Donald Trump, presidente dos EUA, ao sair da Casa Branca, em 7 de março (Roberto Schmidt/AFP)
Instituto Millenium
Publicado em 14 de março de 2025 às 20h06.
As tarifas comerciais impostas pelo governo Trump costumam ser interpretadas como meramente uma forma de protecionismo econômico. No entanto, há um debate mais profundo por trás dessa estratégia, que envolve a segurança nacional dos Estados Unidos, a competitividade industrial e a rivalidade crescente com a China. Para entender melhor os fundamentos dessa política, seus impactos e possíveis consequências, o Instituto Millenium conversou com Fernando Ulrich.
Mestre em economia, especialista em mercado financeiro e sócio da Liberta Investimentos, Ulrich explica o raciocínio por trás das decisões da administração Trump, abordando os desafios enfrentados pelos Estados Unidos em um cenário de desindustrialização, valorização do dólar e as implicações geopolíticas dessas medidas. Além disso, discute os efeitos dessas políticas sobre a inflação e o custo de vida dos americanos, analisando se, de fato, essa estratégia pode fortalecer a economia do país ou se há alternativas mais eficazes.
Confira abaixo a entrevista completa:
Instituto Millenium: As tarifas comerciais impostas por Trump são frequentemente vistas como mero protecionismo. Mas há mais por trás dessa estratégia? Qual é o real objetivo do governo Trump?
Fernando Ulrich: É preciso entender o ponto de partida do presidente Trump, dos seus principais assessores econômicos e o diagnóstico que eles fazem da economia mundial e do comércio global. Qual é o grande problema, na visão deles? E aqui eu não estou entrando no julgamento de valor, mas sim entendendo a ótica deles e entendendo o racional para implementar tais políticas. Qual é o diagnóstico? Os Estados Unidos, nas últimas décadas, sofreram uma redução na sua base industrial, perda de empregos em vários setores importantes de manufatura, eletrônicos, metal, etc. Isso é um problema, na visão deles, porque leva, no extremo, a uma insegurança nacional.
Porque, como a gente pôde ver na pandemia, há problemas nas cadeias de fornecimento, países param de exportar. E se, em algum momento, os Estados Unidos se encontrarem em meio a um confronto, por exemplo, com a China, a capacidade de seguir importando, de manter as cadeias de suprimento funcionando, é fundamental. Então é uma questão de segurança nacional.
Aí como resolver este problema? Uma das ferramentas são as tarifas. Não é a única ferramenta, mas é uma das ferramentas. Eu digo que o Trump está correto na queixa que ele faz, que muitos países impõem tarifas aos Estados Unidos. Então, buscar uma redução das tarifas dos demais países seria benéfico para o comércio global e para os Estados Unidos também. E é uma desvantagem para os americanos, quando temos vários países impondo tarifas em setores que esses países consideram estratégicos e que também estão prejudicando a competitividade dos setores nos Estados Unidos. Então, por essa ótica, me parece que está acertada a ideia de impor uma tarifa retaliatória, que é essa ideia da reciprocidade de tarifas, para forçar os demais países ou a reduzir essas tarifas ou negociar algum outro acordo.
Então, hoje, quando se fala muito das tarifas, o pessoal enxerga apenas um protecionismo, um nacionalismo, um mercantilismo - e pode ser que o Trump acredite nessas ideias, mas não é apenas isso - tem algo a mais. Como ele está fazendo isso, a maneira, aí é um outro debate, mas as tarifas, na visão do Trump e dos seus principais assessores econômicos, têm este objetivo, de melhorar ou restaurar a base industrial americana para reduzir a vulnerabilidade da segurança nacional.
IM: A valorização da moeda costuma ser desejada pela população e, consequentemente, por governantes. Mas os Estados Unidos parecem seguir na direção oposta. Por quê? Em que momento uma moeda excessivamente forte deixa de ser vantajosa?
FU: Na verdade, a maior parte dos governantes não busca uma valorização de moeda, eles buscam até uma moeda mais competitiva e, portanto, buscam desvalorização das moedas. Claro que não uma desvalorização absurda, que leve a uma alta inflação, ou hiperinflação, mas uma moeda mais competitiva, praticamente todos os países buscam. O problema é que os Estados Unidos sofrem do mal de ter a moeda de reserva, que é tanto uma bênção, quanto uma maldição. É uma bênção porque eles têm o chamado privilégio exorbitante, podem emitir a moeda que o mundo inteiro aceita, então têm uma capacidade de endividamento muito maior, sem resultar em aumentos significativos na taxa de juros, esse é o ponto. Podem consumir mais do que produzem, exportando moeda e importando bens, mas o lado oposto dessa moeda, é que eles também acabam tendo a sua competitividade minada. Porque a moeda americana acaba sempre mais valorizada, ou relativamente mais valorizada, em relação às demais. Essa é uma das causas dessa desindustrialização americana. Tarifas são agravantes, mas eu diria que nem é a principal causa. A principal causa é justamente o dólar a ser a moeda de reserva do planeta. Então neste momento o que eles querem é buscar um enfraquecimento do dólar para que isso traga mais competitividade para os produtos americanos e tente reverter o movimento de desindustrialização, e isso ajude a forçar uma reindustrialização.
