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Regulações trabalhistas em aplicativos de transporte e entregas

Entrevistamos Thiago Camargo, advogado, mestre em Administração Pública, diretor da Prospectiva Consultoria e sócio do escritório ALE Advogados

Apps: o governo assumiu um discurso do ponto de vista trabalhista (Thiago Camargo/Divulgação)
DR

Da Redação

Publicado em 13 de fevereiro de 2023 às 17h52.

Regulação de aplicativos de transportes e entregas é um tema que, de tempos em tempos, voltam à tona. Desta vez, o governo assumiu um discurso do ponto de vista trabalhista. Uma regulação nesse sentido é mais complexa do que pode parecer, à primeira vista, mexendo não apenas com as relações entre motoristas e aplicativos, mas também com o público consumidor. Para entender melhor o assunto, e como ele vem sendo tratado no mundo, entrevistamos o especialista Thiago Camargo, que é advogado, mestre em Administração Pública, diretor da Prospectiva Consultoria e sócio do escritório ALE Advogados. Confira abaixo:

O governo tem falado muito em implementar algum tipo de regulação trabalhista a aplicativos de transporte, como o Uber. Qual a agenda por trás das falas?

Thiago Camargo - A regulação não seria só sobre aplicativos de transporte, mas de gig economy como um todo, já que muito provavelmente avançaria sobre outras plataformas, como as de entrega de comida. A agenda, inicialmente, é garantir cobertura previdenciária para as pessoas que trabalham nessas plataformas. No passado, as próprias plataformas, através de associações, negociaram com setores do congresso um projeto de lei para que houvesse partilha da contribuição previdenciária, mas o projeto depois não foi adiante. Entidades ligadas aos trabalhadores, aliás, foram contra a iniciativa. Lembrando que esse tipo de iniciativa promete benefício ao trabalhador e entrega benefício ao governo (aumento de contribuições previdenciárias), é bem provável que o governo siga adiante com a tentativa (assim como houve iniciativa de bastidores no governo passado).

Quais os possíveis impactos de mudanças normativas para a) competitividade de mercado, b) disponibilidade de opções para consumidores e c) para a viabilidade econômica dos atuais motoristas?

TC - Ao aumentar a barra regulatória, é natural que haja diminuição de agentes de mercado e, com isso, haja diminuição de competidores e opções de escolha para consumidores. Além da possível saída de atuais participantes do mercado, aumento de regulação inibe a inovação e dificulta que novos entrantes participem do mercado. Por outro lado, a consolidação desses mercados tem sido um caminho natural, independente de iniciativas regulatórias. Tivemos recentemente a saída de empresas grandes do mercado no Brasil e em outros países (Uber Eats saindo do Brasil ou iFood saindo da Colômbia), e esses movimentos aconteceram mais por dificuldade da empresa em conseguir o market share necessário para lucratividade da atividade, e menos por questões regulatórias. Do ponto de vista de viabilidade econômica para os atuais motoristas, tudo depende de como será feita a regulação. Se a cobertura previdenciária for dividida entre empresas e trabalhadores, isso pode causar um mal-estar com parte dos trabalhadores que não gostariam de ter que fazer essa contribuição previdenciária. Se a cobertura ficar somente por conta das empresas, é possível que as empresas repassem esse custo para os consumidores (aumentando os preços) ou para os próprios trabalhadores (aumentando a parcela do pagamento que fica com a plataforma). No caso de aplicativos de entrega de comida, é provável que as plataformas aumentem o percentual cobrado do restaurante para a entrega, o que, por sua vez, deve incentivar a restaurantes cobrarem preços maiores nas plataformas.

Olhando para regulações que estão sendo feitas fora do Brasil, poderia citar exemplos - dos mais rígidos aos mais inovadores - e suas respectivas consequências?

