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Reflexões de Julio Isamit sobre a rejeição de uma nova constituição no Chile

No domingo, o povo chileno rejeitou uma nova constituição em plebiscito, marcando a segunda rejeição em uma sequência iniciada em 2019

Julio Isamit (Acervo pessoal/Reprodução)
Instituto Millenium

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Publicado em 20 de dezembro de 2023 às 13h55.

No domingo, 17 de dezembro, o povo chileno rejeitou uma nova constituição em plebiscito, marcando a segunda rejeição em uma sequência iniciada em 2019, quando o país vivenciou um período de intensa crise política. Neste contexto, o Instituto Millenium entrevistou Julio Isamit, advogado e ex-ministro chileno. Aos 30 anos, Isamit já ocupou vários cargos no serviço público, com destaque para o de Ministro de Bienes Nacionales no governo do presidente Sebastián Piñera, e atualmente aprofunda seus estudos em políticas públicas na Universidade de Chicago.

O resultado do referendo representa um marco crítico, sendo a segunda vez que os chilenos votam contra alterações na Constituição em um momento de acalorados debates sobre governança e futuro político do país. A proposta rejeitada buscava substituir a atual Carta Magna, que, segundo críticos, tem suas raízes na ditadura de Pinochet.

Na entrevista, Isamit analisa os desafios do processo de reforma constitucional iniciado em 2019, discute as consequências da recente rejeição da nova Constituição para os partidos políticos e o futuro do Chile, e reflete sobre as lições que podem ser aprendidas para futuras tentativas de reforma constitucional. A análise de Isamit oferece uma visão crítica e detalhada sobre o processo constitucional, que parece se encerrar este ano.

Instituto Millenium: Quais foram os principais desafios enfrentados durante o processo de reforma constitucional iniciado em 2019 e como estes influenciaram o resultado do referendo do dia 17 de dezembro?

Julio Isamit: Em outubro de 2019, o governo do presidente Sebastián Piñera experienciou o que hoje é considerado quase uma verdadeira revolução. Trata-se da tentativa de mudar a ordem constitucional vigente pela força, manifestada principalmente através de protestos nas ruas, os quais incluíram inúmeros atos de violência, saques, incêndios de locais públicos, incêndio do metrô de Santiago, saques de supermercados e destruição de infraestrutura pública e privada.

Nesse período, em outubro e novembro de 2019, emergiu na esfera política a ideia generalizada de que o problema chileno era um problema constitucional. Isso se deu, em parte, pela insistência da esquerda e da extrema-esquerda em concentrar todos os problemas do país no debate constitucional e, de certa forma, pela fragilidade dos defensores da liberdade, da centro-direita, em proteger não só a constituição política vigente, mas sobretudo a ordem constitucional e o Estado de Direito. E por que menciono novembro de 2019 para compreender os principais desafios enfrentados nesse processo entre 2019 e 2023? O maior desafio foi a distância dos cidadãos comuns em relação a essa discussão, que lhes parecia totalmente distante e elitista.

Outro grande desafio ocorreu quando a elite política atribuiu cada problema do país, ao longo de 5, 10, 15, 20 anos, ao problema constitucional. Isso gerou uma alta expectativa nessa mudança constitucional, a qual claramente não se materializou na realidade. Por exemplo, sempre que surgia um problema de saúde, educação ou previdência, alegava-se: "Ah, isso não pode melhorar devido à constituição". Tentou-se, então, de mudar a constituição e, em ambos os casos, a cidadania optou por manter a ordem constitucional vigente. Por quê? Gradualmente, pela força dos fatos, percebeu-se que o debate constitucional havia sido apenas uma desculpa para não melhorar a situação social das famílias chilenas ou para lidar com as urgências sociais que haviam sido por muito tempo postergadas.

IM: Considerando que esta é a segunda vez que uma proposta de Constituição é rejeitada, qual é sua análise sobre o impacto político dessa rejeição para os diferentes partidos e para o futuro político do país?