IM: No curto prazo, essas medidas encarecem produtos para os americanos, o que, em tese, não é politicamente favorável para um presidente. Trata-se de uma agenda pessoal de Trump ou reflete os interesses de apoiadores estratégicos e financiadores de campanha? Quem realmente se beneficia dessas decisões?
FU: Esse é um desafio que o Trump vai ter com seus assessores econômicos, de como vender essa agenda pros americanos. No curtíssimo prazo, um aumento de tarifas, sim, é inflacionário, representa um salto, um custo nos preços dos produtos importados. Então representa, sim, uma inflação pros americanos, embora seja pontual, não é uma inflação perene, porque não significa desvalorização constante da moeda, mas sim um reajuste de preço, um salto de preço. Agora, por que eu digo que é uma tarefa deles vender essa agenda? Porque vão ter que mostrar pros americanos que, ‘bom, esse aumento de preço que vocês podem sofrer, uma inflação maior, é um custo que nós precisamos assumir para reindustrializar os Estados Unidos e proteger indústrias estratégicas para a nação. A nossa prioridade é restaurar a base industrial, e talvez o custo para isso seja uma inflação no curto prazo maior’. É isso que eles terão que vender para a população, porque inflação, custo de vida mais elevado, é sempre impopular.
IM: Medidas similares já foram adotadas por outras grandes potências no passado? Se sim, quais foram os resultados e lições aprendidas?
FU: Nesse momento, eu diria que é algo sem precedentes na história da humanidade, em que a principal potência econômica e militar do planeta emite a moeda de reserva e essa moeda não tem mais lastro em nada. É uma era monetária diferente das demais, porque não há mais conversibilidade do dólar em ouro, não há mais a âncora no metal precioso e isso permite essa emissão de dólares sem limite técnico. Então, é algo muito diferente do que existiu no passado.
Nós tivemos dois acordos na década de 80, um para enfraquecer o dólar, que estava muito forte no ano de 85 e depois, em 87, o oposto, para impedir o enfraquecimento maior do dólar, porque aí o dólar perdeu muito valor. Naquele momento, isso aconteceu e foi mais fácil de executar porque foi um acordo multilateral, com as principais potências do planeta, todas aliadas dos Estados Unidos, então era mais fácil de executar. Agora, é bem mais difícil, porque chegar a um acordo multilateral, um novo arranjo monetário, requer grandes potências, especialmente a China, e a China não acho que estaria muito interessada em enfraquecer a sua moeda.
IM: Essas políticas para reforçar a “soberania nacional” surgem em um cenário de crescente tensão geopolítica. O governo americano teme uma dependência excessiva de insumos estrangeiros em um possível conflito, ou está apenas utilizando esse contexto para fortalecer sua narrativa e legitimar as medidas adotadas?
FU: Eu diria que Trump, sua administração e até o próprio establishment de inteligência dos Estados Unidos... há um consenso entre eles sobre o real e principal adversário dos Estados Unidos, que é a China. Se esse é o consenso, essa é a conclusão, como os Estados Unidos enfrentam esse adversário e como se preparam para um eventual confronto maior? Há, sim, um temor e uma busca por manter essa vantagem, a superioridade militar e econômica dos Estados Unidos, e como enfrentar a China. Então eu não diria que é apenas retórica, há uma preocupação genuína com a segurança nacional e como enfrentar um adversário como a China. E aí, para enfrentar, faz parte essa resiliência da base industrial e da cadeia de suprimentos.
IM: Considerando os objetivos que se pretende alcançar, qual a sua avaliação sobre essas políticas? Havia alternativas mais eficazes? Se estivesse na equipe econômica dos Estados Unidos, que estratégia sugeriria?
FU: É muito difícil responder essa pergunta. Eu entendo que seria necessário a redução das tarifas pelos demais países, uma uniformidade de tarifas comerciais. Isso seria importante e é um objetivo a ser perseguido, e se eu estivesse no lugar deles também perseguiria. Ao mesmo tempo, buscaria algum consenso, trazer os países para a mesa de negociação para um acordo multilateral e mudar o jogo monetário, mudar o arranjo monetário. Mas aí sou eu, Fernando, que nunca fui presidente, nunca exerci cargo político e realmente não concordo com o comportamento do Trump, não compactuo com ele, acho que ele é mais contraproducente e tem antagonizado e pode antagonizar muita gente. Porém, é cedo, muito precipitado para julgarmos o resultado final que ainda não temos. Teremos que aguardar mais alguns meses ou até o fim do mandato do Trump pra gente poder julgar, dizer ‘olha, ele conseguiu alcançar o que queria e isso foi bom para os Estados Unidos e para o mundo’. Não podemos dizer isso ainda.