Queda da desigualdade foi pequena, diante do montante investido, aponta especialista
“Fizemos 10 anos de Bolsa Família em um”, comentou Laura Müller Machado, sobre os R$ 325 bilhões destinado a auxílios durante a pandemia
Publicado em 23 de maio de 2023 às, 12h10.
Última atualização em 23 de maio de 2023 às, 19h00.
Os últimos dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostraram uma redução histórica na desigualdade social, no ano passado. Os números mostram que o chamado índice de Gini do rendimento domiciliar per capita — que mede a desigualdade — caiu de 0,544 em 2021 para 0,518 em 2022. Os motivos passam pelo montante recorde destinado à transferência de renda, pelo Auxílio Brasil, como explica Laura Müller Machado, professora no Insper. Ela é Mestre em Economia Aplicada pela USP, especializada em políticas públicas, e já foi secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo. Em entrevista para o Instituto Millenium, ela falou também sobre pobreza, programas sociais e a importância da produtividade para a solução definitiva do problema. Confira abaixo:
Recentemente, o IBGE divulgou que houve uma diminuição histórica na desigualdade social no Brasil. Quais fatores você considera como os principais responsáveis por esta mudança e quais são as suas projeções para a trajetória futura da desigualdade social no país?
Laura Müller Machado - Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) fornecem um panorama da situação dos domicílios em 2022, revelando que alcançamos um marco histórico. Registramos uma situação de desigualdade de renda muito semelhante à que tínhamos em 2014 e 2015. A razão para isso foi, em primeiro lugar, a grande quantidade de recursos alocados para transferência de renda durante a pandemia. Segundo o Portal da Transparência, em 2020, quase R$ 300 bilhões foram destinados à transferência de renda, incluindo o Auxílio Emergencial e o Auxílio Brasil. Antes disso, entre 2010 e 2019, a quantia total de transferência de renda era de R$ 30 bilhões. Em 2020, o valor subiu para R$ 325 bilhões, cerca de onze vezes mais do que o valor total dos anos anteriores. Foi como se tivéssemos feito dez anos de Bolsa Família em um único ano. Em 2021 e 2022, o valor foi de cerca de noventa bilhões, o que representa uma triplicação da transferência de renda histórica. Acredito que este é um fator crucial. Na verdade, esperava-se que chegássemos a um nível três vezes menor do que tínhamos em 2014. Com essa enorme transferência de renda, que apresenta um desafio significativo em termos fiscais a longo prazo, acredito que deveríamos ter feito mais do que apenas retornar ao nível de 2014. O segundo motivo é que 2022 foi o ano em que a atividade econômica realmente retornou ao normal. O Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil retornou ao nível pré-pandêmico, e oito milhões de pessoas que estavam sem trabalho encontraram ocupação. Portanto, a recuperação econômica pós-pandêmica em 2022, juntamente com o grande volume de transferência de renda, levou a essa redução histórica tanto na taxa de pobreza quanto na desigualdade de renda.
Tem-se observado um paradoxo emergente: enquanto os índices de pobreza estão diminuindo, há relatos de aumento da insegurança alimentar. Como você concilia essas duas tendências que parecem ser contraditórias?
LMM - Como conciliamos o aumento da insegurança alimentar com uma diminuição na pobreza e na desigualdade? Nossos índices de desigualdade retornaram ao nível de 2014, mas com três vezes mais recursos. Portanto, talvez esperássemos uma redução ainda maior na desigualdade e na pobreza. Isso não aconteceu provavelmente porque a transferência de renda não foi bem direcionada. Não estava focada nas pessoas mais necessitadas. Esses R$ 90 bilhões de 2022 foram distribuídos de maneira bastante homogênea entre as classes econômicas, e provavelmente não chegaram aos 5% mais vulneráveis. Então, é possível que parte dessa população mais vulnerável, que é mais propensa à insegurança alimentar, não tenha recebido essa assistência. Além disso, fatores como a inflação dos alimentos e a instabilidade da economia também podem ter contribuído para essa situação.
