Suprema Corte dos EUA revoga Doutrina Chevron: entenda as implicações
Instituto Millenium entrevista Vera Monteiro, professora de direito administrativo na FGV Direito SP
Publicado em 9 de julho de 2024 às, 13h37.
Na última sexta-feira, 28 de junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu revogar a doutrina Chevron, um precedente de 40 anos que dava às agências reguladoras federais autonomia para interpretar leis ambíguas. Esta decisão histórica reconfigura a dinâmica entre os poderes Judiciário e Executivo no país.
Para entender as implicações dessa decisão, o Instituto Millenium entrevistou Vera Monteiro, professora de direito administrativo na FGV Direito SP e especialista em administração pública. Monteiro explica que a doutrina Chevron permitia que as agências reguladoras, com sua expertise técnica, interpretassem leis ambíguas, oferecendo soluções informadas para questões complexas.
Com a revogação, o judiciário americano terá mais poder para revisar as decisões das agências, aumentando o controle judicial sobre normas regulatórias. Esta mudança traz desafios e benefícios, incluindo a necessidade de leis mais detalhadas e uma potencial redistribuição de poder entre os três poderes. Não perca a entrevista completa para uma análise aprofundada sobre este tema crucial.
Instituto Millenium: Para começar, você poderia nos explicar brevemente o que é a doutrina Chevron e por que a recente decisão da Suprema Corte dos EUA de derrubá-la tem sido tão debatida?
Vera Monteiro: A doutrina Chevron é famosa para quem estuda direito administrativo e administração pública. Ela tem origem em decisão de 1984 da Suprema Corte dos EUA. Seu nome vem do caso que a originou (Chevron U.S.A., Inc. v. Natural Resources Defense Council, Inc.).
A decisão estabeleceu que, quando uma lei editada pelo Congresso deixa em aberto certa questão técnica em setor regulado, cabe à agência reguladora escolher a melhor opção a ser seguida no caso concreto. O entendimento fixado à época é de que o judiciário, se provocado, deveria respeitar as decisões regulatórias. Na linguagem da Suprema Corte norte-americana, os tribunais deveriam garantir deferência à capacidade técnica das agências independentes. Foi a consolidação da administração pública especializada, com espaço próprio de atuação no desenho e implantação de políticas públicas.
O caso envolvia uma interpretação dada pela agência de proteção ambiental americana (Environamental Protection Agency – EPA) para o conceito de unidade poluidora referida em lei federal (o Clean Air Act, de 1977). Foi o reconhecimento de que, quando a lei não é clara, silente ou ambígua, a interpretação da agência deve prevalecer, desde que seja razoável. A decisão da Suprema Corte baseou-se na ideia de que, nesses casos, as agências independentes são institucionalmente mais competentes para resolver a questão que o judiciário, porque o que estaria em jogo não seria uma questão tipicamente jurídica. A deferência seria uma opção melhor porque a esfera administrativa teria expertise técnica e “political accountability” (por estar localizada no executivo), sendo mais apta, portanto, para resolver questões de política pública.
É um marco no reconhecimento da teoria da deferência, como dizem os norte-americanos. A doutrina está inserida em um debate mais amplo, que envolve a constitucionalidade da delegação de poder normativo a entes administrativos. Pela doutrina Chevron, se a lei não resolveu a questão, teria havido uma delegação implícita às agências independentes, com o reconhecimento de que elas teriam poder normativo.
O que tem sido debatido nos últimos anos na Suprema Corte é se essa ampla presunção de delegação implícita faz sentido em todo e qualquer caso, ou se ela deveria ser revista para conter mais parâmetros para a delegação. Esse debate não é novo e a própria doutrina Chevron não é aplicada pela Suprema Corte desde 2016.
