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“Sem faixas ou cartazes, manifestação reflete o medo no Brasil atual”, avalia Schüler

Entrevistamos o cientista político Fernando Schüler, sobre a manifestação ocorrida neste domingo, na Av. Paulista

Fernando Schüler: “Sem faixas ou cartazes, manifestação reflete o medo no Brasil atual” (Acervo pessoal)
Instituto Millenium

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Publicado em 27 de fevereiro de 2024 às 13h40.

Pela primeira vez desde os tumultuados eventos de 8 de janeiro, a oposição conseguiu formar quórum para uma grande manifestação de rua. Como definir este grupo? Bolsonaristas, golpistas, apenas brasileiros preocupados com os rumos de nossa democracia, ou uma grande mistura? O Instituto Millenium entrevistou o cientista político Fernando Schüler, para tentar entender melhor a dinâmica e o tamanho do que aconteceu neste domingo, assim como seus prováveis desdobramentos. Mestre e doutor pela UFRGS, e professor do Insper, Schüler se mostrou preocupado com a “prudência” nos discursos e a falta de cartazes.

Schüler destacou a ocorrência incomum de uma grande aglomeração de pessoas sem o uso de cartazes ou faixas, interpretando isso como um sinal de temores prevalentes na sociedade. "Em uma democracia plena, as pessoas não deveriam ter medo de expor suas visões, por absurdas que sejam, por medo de sofrerem algum tipo de represália por parte do Estado."

Na opinião do especialista, a quantidade exata de manifestantes é pouco relevante, dado que foi a maior manifestação já vista no Brasil há dois anos. Segundo ele, foi uma grande demonstração de força política de Jair Bolsonaro, apesar de se encontrar inelegível e acuado pelas investigações conduzidas pela PF. Segundo Schüler, a grande maioria dos manifestantes estava lá atendendo a um chamado do ex-presidente, mas nuances não podem ser ignoradas. Ele destaca que uma renovação de lideranças políticas, notadamente Lula e Bolsonaro, seria o melhor para o país. Confira abaixo a entrevista.

Instituto Millenium: Considerando as discussões em torno da quantidade de participantes nas manifestações de ontem na Avenida Paulista, em que medida esse dado é de fato relevante para compreender o impacto ou a influência desses eventos no cenário político?

Fernando Schüler: Pablo Ortellado, pesquisador da USP, que fez uma das medições do ato, resumiu bem a questão: “ foi a maior manifestação que a gente mediu nos dois últimos anos, desde que a gente mede manifestações políticas na cidade de São Paulo [...] foi enorme, não precisaria nem ter contado”. É um pouco irrelevante ter o número exato de pessoas presentes. É evidente que foi uma demonstração de força política. Goste-se ou não. Este é um dado do tabuleiro político brasileiro. Bolsonaro pode estar inelegível, mas é hoje o maior eleitor da direita ou do conservadorismo brasileiro. Isto explica, entre outras coisas, a forte presença de políticos e pré-candidatos nas eleições deste ano, na Paulista.

IM: Acredita que foi genuinamente uma manifestação de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro, ou, a exemplo das manifestações de 2013, pautas difusas se misturaram? Na sua opinião, o que realmente levou aquelas pessoas à Paulista?

FS: Não há dúvidas de que a maior parte das pessoas que estavam lá atenderam a uma chamada do ex-Presidente, e não há dúvida de que são seus apoiadores. Mas há certas nuances, neste cenário. Há um segmento de forte oposição ao governo e ao PT, mas que eventualmente não chancela todas as posições de Bolsonaro. O Partido Novo, de um modo geral, expressa essa posição. Há um segmento que busca uma reconfiguração do campo da direita, a partir de lideranças como Tarcísio, Zema, Caiado, mas reconhece que Bolsonaro prossegue sendo um personagem estratégico. E há, por óbvio, lideranças que fazem essencialmente um cálculo político, mirando as eleições deste ano ou de 2026. O que vimos no domingo é um pouco disso tudo. A verdade é que o País continua ultra polarizado. E que não há no horizonte, ao menos no plano nacional, espaços para alternativas independentes dos dois grandes polos políticos representados por Lula e Bolsonaro.