O programa Bolsa Família tem sido um marco na política social brasileira. Na sua opinião, quais são os pontos fortes desse programa e quais aspectos precisam ser melhorados? Além disso, a ida e vinda com o programa Auxílio Brasil trouxe avanços ou retrocessos?
LMM - O Programa Bolsa Família é um programa muito importante para o combate, não superação, mas o combate à extrema pobreza e a desigualdade extrema no Brasil, porque ele se propõe a passar uma quantidade de recursos per capita para as famílias em vulnerabilidade. Tem o mérito de garantir o básico do básico para pessoas em situação de extrema vulnerabilidade. Porém, precisa aperfeiçoar sua focalização, dada a existência de insegurança alimentar mesmo com o valor de transferência por família sendo mais alto do que nunca. Não estamos conseguindo transferir para todos que precisam. Portanto, o programa precisa melhorar a sua focalização, buscar ativamente as famílias em situação de vulnerabilidade. As comunidades sabem quem está em extrema vulnerabilidade; talvez Brasília não saiba, mas as redes locais certamente podem identificar essas famílias. Assim, o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) precisa realizar busca ativa e verificar nos bairros dos territórios que estão sob sua responsabilidade. Existem mais de cinco mil e quinhentos CRAS espalhados pelo Brasil, e eles devem verificar se há alguém necessitando do Bolsa Família. A transferência de renda é um passo importante para a autonomia, pois garante condições básicas para as pessoas se organizarem. Mas o programa precisa pensar em saídas. Uma vez que as necessidades básicas são atendidas, que trabalho é feito com essas famílias para que alcancem sua autonomia? Como apoiamos essas famílias para que elas se organizem, coloquem as crianças na escola, garantam sua saúde básica e se insiram no mercado de trabalho? O programa Puente do Chile é um exemplo de sucesso em que as famílias vulneráveis recebiam tanto apoio financeiro do governo quanto um projeto de vida para alcançarem sua autonomia.
Dentro do contexto da mobilidade social no Brasil, quais são as oportunidades mais imediatas para progresso e melhorias substanciais? Como devemos avaliar e implementar mecanismos de bem-estar social orientados para a demanda, como a renda básica, vouchers e charters?
LMM - A literatura frequentemente discute a "armadilha da pobreza", que é uma situação na qual alguém fica preso na pobreza e tem dificuldade em sair. Então, para promover a mobilidade social, o primeiro passo é garantir o básico. A transferência de renda para aqueles que mais precisam é fundamental, não apenas como um direito, mas também como o primeiro passo para a pessoa se organizar e acessar outros direitos, como saúde e educação. Todo ser humano tem sonhos e desejos que gostaria de realizar. De acordo com a PNAD, 70% dos brasileiros vulneráveis que gostariam de trabalhar estão fora do mercado de trabalho. Pensar em um programa acoplado ao Bolsa Família que ajude essas famílias a planejar e implementar seu projeto de vida é crucial. Para isso, seria necessário um agente de desenvolvimento para acompanhar a família, ajudá-la a sonhar e a tornar seus projetos de vida uma realidade. Portanto, a combinação de transferência de renda com orientação para a construção e execução de um projeto de vida é um passo muito importante que devemos dar.
Considerando que o combate à pobreza vai além da redistribuição de renda, como os fatores de crescimento econômico e produtividade, ou a falta deles, influenciam diretamente a dinâmica da mobilidade social no Brasil?
LMM - No longo prazo, só a produtividade importa. Mesmo que as famílias recebam transferências e tenham ajuda para planejar seus projetos de vida, se a economia não for capaz de incorporar essas pessoas, nosso esforço será em vão. Sem crescimento econômico, sem produtividade, e sem postos de trabalho para essas famílias, a pobreza persistirá. Portanto, ter um país produtivo com crescimento econômico que inclua pessoas vulneráveis em seus planos é o único caminho que temos.