Em 28 de junho, ao decidir o caso Loper Bright Enterprises et.al. v. Raimondo, Secretary of Commerce et. al., a Suprema Corte formalmente derrubou a doutrina Chevron. Entendeu que ela estava superada porque bloqueava indevidamente a análise do judiciário sobre normativos de agências independentes. A decisão é importante porque supõe-se que ela implicará no maior controle judicial sobre a ação normativa das agências independentes norte-americanas.
IM: A doutrina Chevron estabelecia que os tribunais deveriam deferir às interpretações razoáveis de agências federais sobre leis ambíguas. Com a sua derrubada, quais são as possíveis consequências para a governança e a implementação de políticas públicas nos Estados Unidos?
VM: Acho excessivo concluir que a derrubada da doutrina Chevron levará ao fim do Estado Administrativo e da atuação normativa das agências reguladoras independentes. O que a Suprema Corte avaliou é que é exagerado afirmar que o judiciário sempre deverá respeitar a interpretação da agência quando a lei for ambígua. Primeiro, porque a ambiguidade na lei pode envolver questão jurídica e, neste caso, o judiciário é o local próprio para decidir o conflito. Depois, porque poderá haver aspectos na decisão da agência que aprova regulação setorial que deveriam ser controláveis pelo judiciário, em decorrência de outra norma federal, o Administrative Procedure Act (1946).
Em outras palavras, a derrubada da doutrina Chevron não significa, numa primeira análise, deixar de reconhecer a expertise das agências reguladoras independentes, mas aceitar sua competência normativa a partir de outros critérios que, de algum modo, já existiam e já vinham sendo aplicados. Usando o nosso vocabulário, eu diria que a Suprema Corte quis deixar claro que o judiciário tem competência para avaliar se a discricionariedade dada pela lei à agência foi bem exercida, considerados os parâmetros jurídicos e respeitando o chamado mérito da decisão.
IM: No Brasil, a expressão "deferência judicial" não parece ser amplamente utilizada. Existe aqui alguma uma tradição de respeito à discricionariedade técnica das agências administrativas? Você poderia comentar sobre a presença ou ausência dessa deferência no direito administrativo brasileiro e como ela se compara ao contexto americano?
VM: A expressão “deferência judicial” é uma tradução literal da doutrina Chevron. No Brasil, nossa tradição jurídica e linguística usa outras expressões: “presunção de legitimidade dos atos administrativos”, “mérito do ato administrativo” e “discricionariedade técnica”.
A ideia geral, contudo, é a mesma, a de que o juiz, no exame do caso, não deve desconsiderar os fundamentos técnicos apresentados pela administração em favor de argumentos contrários, também de natureza técnica, levantados por particulares que questionam a norma administrativa ou a decisão. O juiz não deve tomar para si a tarefa de fazer escolhas técnico-políticas. Esta escolha a cargo da administração é o que chamamos de competência discricionária, sendo técnica porque foge ao âmbito do exame da estrita análise jurídica. Isto importa em aceitar que o controle judicial existe, mas é limitado: havendo mais de uma opção válida, o juízo técnico de conveniência e oportunidade deve ser feita pelo gestor público, diante do caso concreto, sempre considerando o ordenamento jurídico como um todo. Dito de outro modo, é o tal mérito do ato administrativo, existente naqueles casos em que a lei atribuiu ao gestor a competência para escolher a melhor decisão entre as várias juridicamente admitidas e, por isso, não deve ser substituída por critérios de conveniência do juiz.
IM: Considerando que a decisão da Suprema Corte dos EUA pode gerar um impacto significativo na maneira como as leis são interpretadas e implementadas, qual poderia ser o efeito dessa mudança na segurança jurídica e na previsibilidade regulatória tanto nos EUA quanto potencialmente no Brasil?
VM: Vamos precisar acompanhar para saber o que de fato a derrubada da doutrina Chevron significará para o chamado Estado Administrativo.