IM: A ênfase dos discursos durante a manifestação foi notavelmente direcionada ao Supremo Tribunal Federal (STF), mais do que ao poder Executivo. O que essa direção sugere sobre o estado atual da democracia brasileira e a separação de poderes no país?

FS: Há alguns pontos relevantes, aí. O primeiro deles é o estranho fenômeno de uma multidão reunida sem cartazes ou faixas. Retrato do clima de medo em que vivemos, no País. Em uma democracia plena, as pessoas não deveriam ter medo de expor suas visões, por absurdas que sejam, por medo de sofrerem algum tipo de represália por parte do Estado. Outro ponto é a “prudência” nos discursos. Prudência e a moderação são virtudes, quando espontâneas; quando impostas pelo medo, são apenas reflexos de um traço “iliberal” de nossa democracia. Sobre a ênfase no Supremo e no judiciário, é outro sinal preocupante. O Brasil dos últimos anos se tornou um País estranho. Temos inquéritos sem prazo, que investigam qualquer coisa e dão guarida à censura prévia, banimentos e prisões. Isto a partir de interpretações muito abertas do texto legal; temos um forte posicionamento político de ministros do Supremo, bem exemplificado naquela frase “nós derrotamos o bolsonarismo”. E, mesmo neste domingo, tivemos um jornalista português interrogado no Aeroporto de Guarulhos, pela Polícia Federal, sobre suas opiniões políticas. Qual o sentido disso tudo? De minha parte, digo apenas uma frase: em uma democracia liberal, o juiz jamais deveria entrar em campo. O rigor da lei e a imparcialidade são a melhor maneira de proteger a democracia e preservar a confiança nas instituições. Dito isto, é evidente que qualquer ato que contrarie a Constituição e as leis, abuso de poder aí incluído, deve ser investigado. Com imparcialidade, direito ao contraditório e o devido processo legal.

IM: Avalia algum impacto político a partir daqui? Seja no desenho da oposição para 2026, seja na conduta do Congresso, até então meio tímido, ou até mesmo no andamento dos processos que poderão culminar na prisão de Bolsonaro?

FS: É certo que Bolsonaro se consolida como líder da oposição e como fator decisivo para a disputa eleitoral deste ano. Ricardo Nunes, Romeu Zema, e o próprio Ronaldo Caiado, foram ao ato, imagino, com esta perspectiva. A política, por vezes, requer escolhas de risco. Bolsonaro resolveu correr um risco. Testar sua liderança. E se saiu bem, ao menos politicamente. Sinalizou para sua base que a ressaca da grande derrota deve ficar para trás. O impacto sobre o Congresso é diferente. Não acho que um evento como este tenha nenhum impacto significativo sobre o jogo de forças no Congresso.

IM: Se Bolsonaro for mesmo preso, qual será o impacto disso nas eleições de 2026? Acredita que a direita perderia de vez seu único nome competitivo ou ganharia a oportunidade de emplacar um candidato com menos rejeição?

FS: Bolsonaro está inelegível para 2026, e não vejo como isso possa ser revertido. Então é evidente que se abre uma corrida para saber quem ocupará este espaço. No domingo, na Paulista, estavam alguns dos pretendentes. Ronaldo Caiado e Romeu Zema são os exemplos mais evidentes. Observando isso tudo de um ângulo um pouco mais aberto, penso que uma renovação de lideranças seria ótima para o País. Isto vale para Bolsonaro e para Lula. O Brasil deveria aprender a lição dada por George Washington. Depois de um tempo no poder, é preciso abrir mão do poder. Seria melhor para o Brasil ter um debate entre Tarcísio e Haddad, por exemplo, do que uma reedição do debate Lula e Bolsonaro. Seria melhor ter o foco no futuro, e não em tudo que passou nos últimos anos. Enquanto não entendermos isso, vamos continuar alimentando a polarização doentia que marcou e ainda marca nossa vida política.

