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Qual é a agenda Brasil para o Gás Natural?

A queda da oferta interna de GN deve-se ao aumento da reinjeção e à redução das importações da Bolívia

Gás natural (Brazil Photos/Getty Images)

Gás natural (Brazil Photos/Getty Images)

Cristiane Schmidt
Cristiane Schmidt

Colunista - Instituto Millenium

Publicado em 3 de março de 2025 às 06h00.

O Gás Natural (GN) é um insumo para a Transição Energética, um consenso mundial, e o Governo emitiu diversas normas para fomentar o mercado de GN. Ademais, a Petrobras fará investimentos em Unidades de Fertilizantes Nitrogenados (Fafens), para dar autossuficiência ao país na produção deste insumo. Como uma Fafen é intensiva em GN, tê-lo barato é fundamental. Por sua vez, a Reforma Tributária criou o Imposto Seletivo, à já elevada carga tributária do GN; o preço do GN para as Fafens se viabilizarem, quando prontas, é a metade do atual; a Petrobras segue sendo uma quase monopolista, verticalizada no upstream e controladora da transportadora TBG, o que a possibilita exercer o seu poder de mercado; e o artigo do Prog. de Aceleração da Trans. Energ. (Paten), que obrigaria a Petrobras ofertar mais GN (gás release), foi retirado do PL 327/21, hoje Lei 15.103/25. Diante da concentrada estrutura de mercado e de incongruências lógicas, é importante saber a estratégia nacional para o setor de GN no Brasil. Problema central: GN no Brasil é caro. É possível que o objetivo (legítimo) seja acabar com este mercado, contudo, o mais provável é que se queira diminuir o seu preço, maximizando o bem-estar do consumidor e a competitividade das firmas. Segue uma sugestão.

Antes, pois, vale lembrar que, mesmo diante de diversas normas desde os anos 40 para estimular o GN, este só deslanchou com o gasoduto Brasil-Bolívia, em 1999. A produção de GN, que era de 36 MMm3/dia em 2000, em 2010, 2020 e 2024, foi para 63, 127 e 151 MMm3/dia. Da produção, e considerando o último valor, desconta-se a reinjeção (82), o consumo nas unidades E&P (16), a queima&perda (4) e a absorção das UPGNs (4); chegando à oferta interna de 45MMm3/dia. Ao acrescentar o GN importado (14) e as regaseificações (6), esta oferta soma 65 MMm3/dia.

Em 2021 a oferta interna foi de 97 MMm3/dia; em 2022, de 72 MMm3/dia; e, em 2023, de 65 MMm3/dia, sendo, destarte, declinante no tempo, o que mostra que não se trata apenas em “aumentar a produção para diminuir o preço”, pois a produção é crescente! E, segundo a EPE, seguirá assim até 2034, onde a produção e a oferta interna alcançarão 314 e 134 MMm3/dia, respectivamente. A ver como se darão estes aumentos, mas o fato a pontuar é que a oferta interna poderia ser maior hoje e não é. Por quê? Há como escoar o GN, considerando que 85% da produção ocorre no mar? E se pudesse escoar, haveria como armazenar? Além disso, há demanda, dado que a indústria (maior consumidor) está buscando por fontes energéticas mais competitivas?

As causas da queda da oferta total interna do GN são, ao menos, duas. A primeira seria a reinjeção, que tem aumentado, tanto em valores absolutos, saindo de 55 MMm3/dia em 2000 para 80 em 2024, quanto em termos relativos à produção, saindo de 43% em 2020 para 54% em 2024. A segunda causa seria a diminuição da importação da Bolívia (de 30MMm3/dia em 2000 para 13). Atualmente, há um esforço em importar mais via GNL e/ou via Vaca Muerta, na Argentina, mas o Consórcio Projeto Raia, que promete adicionar 16 MMm3/dia em 2028, é o que dá maior esperança. Não somente porque investirá (US$9bi) em mais um duto para escoar do alto-mar para a terra (200km), mas também porque o volume é expressivo vis-à-vis à demanda (25%).

O GN, conquanto seja um combustível fóssil, é muito menos poluente do que carvão, lenha, óleo diesel e óleo combustível, presentes na matriz energética, e um pouco menos do que o GLP, que, vale dizer, tem subsídio para o botijão-GLP 13kg, via o Progr. Gás para Todos (Lei 14.237/21). Há que substituir a lenha e o carvão da cocção – hoje em 20% dos domicílios – e, neste sentido, o botijão-GLP 13kg cumpre bem com este papel. Não se pode esquecer, todavia, que GLP e GN competem em certos nichos de mercado. Desconsiderar este tema, e, mais, criar subsídio no gás mais poluente (GLP) e Imposto Seletivo no menos poluente (GN) são decisões incoerentes, que precisam ser reavaliadas, diante da pauta da transição energética e dos princípios da concorrência.