Mas arrisco a dizer que, apesar da sua simbologia, não haverá a pura e simples negação da discricionariedade técnica das agências, com a retirada delas da competência integrativa sobre as aberturas deixadas pelo legislador. A Suprema Corte não acha que se deveria desprezar o conhecimento e experiência das agências reguladoras independentes (isto está dito expressamente na decisão de junho). A decisão é resultado de uma disputa por protagonismo. A Suprema Corte entendeu que era hora de rever a doutrina que, formalmente, alijava o judiciário do controle da atuação normativa das agências – mas, convenhamos, acabava não impedindo que ela de fato acontecesse em muitos casos concretos.
IM: A recente decisão da Suprema Corte dos EUA altera a dinâmica de competência entre os poderes ao permitir que as cortes interpretem as lacunas nas regulamentações, anteriormente preenchidas pelas agências do Executivo. Isso implica um aumento do poder tanto do Legislativo, que precisará criar leis mais detalhadas, quanto do Judiciário, que terá maior papel na interpretação dessas regulamentações. Como você vê esse novo arranjo de competências entre o Legislativo, Executivo e Judiciário no contexto do direito administrativo? Quais são os desafios e benefícios dessa redistribuição de poderes?
VM: É claro que grandes temas precisam ser decididos pelo Congresso, que ora consegue mais consenso em torno de um assunto, ora não. Em geral, leis ambíguas revelam o consenso possível.
Aplicar a lei no caso concreto não é uma atividade mecânica. Administrar é também criar, obviamente dentro dos limites fixados pelo Direito como um todo. Como o legislativo não consegue prever todas as hipóteses e esgotar todas as escolhas na lei, é normal que a própria legislação outorgue espaço de avaliação e deliberação à administração pública. Cada vez mais há o reconhecimento de que o legislador não tem mais o monopólio da função normativa e, no mundo complexo, a administração é mais uma dessas fontes normativas.
Assim, é próprio das disputas de poder ora afirmar que administração pública pode mais, ora afirmar que o judiciário pode mais. É um jogo de tabuleiro, no qual os protagonistas vão usando as peças a seu favor e encontrando espaços de interferência.
IM: Para finalizar, qual é o papel das agências versus o papel dos tribunais na proteção dos direitos individuais e na implementação de políticas públicas? A decisão da Suprema Corte americana pode servir de exemplo ou alerta para outros países que enfrentam desafios semelhantes em suas próprias jurisdições?
VM: O debate é sobre a separação de poderes e sobre o local próprio para o desenho e implementação de políticas públicas. Juízes têm habilidades jurídicas, são treinados para dizer o direito no caso concreto. Sua formação acadêmica e profissional é pela lente da legalidade, para atuar no universo estritamente jurídico. Seu ferramental não é o do gestor público, cujas habilidades e competências são outras. É por isso que a legislação em geral atribui ao gestor uma série de competências para definição de políticas públicas. Um exemplo é a definição de critérios e condições para registro e controle da qualidade dos medicamentos genéricos, cuja responsabilidade, no Brasil, é da ANVISA. É desse órgão, e não de outro, a responsabilidade para cuidar da vigilância sanitária em nível federal.
A discussão sobre os limites do controle da atividade normativa das agências reguladoras pelo judiciário tem a ver com o desenho institucional do Estado e a especialização funcional dos órgãos do Estado. Vale lembrar que a doutrina Chevron nasceu em um governo conservador (Regan), cuja pauta era a desregulação, para reinterpretar o Clean Air Act e reduzir o ônus regulatório imposto pela EPA que recaía sobre as indústrias poluidoras. Na origem, os críticos da doutrina eram os liberais progressistas, que queriam que o judiciário revisse a norma mais branda, por assim dizer, editada pela agência. Nos anos 2010, os críticos passaram a ser os conservadores, que não estavam no poder na Era Obama e queriam um judiciário mais ativista (e não com o freio puxado) para rever os regulamentos editados pelas agências reguladoras.
Nessa disputa entre executivo e judiciário, talvez o alerta seja para a importância do papel do Congresso, já que é o espaço por ele deixado que está sendo disputado.