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Quando a IA escuta mais que o chefe: o que isso diz sobre nós?

Em uma era em que algoritmos aconselham mais que líderes, escuta, empatia e letramento infinito tornam-se as novas competências críticas da liderança

Imagem feita com inteligência artificial para representar o sentimento de nostalgia (Dall-e/Reprodução/Divulgação)

Imagem feita com inteligência artificial para representar o sentimento de nostalgia (Dall-e/Reprodução/Divulgação)

Instituto Millenium
Instituto Millenium

Instituto Millenium

Publicado em 22 de junho de 2025 às 09h49.

Segundo uma pesquisa da Workplace Intelligence com a INTOO (2023), 47% dos profissionais da geração Z afirmam receber melhores conselhos de carreira do ChatGPT do que de seus líderes diretos. À primeira vista, o dado pode parecer um traço geracional. Mas, ao aprofundar os resultados, percebe-se que a questão é mais estrutural que etária.

Mais da metade dos entrevistados, de todas as faixas, sente-se sozinha quanto ao próprio desenvolvimento. E apenas um em cada três sente que seu líder sabe, de fato, orientá-lo.

O dado é chocante à primeira vista, mas o mais incômodo é o que revela: a lacuna de escuta e conexão que se instalou entre líderes e liderados.

Estamos atravessando a maior crise de saúde mental da história. O Brasil, segundo a OMS, é o país mais ansioso do mundo. Em 2024 teve o maior número de afastamentos por transtornos mentais em 10 anos: 472 mil licenças concedidas, um aumento de 67% em relação a 2023. Isso ocorre enquanto vivemos uma digitalização sem precedentes: processos, interações e até emoções vêm sendo mediados por algoritmos, telas e plataformas.

Tudo ficou mais rápido, eficiente, com mais opções à disposição e, paradoxalmente, mais solitário. A produtividade cresceu, mas o senso de propósito, pertencimento e vínculo humano parece ter se diluído no caminho.

Na dicotomia entre hiperconexão digital e desconexão humana, será que estamos preparados para liderar na era da digitalização de tudo?

Parece que não. Mas ela já começou.

Participei recentemente de um evento com dezenas de lideranças de RH e a mensagem era uníssona: precisamos repensar a gestão. Uma das painelistas apresentou a previsão de que as novas gerações terão, em média, até 40 empregos ao longo da vida. Segundo o Work Change Report do LinkedIn, profissionais que ingressam no mercado hoje estão propensos a ter o dobro de empregos em comparação a 15 anos atrás. Permanecer dois anos numa empresa já será uma conquista. O foco, portanto, deixou de ser reter. O desafio agora é gerar sentido enquanto esse vínculo durar.

Essa transformação tem tudo a ver com aprendizado. Segundo o painel "Skill Flux: The Death of Lifelong Expertise", apresentado no último SXSW, a durabilidade média de uma habilidade caiu de 30 para 5 anos. E pode diminuir ainda mais até o fim da década. No Brasil, a pesquisadora Michele Schneider aprofunda esse tema no livro O Profissional do Futuro, mostrando como a obsolescência das competências exige ruptura nos modelos tradicionais de capacitação.

Não é mais uma questão de saber tudo, é preciso aprender o tempo todo.

O novo papel da liderança é, sobretudo, emocional. Criar espaços seguros onde seja possível admitir dúvidas, vulnerabilidades e medos. Humildade, empatia e escuta tornam-se competências tão estratégicas quanto planejamento e execução. 

A palavra "humildade" vem de humus, o solo fértil. É daí que deve brotar a liderança do futuro: da consciência de que estamos todos aprendendo, sob o mesmo sol. Não há mais espaço para certezas absolutas nem para gurus de ocasião. O que há é a disposição de ser real.

Presença, em tempos digitais, é mais que estar online. É reconhecer, ouvir, ser acessível. Num contexto de trabalho híbrido, isso se torna ainda mais urgente. Uma pesquisa da Cigna Corporation, com mais de 10 mil trabalhadores de oito países, revelou que 61% se sentem solitários no trabalho, o que compromete engajamento e bem-estar.

Estamos em uma era de mudança constante. A cada novo ciclo, mais curto que o anterior, habilidades tornam-se obsoletas e outras nascem. O profissional que prospera cultiva o espírito do aprendiz de uma criança: capaz de andar, tropeçar, levantar-se e seguir, quantas vezes forem necessárias.

No fim, talvez a pergunta mais importante não seja “como a IA vai mudar o trabalho?”, mas sim: por que tantos preferem ouvir a IA a seus próprios líderes? E o que isso revela sobre os espaços que deixamos vagos?

A resposta não está em competir com a máquina, mas em ocupar plenamente o que só o humano pode oferecer: o vínculo, o sentido, a presença que transforma um dado em direção e uma dúvida em confiança. A IA pode otimizar tarefas. Pode até aconselhar com base em padrões. Mas não reconhece silêncios. Não percebe hesitações no olhar. Não sabe o que você não disse.

Liderar, nesse novo tempo, é assumir esse lugar sutil, e poderoso, de estar onde os algoritmos não alcançam. Não é ser insubstituível por superioridade, mas por profundidade. Porque, ao contrário do que se teme, o futuro talvez não nos peça para sermos mais rápidos que as máquinas, mas mais humanos do que nunca.

 

*Maria Cerchi é Diretora Administrativa na Scala, responsável pelas áreas de Gente e Gestão, TI, Marketing e Inovação; e associada do Instituto Formação de Líderes de São Paulo.

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