TC - O que aconteceu de mais rígido em relação aos trabalhadores de aplicativos não veio necessariamente por iniciativa regulatória, mas por decisões judiciais, como no Reino Unido, com a decisão de reconhecer motoristas como empregados enquanto trabalham na plataforma. O que aconteceu de mais inovador em regulação de aplicativos de transporte não avançou sobre a questão trabalhista, mas foram as regulações para permitir que aplicativos de transporte e serviços tradicionais de táxi coexistissem. Nesse momento muitos países, especialmente na América Latina, discutem regulação da chamada gig economy. Projetos de Lei são discutidos, pelo menos, no Brasil, México, Argentina, Chile, Colômbia e Peru. É provável que exista regulação muito parecida nesses países. É difícil saber quais são as consequências, pois o aumento de custos não é necessariamente ruim para empresas, quando elas possuem grande poder de mercado. Se por um lado, pode, em um primeiro momento, impactar lucro e preço final, por outro lado pode aumentar a consolidação do mercado e dar ainda mais poder de mercado dessa empresa. Hoje o app de transporte X compete com o app Y, o app Z e os táxis. Se no futuro a consolidação chegar a um ponto em que só o app X sobreviva, ele vai competir só com serviço de táxi, então ele pode aumentar preços e tirar maior proveito da escassez de táxis em grandes eventos, por exemplo.

Como você enxerga a relação de trabalho entre o motorista e o aplicativo? Qual seria uma boa política pública para o setor?

TC - Relação de trabalho é um tema legal e existem juristas estudando e dando seus pontos de vista sobre a existência ou não de vínculo trabalhista. O que mais me interessa é o ponto de satisfação. Estamos com uma das menores taxas de desemprego das últimas décadas e isso não acontece por expansão da ocupação, mas por retração da força de trabalho. Pode ser que as pessoas estejam procurando menos trabalhos formais (com carteira assinada) e procurando opções onde contem com menor proteção legal, mas com maiores ganhos. Eu acho que a melhor política pública só pode ser construída com diálogo. O diálogo precisa incluir empresas e trabalhadores, o que já impõe uma dificuldade, já que não há um modelo representativo confiável para saber quem fala em nome dos trabalhadores. Mas o melhor seria (e não sei se é possível alcançar): uma regulação que não impacte nas escolhas e no custo para o consumidor, ao mesmo tempo que garanta proteções para os trabalhadores dessas áreas. Talvez seja uma saída que os trabalhadores se constituam em MEI's. Teriam acesso a crédito, cobertura do INSS, pagariam menos impostos, por outro lado as obrigações burocráticas podem afastar algumas pessoas, então garantir o apoio ao cumprimento das obrigações burocráticas (e aí as plataformas poderiam contribuir bastante) seria um ponto chave para que mais trabalhadores se constituíssem em MEI.

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Regulação de aplicativos de transportes e entregas é um tema que, de tempos em tempos, voltam à tona. Desta vez, o governo assumiu um discurso do ponto de vista trabalhista. Uma regulação nesse sentido é mais complexa do que pode parecer, à primeira vista, mexendo não apenas com as relações entre motoristas e aplicativos, mas também com o público consumidor. Para entender melhor o assunto, e como ele vem sendo tratado no mundo, entrevistamos o especialista Thiago Camargo, que é advogado, mestre em Administração Pública, diretor da Prospectiva Consultoria e sócio do escritório ALE Advogados. Confira abaixo:

O governo tem falado muito em implementar algum tipo de regulação trabalhista a aplicativos de transporte, como o Uber. Qual a agenda por trás das falas?

Thiago Camargo - A regulação não seria só sobre aplicativos de transporte, mas de gig economy como um todo, já que muito provavelmente avançaria sobre outras plataformas, como as de entrega de comida. A agenda, inicialmente, é garantir cobertura previdenciária para as pessoas que trabalham nessas plataformas. No passado, as próprias plataformas, através de associações, negociaram com setores do congresso um projeto de lei para que houvesse partilha da contribuição previdenciária, mas o projeto depois não foi adiante. Entidades ligadas aos trabalhadores, aliás, foram contra a iniciativa. Lembrando que esse tipo de iniciativa promete benefício ao trabalhador e entrega benefício ao governo (aumento de contribuições previdenciárias), é bem provável que o governo siga adiante com a tentativa (assim como houve iniciativa de bastidores no governo passado).

Quais os possíveis impactos de mudanças normativas para a) competitividade de mercado, b) disponibilidade de opções para consumidores e c) para a viabilidade econômica dos atuais motoristas?