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Pela primeira vez desde os tumultuados eventos de 8 de janeiro, a oposição conseguiu formar quórum para uma grande manifestação de rua. Como definir este grupo? Bolsonaristas, golpistas, apenas brasileiros preocupados com os rumos de nossa democracia, ou uma grande mistura? O Instituto Millenium entrevistou o cientista político Fernando Schüler, para tentar entender melhor a dinâmica e o tamanho do que aconteceu neste domingo, assim como seus prováveis desdobramentos. Mestre e doutor pela UFRGS, e professor do Insper, Schüler se mostrou preocupado com a “prudência” nos discursos e a falta de cartazes.

Schüler destacou a ocorrência incomum de uma grande aglomeração de pessoas sem o uso de cartazes ou faixas, interpretando isso como um sinal de temores prevalentes na sociedade. "Em uma democracia plena, as pessoas não deveriam ter medo de expor suas visões, por absurdas que sejam, por medo de sofrerem algum tipo de represália por parte do Estado."

Na opinião do especialista, a quantidade exata de manifestantes é pouco relevante, dado que foi a maior manifestação já vista no Brasil há dois anos. Segundo ele, foi uma grande demonstração de força política de Jair Bolsonaro, apesar de se encontrar inelegível e acuado pelas investigações conduzidas pela PF. Segundo Schüler, a grande maioria dos manifestantes estava lá atendendo a um chamado do ex-presidente, mas nuances não podem ser ignoradas. Ele destaca que uma renovação de lideranças políticas, notadamente Lula e Bolsonaro, seria o melhor para o país. Confira abaixo a entrevista.

Instituto Millenium: Considerando as discussões em torno da quantidade de participantes nas manifestações de ontem na Avenida Paulista, em que medida esse dado é de fato relevante para compreender o impacto ou a influência desses eventos no cenário político?

Fernando Schüler: Pablo Ortellado, pesquisador da USP, que fez uma das medições do ato, resumiu bem a questão: “ foi a maior manifestação que a gente mediu nos dois últimos anos, desde que a gente mede manifestações políticas na cidade de São Paulo [...] foi enorme, não precisaria nem ter contado”. É um pouco irrelevante ter o número exato de pessoas presentes. É evidente que foi uma demonstração de força política. Goste-se ou não. Este é um dado do tabuleiro político brasileiro. Bolsonaro pode estar inelegível, mas é hoje o maior eleitor da direita ou do conservadorismo brasileiro. Isto explica, entre outras coisas, a forte presença de políticos e pré-candidatos nas eleições deste ano, na Paulista.

IM: Acredita que foi genuinamente uma manifestação de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro, ou, a exemplo das manifestações de 2013, pautas difusas se misturaram? Na sua opinião, o que realmente levou aquelas pessoas à Paulista?

FS: Não há dúvidas de que a maior parte das pessoas que estavam lá atenderam a uma chamada do ex-Presidente, e não há dúvida de que são seus apoiadores. Mas há certas nuances, neste cenário. Há um segmento de forte oposição ao governo e ao PT, mas que eventualmente não chancela todas as posições de Bolsonaro. O Partido Novo, de um modo geral, expressa essa posição. Há um segmento que busca uma reconfiguração do campo da direita, a partir de lideranças como Tarcísio, Zema, Caiado, mas reconhece que Bolsonaro prossegue sendo um personagem estratégico. E há, por óbvio, lideranças que fazem essencialmente um cálculo político, mirando as eleições deste ano ou de 2026. O que vimos no domingo é um pouco disso tudo. A verdade é que o País continua ultra polarizado. E que não há no horizonte, ao menos no plano nacional, espaços para alternativas independentes dos dois grandes polos políticos representados por Lula e Bolsonaro.