JI: É natural que, em qualquer processo eleitoral, os erros não sejam reconhecidos até que as eleições sejam vencidas ou perdidas. No Chile, vivenciamos o processo constitucional de 2022, em que a extrema esquerda obteve ampla maioria na convenção constitucional. Eles apresentaram ao país um projeto totalmente refundacional e de extrema esquerda, que foi rejeitado nas urnas. Apenas após essa rejeição, uma parte da esquerda, mas não toda, admitiu erros na forma e na maneira como as coisas foram feitas, de maneira bastante triste e lamentável, como alguns convencionais de extrema esquerda votando por Zoom do chuveiro. Essas ações foram condenadas. Contudo, a extrema esquerda nunca admitiu um erro nas ideias fundamentais que foram incorporadas no projeto constitucional submetido à deliberação democrática dos chilenos em setembro do ano passado, que, felizmente, foi amplamente rejeitado pela cidadania chilena.

Atualmente, estamos em um segundo processo, que terminou com a eleição do último domingo (17 de dezembro de 2023), na qual a maioria votou contra a mudança da constituição vigente. Portanto, na prática, não existe uma constituição política chilena mais legitimada nas urnas do que a Constituição de 2005, redigida em 1980 durante o governo militar, amplamente reformada em 2005 e ratificada nas urnas em 2022 e 2023. O que observo hoje, nos primeiros dias após a eleição de domingo? Mais do que o reconhecimento de erros, estamos presenciando o que na política é conhecido como "a noite dos longos punhais", um momento de distribuição de responsabilidades entre os diferentes setores, mas, acima de tudo, de análises interessadas. Isso acontece porque, no Chile, teremos eleições presidenciais em menos de dois anos, e à espera dessas eleições, as análises naturalmente buscam beneficiar cada setor político, atribuindo todas as causas da derrota ao adversário e todas as forças do resultado obtido ao próprio setor. Essa visão interessada ainda não nos permite observar a situação com a profundidade necessária para o momento atual.

IM: Como a rejeição da nova constituição afeta o governo de Gabriel Boric, especialmente em termos de desafios políticos e expectativas iniciais?

JI: O governo do presidente Boric apresentou aos chilenos um projeto profundamente refundacional e marcadamente estatista, no qual o Estado era visto como o principal motor do progresso do país. Neste contexto, os setores particulares e privados, assim como suas organizações, eram considerados pouco mais do que meros colaboradores do Estado, em funções que, no Chile, sempre foram desempenhadas por pessoas, famílias e comunidades, em áreas como educação, saúde, pensões, entre outras importantes. Esse projeto do presidente Boric, de cunho estatista, contrapõe-se à ideia de liberdade que impulsionou o progresso social e econômico do país nos últimos 40 anos. A rejeição dessa nova constituição impactou significativamente o governo Boric, pois o projeto estatista tinha como objetivo final a mudança constitucional.

O grupo político de Boric, a coalizão Frente Amplio, há muito argumentava que o problema do Chile residia na constituição, que esta não possuía legitimidade. Boric chegou a afirmar que qualquer texto redigido em democracia seria superior a um elaborado por quatro generais, uma declaração que denota uma certa ignorância histórica e jurídica, especialmente ao ignorar as inúmeras modificações que a constituição vigente sofreu por governos democraticamente eleitos. No entanto, esse ideal foi frustrado em setembro de 2022, quando os chilenos rejeitaram o projeto constitucional, e novamente no último domingo, ao rejeitarem a mudança da constituição vigente pela segunda vez.

Essa situação afeta politicamente o governo Boric, tanto na narrativa quanto nos desafios políticos concretos. Atualmente, observamos um fortalecimento da centro-direita e da direita. Boric, que foi abandonado pelas ruas e no Congresso, viu a centro-direita, antes em uma situação catastrófica sob o presidente Piñera, ganhar nova vitalidade, com Piñera inclusive figurando entre os cinco potenciais candidatos à presidência. A centro-direita se fortaleceu tanto social quanto politicamente, o que dificulta o avanço de reformas substanciais idealizadas por Boric. O presidente foi forçado a amadurecer, a adotar uma postura mais realista, mudando frequentemente de posição em relação às teses que defendia como candidato e deputado, ao ponto de se comentar sobre suas constantes alterações de postura enquanto presidente em exercício.