TC - Ao aumentar a barra regulatória, é natural que haja diminuição de agentes de mercado e, com isso, haja diminuição de competidores e opções de escolha para consumidores. Além da possível saída de atuais participantes do mercado, aumento de regulação inibe a inovação e dificulta que novos entrantes participem do mercado. Por outro lado, a consolidação desses mercados tem sido um caminho natural, independente de iniciativas regulatórias. Tivemos recentemente a saída de empresas grandes do mercado no Brasil e em outros países (Uber Eats saindo do Brasil ou iFood saindo da Colômbia), e esses movimentos aconteceram mais por dificuldade da empresa em conseguir o market share necessário para lucratividade da atividade, e menos por questões regulatórias. Do ponto de vista de viabilidade econômica para os atuais motoristas, tudo depende de como será feita a regulação. Se a cobertura previdenciária for dividida entre empresas e trabalhadores, isso pode causar um mal-estar com parte dos trabalhadores que não gostariam de ter que fazer essa contribuição previdenciária. Se a cobertura ficar somente por conta das empresas, é possível que as empresas repassem esse custo para os consumidores (aumentando os preços) ou para os próprios trabalhadores (aumentando a parcela do pagamento que fica com a plataforma). No caso de aplicativos de entrega de comida, é provável que as plataformas aumentem o percentual cobrado do restaurante para a entrega, o que, por sua vez, deve incentivar a restaurantes cobrarem preços maiores nas plataformas.

Olhando para regulações que estão sendo feitas fora do Brasil, poderia citar exemplos - dos mais rígidos aos mais inovadores - e suas respectivas consequências?

TC - O que aconteceu de mais rígido em relação aos trabalhadores de aplicativos não veio necessariamente por iniciativa regulatória, mas por decisões judiciais, como no Reino Unido, com a decisão de reconhecer motoristas como empregados enquanto trabalham na plataforma. O que aconteceu de mais inovador em regulação de aplicativos de transporte não avançou sobre a questão trabalhista, mas foram as regulações para permitir que aplicativos de transporte e serviços tradicionais de táxi coexistissem. Nesse momento muitos países, especialmente na América Latina, discutem regulação da chamada gig economy. Projetos de Lei são discutidos, pelo menos, no Brasil, México, Argentina, Chile, Colômbia e Peru. É provável que exista regulação muito parecida nesses países. É difícil saber quais são as consequências, pois o aumento de custos não é necessariamente ruim para empresas, quando elas possuem grande poder de mercado. Se por um lado, pode, em um primeiro momento, impactar lucro e preço final, por outro lado pode aumentar a consolidação do mercado e dar ainda mais poder de mercado dessa empresa. Hoje o app de transporte X compete com o app Y, o app Z e os táxis. Se no futuro a consolidação chegar a um ponto em que só o app X sobreviva, ele vai competir só com serviço de táxi, então ele pode aumentar preços e tirar maior proveito da escassez de táxis em grandes eventos, por exemplo.

Como você enxerga a relação de trabalho entre o motorista e o aplicativo? Qual seria uma boa política pública para o setor?

TC - Relação de trabalho é um tema legal e existem juristas estudando e dando seus pontos de vista sobre a existência ou não de vínculo trabalhista. O que mais me interessa é o ponto de satisfação. Estamos com uma das menores taxas de desemprego das últimas décadas e isso não acontece por expansão da ocupação, mas por retração da força de trabalho. Pode ser que as pessoas estejam procurando menos trabalhos formais (com carteira assinada) e procurando opções onde contem com menor proteção legal, mas com maiores ganhos. Eu acho que a melhor política pública só pode ser construída com diálogo. O diálogo precisa incluir empresas e trabalhadores, o que já impõe uma dificuldade, já que não há um modelo representativo confiável para saber quem fala em nome dos trabalhadores. Mas o melhor seria (e não sei se é possível alcançar): uma regulação que não impacte nas escolhas e no custo para o consumidor, ao mesmo tempo que garanta proteções para os trabalhadores dessas áreas. Talvez seja uma saída que os trabalhadores se constituam em MEI's. Teriam acesso a crédito, cobertura do INSS, pagariam menos impostos, por outro lado as obrigações burocráticas podem afastar algumas pessoas, então garantir o apoio ao cumprimento das obrigações burocráticas (e aí as plataformas poderiam contribuir bastante) seria um ponto chave para que mais trabalhadores se constituíssem em MEI.

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