IM: A ênfase dos discursos durante a manifestação foi notavelmente direcionada ao Supremo Tribunal Federal (STF), mais do que ao poder Executivo. O que essa direção sugere sobre o estado atual da democracia brasileira e a separação de poderes no país?

FS: Há alguns pontos relevantes, aí. O primeiro deles é o estranho fenômeno de uma multidão reunida sem cartazes ou faixas. Retrato do clima de medo em que vivemos, no País. Em uma democracia plena, as pessoas não deveriam ter medo de expor suas visões, por absurdas que sejam, por medo de sofrerem algum tipo de represália por parte do Estado. Outro ponto é a “prudência” nos discursos. Prudência e a moderação são virtudes, quando espontâneas; quando impostas pelo medo, são apenas reflexos de um traço “iliberal” de nossa democracia. Sobre a ênfase no Supremo e no judiciário, é outro sinal preocupante. O Brasil dos últimos anos se tornou um País estranho. Temos inquéritos sem prazo, que investigam qualquer coisa e dão guarida à censura prévia, banimentos e prisões. Isto a partir de interpretações muito abertas do texto legal; temos um forte posicionamento político de ministros do Supremo, bem exemplificado naquela frase “nós derrotamos o bolsonarismo”. E, mesmo neste domingo, tivemos um jornalista português interrogado no Aeroporto de Guarulhos, pela Polícia Federal, sobre suas opiniões políticas. Qual o sentido disso tudo? De minha parte, digo apenas uma frase: em uma democracia liberal, o juiz jamais deveria entrar em campo. O rigor da lei e a imparcialidade são a melhor maneira de proteger a democracia e preservar a confiança nas instituições. Dito isto, é evidente que qualquer ato que contrarie a Constituição e as leis, abuso de poder aí incluído, deve ser investigado. Com imparcialidade, direito ao contraditório e o devido processo legal.

IM: Avalia algum impacto político a partir daqui? Seja no desenho da oposição para 2026, seja na conduta do Congresso, até então meio tímido, ou até mesmo no andamento dos processos que poderão culminar na prisão de Bolsonaro?

FS: É certo que Bolsonaro se consolida como líder da oposição e como fator decisivo para a disputa eleitoral deste ano. Ricardo Nunes, Romeu Zema, e o próprio Ronaldo Caiado, foram ao ato, imagino, com esta perspectiva. A política, por vezes, requer escolhas de risco. Bolsonaro resolveu correr um risco. Testar sua liderança. E se saiu bem, ao menos politicamente. Sinalizou para sua base que a ressaca da grande derrota deve ficar para trás. O impacto sobre o Congresso é diferente. Não acho que um evento como este tenha nenhum impacto significativo sobre o jogo de forças no Congresso.

IM: Se Bolsonaro for mesmo preso, qual será o impacto disso nas eleições de 2026? Acredita que a direita perderia de vez seu único nome competitivo ou ganharia a oportunidade de emplacar um candidato com menos rejeição?

FS: Bolsonaro está inelegível para 2026, e não vejo como isso possa ser revertido. Então é evidente que se abre uma corrida para saber quem ocupará este espaço. No domingo, na Paulista, estavam alguns dos pretendentes. Ronaldo Caiado e Romeu Zema são os exemplos mais evidentes. Observando isso tudo de um ângulo um pouco mais aberto, penso que uma renovação de lideranças seria ótima para o País. Isto vale para Bolsonaro e para Lula. O Brasil deveria aprender a lição dada por George Washington. Depois de um tempo no poder, é preciso abrir mão do poder. Seria melhor para o Brasil ter um debate entre Tarcísio e Haddad, por exemplo, do que uma reedição do debate Lula e Bolsonaro. Seria melhor ter o foco no futuro, e não em tudo que passou nos últimos anos. Enquanto não entendermos isso, vamos continuar alimentando a polarização doentia que marcou e ainda marca nossa vida política.

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