IM: Durante o processo, houve reconhecimento de erros ou excessos por parte dos diferentes espectros políticos? Como esses reconhecimentos impactaram nas negociações?

JI: Diante das múltiplas rejeições que as propostas tanto da esquerda quanto da direita enfrentaram, três grandes aspectos se tornaram evidentes no debate constitucional chileno. Primeiramente, o grande problema do Chile não era, como a esquerda tentava apresentar, uma questão constitucional. Não se tratava de um problema nas regras do jogo. Nada na constituição política impedia os diversos governos de abordar nossas dificuldades em áreas como educação, saúde ou previdência. Em segundo lugar, no Chile, o grande problema relaciona-se à polarização política vivenciada pela elite do país, especialmente após a mudança no sistema eleitoral, que facilitou o surgimento de novos e múltiplos partidos políticos. Atualmente, com quase vinte partidos políticos representados no Congresso, torna-se mais desafiador alcançar acordos e promover grandes reformas.

Por exemplo, a reforma das pensões no Chile já perdura por mais de uma década e ainda não foi concluída, principalmente devido à paralisação do Congresso. Um terceiro aspecto importante é que a constituição política chilena reflete, o que é substancial, as ideias e princípios fundamentais que impulsionaram o progresso social e econômico do Chile nos últimos 40 anos. As ideias nela contidas sobre a iniciativa das pessoas, de suas comunidades e organizações, e a colaboração subsidiária do Estado, além do estabelecimento de um catálogo de direitos realizáveis e exigíveis, e não apenas ideais utópicos, permitiram o progresso e o reconhecimento do desenvolvimento vivenciado nos últimos 30 a 40 anos.

Atualmente, no Chile, discute-se uma espécie de renascimento dos 30 anos que foram anteriormente menosprezados, inclusive por alguns de seus próprios protagonistas, como o Presidente Lagos e a Presidente Bachelet. Creio que esses três grandes elementos se destacaram após as últimas duas eleições, possibilitando uma melhor valorização desses 30 anos, o entendimento de que o problema nunca foi exclusivamente constitucional e, em terceiro lugar, as reais possibilidades de progresso dos chilenos no passado e, certamente, para o futuro.

IM: Em ambos os processos, liderados pela esquerda e pela direita, não se conseguiu criar uma Constituição unificadora. Quais são as lições principais que devem ser aprendidas para futuras reformas constitucionais?

JI: Apesar de todos os setores políticos declararem que reconhecem ou afirmarem que o processo constitucional no Chile se encerrou e não será mais discutido, eu prefiro atentar para as palavras da ministra porta-voz Camila Vallejo do Partido Comunista. Ela afirmou que o debate constitucional se encerrou no Chile pelo menos pelos próximos dois anos, período que coincide exatamente com o tempo restante do governo do presidente Boric. A extrema esquerda no Chile percebeu que não conseguirá mudar a constituição e que, se tentar fazê-lo, o resultado será muito distante dos sonhos refundacionais e estatistas que apresentaram aos chilenos em setembro de 2022, e que foram categoricamente rejeitados na maioria das comunas e em todas as regiões do país.

Ressalto isso porque a extrema esquerda e a esquerda que governa o país, infelizmente junto com parte do que é conhecido no Chile como socialismo democrático, reconheceram apenas erros de forma na elaboração da constituição, mas não admitiram nenhum erro quanto ao conteúdo, à abordagem identitária e estatista, que implica perda de liberdades e confiança nas pessoas. Isso ocorre porque é nisso que eles acreditam.

