas. Neste novo terreno, observam-se ataques cibernéticos, como as tentativas russas de sabotagem da infraestrutura de energia elétrica e sistemas estratégicos da Ucrânia, como um novo foco da guerra, indicando que as ameaças vão muito além do espaço físico. Ao mesmo tempo, a capacidade de se defender e infligir danos também adquire novas formas, pautadas por avanços tecnológicos. O exemplo mais ilustrativo é o uso em massa de drones, muitas vezes produzidos em impressoras 3D, como peça-chave dos dois lados, levando a Ucrânia a estruturar um sistema de gamificação para premiar soldados pela destruição causada aos invasores russos com esses equipamentos. Esse cenário exige, portanto, que os países desenvolvam capacidade institucional para lidar com as novas ameaças à segurança nacional.

O Instituto Millenium participou de discussões sobre esse tema durante uma palestra conduzida por Sine Özkaraşahin, pesquisadora e policy officer da Divisão de Investimentos de Defesa da OTAN. Sine destacou, além do uso de drones e de ataques cibernéticos à infraestrutura de energia do país, um conjunto de riscos que hoje são centrais para a garantia da segurança nacional: segurança em biotecnologia, nanotecnologia, segurança informacional e a necessidade de proteção contra armas biológicas e químicas avançadas. A construção de uma visão de segurança nacional deve considerar, portanto, esses vetores dentro da matriz de vulnerabilidades de um Estado e de alianças multinacionais. E, trazendo esse entendimento para o contexto brasileiro, percebe-se como o desenvolvimento de capacidades institucionais presentes nos conflitos contemporâneos permitiria o enfrentamento à maior ameaça à segurança nacional atualmente: o crime organizado.

Dentro da ampla gama de ações necessárias para combater as facções - operações financeiras, institucionais, repressivas, entre outras -, as lições das novas dinâmicas da segurança internacional permitem ao Brasil buscar saídas para atacar o crime organizado em uma frente específica: a proteção das fronteiras e o controle do território nacional na região amazônica. No Norte do Brasil, as redes fluviais da Bacia Amazônia se tornaram rotas de escoamento e logística para o narcotráfico - apelidadas de “rios de cocaína”. E pelo ar, a falta de capacidade de controle do espaço aéreo faz com que os ceús da Amazônia também sirvam de rotas para as facções, que apenas no estado do Amazonas já possuem cerca de 200 pistas de pouso.

As facções já controlam um terço das cidades na Amazônia Legal, que já é uma área de alta lucratividade para o crime organizado. A extração ilegal de ouro já é uma das principais fontes de renda de algumas facções, que vêm expandindo suas ações de garimpo na região. A grilagem de terras, acompanhada pelo desmatamento para exploração comercial e especulação fundiária, reforça esse ciclo, tornando a região estratégica para a expansão das atividades ilícitas.

Para enfrentar esse desafio, o Brasil precisa combinar instrumentos modernos de rastreamento territorial. Como no conflito russo-ucraniano, drones serão fundamentais em operações voltadas a localizar pistas clandestinas, áreas de garimpo e rotas de transporte. Ainda assim, sua eficácia, com  a capacidade de explorar as informações obtidas por meio de veículos não tripulados depende de integração com sistemas mais amplos de monitoramento por satélite, e hoje o país enfrenta um gargalo institucional: a falta de qualidade das informações sobre registros de imóveis rurais e terras no país. Segundo levantamentos, há uma sobreposição massiva de áreas no Cadastro Ambiental Rural (CAR), chegando o volume de registros irregulares a totalizar uma área equivalente a um estado do Pará a mais no mapa do Brasil. Tal situação cria insegurança jurídica e dificulta a identificação de quem ocupa e explora ilegalmente o território, permitindo que, no vácuo da institucionalidade e da presença do Estado, as facções se fortaleçam e expandam seu domínio na Amazônia.

Superar esse problema exige a construção de capacidade institucional para regularizar e auditar os títulos de imóveis rurais, eliminando sobreposições no CAR e conectando essas informações ao monitoramento remoto de desmatamento. A partir dessa base, drones e sensores podem ser empregados de forma mais direcionada, localizando em campo as áreas críticas já identificadas por satélite como pontos de extração ilegal de ouro ou expansão criminosa sobre o território. A inteligência não substitui a presença estatal com a repressão policial, mas multiplicaria seu alcance e precisão, permitindo operações mais eficazes nas rotas do crime organizado.

A soberania brasileira na Amazônia depende hoje de um planejamento híbrido de segurança, que combine instrumentos clássicos com inteligência territorial e tecnologias autônomas. Integrar rastreamento por satélite e drones a um sistema robusto de regularização fundiária, aliado à presença estatal, permitirá ao país retomar o controle do território e enfrentar de forma coordenada o avanço das facções. Sem uma modernização que leve em consideração as novas formas de proteção do território e enfrentamento a ameaças à segurança, o Brasil continuará enfrentando as facções no escuro - e perdendo a batalha contra o crime.

 

*Entre 25 e 29 de agosto, o Instituto Millenium foi representado por Rafael Mendonça, mestrando em Políticas Públicas pelo Insper, na 5ª Summer School “Security and/or Human Rights: Rethinking Priorities in the Age of Uncertainty”, realizada em Mardin, no Sudeste da Turquia, próximo à fronteira com a Síria. O evento foi organizado pela Friedrich Naumann Foundation, vinculada ao Partido Liberal Alemão (FDP), em parceria com a Human Rights Academy, organização turca dedicada à formação de lideranças e promoção de debates sobre direitos humanos. Este artigo integra uma série de conteúdos baseados nas discussões promovidas no curso.