No Chile, a esquerda manifestou em um projeto constitucional suas crenças e desejos para o país, e a isso não renunciaram. Portanto, quando me perguntam sobre o futuro do debate constitucional e a possibilidade de um novo processo constituinte, estou convicto de que a esquerda tentará reabrir o debate constitucional quando as circunstâncias permitirem a obtenção de um texto mais alinhado com suas ideias. A esquerda não almeja apenas uma constituição para o Chile, mas sim que suas ideias, seu programa de governo e sua visão de país estejam constitucionalizadas. Eles esperarão até ter a oportunidade de concretizar isso. É uma estratégia tática, mas assim que tiverem a chance, retomarão o tema e farão tudo o que for necessário para impulsioná-lo, como já fizeram no Chile desde 2019.

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O resultado do referendo representa um marco crítico, sendo a segunda vez que os chilenos votam contra alterações na Constituição em um momento de acalorados debates sobre governança e futuro político do país. A proposta rejeitada buscava substituir a atual Carta Magna, que, segundo críticos, tem suas raízes na ditadura de Pinochet.

Na entrevista, Isamit analisa os desafios do processo de reforma constitucional iniciado em 2019, discute as consequências da recente rejeição da nova Constituição para os partidos políticos e o futuro do Chile, e reflete sobre as lições que podem ser aprendidas para futuras tentativas de reforma constitucional. A análise de Isamit oferece uma visão crítica e detalhada sobre o processo constitucional, que parece se encerrar este ano.

Instituto Millenium: Quais foram os principais desafios enfrentados durante o processo de reforma constitucional iniciado em 2019 e como estes influenciaram o resultado do referendo do dia 17 de dezembro?

Julio Isamit: Em outubro de 2019, o governo do presidente Sebastián Piñera experienciou o que hoje é considerado quase uma verdadeira revolução. Trata-se da tentativa de mudar a ordem constitucional vigente pela força, manifestada principalmente através de protestos nas ruas, os quais incluíram inúmeros atos de violência, saques, incêndios de locais públicos, incêndio do metrô de Santiago, saques de supermercados e destruição de infraestrutura pública e privada.

Nesse período, em outubro e novembro de 2019, emergiu na esfera política a ideia generalizada de que o problema chileno era um problema constitucional. Isso se deu, em parte, pela insistência da esquerda e da extrema-esquerda em concentrar todos os problemas do país no debate constitucional e, de certa forma, pela fragilidade dos defensores da liberdade, da centro-direita, em proteger não só a constituição política vigente, mas sobretudo a ordem constitucional e o Estado de Direito. E por que menciono novembro de 2019 para compreender os principais desafios enfrentados nesse processo entre 2019 e 2023? O maior desafio foi a distância dos cidadãos comuns em relação a essa discussão, que lhes parecia totalmente distante e elitista.

Outro grande desafio ocorreu quando a elite política atribuiu cada problema do país, ao longo de 5, 10, 15, 20 anos, ao problema constitucional. Isso gerou uma alta expectativa nessa mudança constitucional, a qual claramente não se materializou na realidade. Por exemplo, sempre que surgia um problema de saúde, educação ou previdência, alegava-se: "Ah, isso não pode melhorar devido à constituição". Tentou-se, então, de mudar a constituição e, em ambos os casos, a cidadania optou por manter a ordem constitucional vigente. Por quê? Gradualmente, pela força dos fatos, percebeu-se que o debate constitucional havia sido apenas uma desculpa para não melhorar a situação social das famílias chilenas ou para lidar com as urgências sociais que haviam sido por muito tempo postergadas.

IM: Considerando que esta é a segunda vez que uma proposta de Constituição é rejeitada, qual é sua análise sobre o impacto político dessa rejeição para os diferentes partidos e para o futuro político do país?

JI: É natural que, em qualquer processo eleitoral, os erros não sejam reconhecidos até que as eleições sejam vencidas ou perdidas. No Chile, vivenciamos o processo constitucional de 2022, em que a extrema esquerda obteve ampla maioria na convenção constitucional. Eles apresentaram ao país um projeto totalmente refundacional e de extrema esquerda, que foi rejeitado nas urnas. Apenas após essa rejeição, uma parte da esquerda, mas não toda, admitiu erros na forma e na maneira como as coisas foram feitas, de maneira bastante triste e lamentável, como alguns convencionais de extrema esquerda votando por Zoom do chuveiro. Essas ações foram condenadas. Contudo, a extrema esquerda nunca admitiu um erro nas ideias fundamentais que foram incorporadas no projeto constitucional submetido à deliberação democrática dos chilenos em setembro do ano passado, que, felizmente, foi amplamente rejeitado pela cidadania chilena.

Atualmente, estamos em um segundo processo, que terminou com a eleição do último domingo (17 de dezembro de 2023), na qual a maioria votou contra a mudança da constituição vigente. Portanto, na prática, não existe uma constituição política chilena mais legitimada nas urnas do que a Constituição de 2005, redigida em 1980 durante o governo militar, amplamente reformada em 2005 e ratificada nas urnas em 2022 e 2023. O que observo hoje, nos primeiros dias após a eleição de domingo? Mais do que o reconhecimento de erros, estamos presenciando o que na política é conhecido como "a noite dos longos punhais", um momento de distribuição de responsabilidades entre os diferentes setores, mas, acima de tudo, de análises interessadas. Isso acontece porque, no Chile, teremos eleições presidenciais em menos de dois anos, e à espera dessas eleições, as análises naturalmente buscam beneficiar cada setor político, atribuindo todas as causas da derrota ao adversário e todas as forças do resultado obtido ao próprio setor. Essa visão interessada ainda não nos permite observar a situação com a profundidade necessária para o momento atual.

IM: Como a rejeição da nova constituição afeta o governo de Gabriel Boric, especialmente em termos de desafios políticos e expectativas iniciais?

JI: O governo do presidente Boric apresentou aos chilenos um projeto profundamente refundacional e marcadamente estatista, no qual o Estado era visto como o principal motor do progresso do país. Neste contexto, os setores particulares e privados, assim como suas organizações, eram considerados pouco mais do que meros colaboradores do Estado, em funções que, no Chile, sempre foram desempenhadas por pessoas, famílias e comunidades, em áreas como educação, saúde, pensões, entre outras importantes. Esse projeto do presidente Boric, de cunho estatista, contrapõe-se à ideia de liberdade que impulsionou o progresso social e econômico do país nos últimos 40 anos. A rejeição dessa nova constituição impactou significativamente o governo Boric, pois o projeto estatista tinha como objetivo final a mudança constitucional.

O grupo político de Boric, a coalizão Frente Amplio, há muito argumentava que o problema do Chile residia na constituição, que esta não possuía legitimidade. Boric chegou a afirmar que qualquer texto redigido em democracia seria superior a um elaborado por quatro generais, uma declaração que denota uma certa ignorância histórica e jurídica, especialmente ao ignorar as inúmeras modificações que a constituição vigente sofreu por governos democraticamente eleitos. No entanto, esse ideal foi frustrado em setembro de 2022, quando os chilenos rejeitaram o projeto constitucional, e novamente no último domingo, ao rejeitarem a mudança da constituição vigente pela segunda vez.

Essa situação afeta politicamente o governo Boric, tanto na narrativa quanto nos desafios políticos concretos. Atualmente, observamos um fortalecimento da centro-direita e da direita. Boric, que foi abandonado pelas ruas e no Congresso, viu a centro-direita, antes em uma situação catastrófica sob o presidente Piñera, ganhar nova vitalidade, com Piñera inclusive figurando entre os cinco potenciais candidatos à presidência. A centro-direita se fortaleceu tanto social quanto politicamente, o que dificulta o avanço de reformas substanciais idealizadas por Boric. O presidente foi forçado a amadurecer, a adotar uma postura mais realista, mudando frequentemente de posição em relação às teses que defendia como candidato e deputado, ao ponto de se comentar sobre suas constantes alterações de postura enquanto presidente em exercício.

IM: Durante o processo, houve reconhecimento de erros ou excessos por parte dos diferentes espectros políticos? Como esses reconhecimentos impactaram nas negociações?

JI: Diante das múltiplas rejeições que as propostas tanto da esquerda quanto da direita enfrentaram, três grandes aspectos se tornaram evidentes no debate constitucional chileno. Primeiramente, o grande problema do Chile não era, como a esquerda tentava apresentar, uma questão constitucional. Não se tratava de um problema nas regras do jogo. Nada na constituição política impedia os diversos governos de abordar nossas dificuldades em áreas como educação, saúde ou previdência. Em segundo lugar, no Chile, o grande problema relaciona-se à polarização política vivenciada pela elite do país, especialmente após a mudança no sistema eleitoral, que facilitou o surgimento de novos e múltiplos partidos políticos. Atualmente, com quase vinte partidos políticos representados no Congresso, torna-se mais desafiador alcançar acordos e promover grandes reformas.

Por exemplo, a reforma das pensões no Chile já perdura por mais de uma década e ainda não foi concluída, principalmente devido à paralisação do Congresso. Um terceiro aspecto importante é que a constituição política chilena reflete, o que é substancial, as ideias e princípios fundamentais que impulsionaram o progresso social e econômico do Chile nos últimos 40 anos. As ideias nela contidas sobre a iniciativa das pessoas, de suas comunidades e organizações, e a colaboração subsidiária do Estado, além do estabelecimento de um catálogo de direitos realizáveis e exigíveis, e não apenas ideais utópicos, permitiram o progresso e o reconhecimento do desenvolvimento vivenciado nos últimos 30 a 40 anos.

Atualmente, no Chile, discute-se uma espécie de renascimento dos 30 anos que foram anteriormente menosprezados, inclusive por alguns de seus próprios protagonistas, como o Presidente Lagos e a Presidente Bachelet. Creio que esses três grandes elementos se destacaram após as últimas duas eleições, possibilitando uma melhor valorização desses 30 anos, o entendimento de que o problema nunca foi exclusivamente constitucional e, em terceiro lugar, as reais possibilidades de progresso dos chilenos no passado e, certamente, para o futuro.

IM: Em ambos os processos, liderados pela esquerda e pela direita, não se conseguiu criar uma Constituição unificadora. Quais são as lições principais que devem ser aprendidas para futuras reformas constitucionais?

JI: Apesar de todos os setores políticos declararem que reconhecem ou afirmarem que o processo constitucional no Chile se encerrou e não será mais discutido, eu prefiro atentar para as palavras da ministra porta-voz Camila Vallejo do Partido Comunista. Ela afirmou que o debate constitucional se encerrou no Chile pelo menos pelos próximos dois anos, período que coincide exatamente com o tempo restante do governo do presidente Boric. A extrema esquerda no Chile percebeu que não conseguirá mudar a constituição e que, se tentar fazê-lo, o resultado será muito distante dos sonhos refundacionais e estatistas que apresentaram aos chilenos em setembro de 2022, e que foram categoricamente rejeitados na maioria das comunas e em todas as regiões do país.

Ressalto isso porque a extrema esquerda e a esquerda que governa o país, infelizmente junto com parte do que é conhecido no Chile como socialismo democrático, reconheceram apenas erros de forma na elaboração da constituição, mas não admitiram nenhum erro quanto ao conteúdo, à abordagem identitária e estatista, que implica perda de liberdades e confiança nas pessoas. Isso ocorre porque é nisso que eles acreditam.

No Chile, a esquerda manifestou em um projeto constitucional suas crenças e desejos para o país, e a isso não renunciaram. Portanto, quando me perguntam sobre o futuro do debate constitucional e a possibilidade de um novo processo constituinte, estou convicto de que a esquerda tentará reabrir o debate constitucional quando as circunstâncias permitirem a obtenção de um texto mais alinhado com suas ideias. A esquerda não almeja apenas uma constituição para o Chile, mas sim que suas ideias, seu programa de governo e sua visão de país estejam constitucionalizadas. Eles esperarão até ter a oportunidade de concretizar isso. É uma estratégia tática, mas assim que tiverem a chance, retomarão o tema e farão tudo o que for necessário para impulsioná-lo, como já fizeram no Chile desde 2019.

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