Deveras, a nova LC 214/25 (reforma tributária) vai na contramão do que se deseja, no tocante à inclusão do GN no rol dos bens em que incidirá Imposto Seletivo, cujo intuito é o de desincentivar o consumo de bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. O fato, porém, é que o GN, pelos próximos 25 anos, descarbonizará a matriz energética, trazendo externalidades positivas (e não negativas!) à saúde e ao meio ambiente. Nos EUA, a substituição do carvão pelo GN resultou em corte de emissões de 530 MM de tCO2e. Para Fatih Birol, diretor da AIE, p.e., “O GN é um dos pilares da energia global, onde substitui combustíveis mais poluentes, melhora a qualidade do ar e limita as emissões de CO2. Assim, qual a razão do Brasil, diferentemente do mundo, querer diminuir o consumo do GN? Como dito, a estratégia do Brasil para o GN está contraditória.

Impulsionar o mercado de GN, aliás, é pauta mundial. Segundo o IBP, a demanda global por GN cresceu 68% a.a entre 2000 e 2002, passando de 2,5 tri m3/ano para 4 tri m3/ano. Segundo a OPEP, a demanda estimada por energia crescerá em 73% entre 2023 e 2050 – alavancada pela troca do carvão e pela procura dos asiáticos – por todas as fontes, exceto por carvão, que terá queda de 29%. GN crescerá 21%; petróleo, 17%; nuclear, 10%; biomassa, 8%; hidro, 4% e outras fontes renováveis, 43%. Embora para a OPEP os participantes da OCDE diminuirão a demanda por petróleo em 0,6%, os não participantes aumentarão em 74%, que inclui Índia e China. Os EUA, com Trump, voltarão a dar ênfase ao petróleo.

Observando as matrizes energética e elétrica, as brasileiras (50% e 90%, respectivamente) são mais limpas do que as do mundo (15% e 30%, respectivamente). No mundo, a matriz energética tem o petróleo e derivados (30%), o carvão (28%) e o GN (23%) como suas principais fontes. A estratégia comum de todos tem sido substituir o carvão por renováveis e por GN. No Brasil, a matriz energética tem o petróleo e derivados (35%), os derivados de cana (17%), a lenha e o carvão (13%) e a hidro (13%) à frente do GN (9,6%). A vantagem comparativa do Brasil com os biocombustíveis – objeto de orgulho – não deve ser motivo para deixar de olhar estrategicamente para outras fontes. GN faz parte da transição energética e petróleo, sendo o principal item das exportações no Brasil, deve aproveitar o crescimento (até ao menos 2050!) da demanda mundial.

Um dado importante, contudo, é notar que as fontes da matriz elétrica no mundo têm carvão mineral em primeiro lugar (35%), seguido pelo GN (22%). Hidro (15%) e nuclear (10%) vêm na sequência. Já no Brasil, hidro (60%), eólica (13%) e solar (7%) dominam. GN (5,5%) e bagaço de cana (5%) vêm em seguida. Diagnóstico: no mundo, a relação entre energia elétrica (EE) e GN é mais estreita do que no Brasil. Além disso, observa-se um único regulador para maximizar uma estratégia em energia conjunta e não dois reguladores, como ocorre no Brasil, o que dificulta.

Do lado da demanda pelo GN no Brasil, 62% advêm da indústria; 23%, da geração elétrica; e 8%, do automotivo. Cogeração, residencial, comercial e outros, como GNC/GNL, representam juntos 7%. Geração elétrica e GN, assim, estão também interligados, por isso, deveriam ter estratégias conjuntas. Preço é fator decisivo e, hoje, tanto o preço do GN quanto o da EE são elevados. Rever os subsídios de cerca de R$ 40 bi da Conta de Desenvolvimento Energético é necessário, pensando em maximizar o bem-estar do consumidor e a competitividade das empresas.

No mundo, as âncoras da demanda por GN são a calefação, inexistente no Brasil, e as termoelétricas, que consomem 10 vezes mais do que uma indústria de grande porte (300 mil m3/dia), maiores demandantes no Brasil. Como as termoelétricas produzem continuamente, estas têm previsibilidade de receita, o que permite a armazenagem subterrânea do GN, o que, por sua vez deixa o mercado flexível, o que, assim, possibilita preços módicos do GN. No Brasil, devido à diversidade de fontes para gerar EE, as termoelétricas são acionadas em situações de escassez hídrica ou para suprir a intermitência das solares/eólicas ou para atender cargas de ponta. Além disso, 91% da produção do GN é associada ao petróleo, o que torna mais complexo o cenário.

Tendo como hipótese que se quer estimular o GN, uma estratégia nacional para este mercado deveria considerar todas as fontes de energia e o setor de EE. A mistura do biodiesel ao diesel, atualmente em 14%, alcançará 20% em 2030. O limite máximo da mistura de etanol anidro à gasolina foi aumentado de 27,5% para 35%. Já são realidades o etanol hidratado, os veículos elétricos e as usinas solar e eólica, que, vale dizer, crescem exponencialmente e dificultam a previsibilidade das distribuidoras de EE, outro problema a ser endereçado, e a vida dos consumidores, que subsidiam tarifas mais elevadas. A realidade, destarte, é diferente da do mundo. Se as soluções fossem fáceis, os problemas já estariam sanados, pois especialistas, acadêmicos e profissionais competentes é o que não falta no Brasil. O MME tem agido nesta vertente, mas o governo precisaria apresentar uma agenda única, com o foco em ter preços mais moderados.

Se pudesse propor uma agenda para o GN – permita-me a ousadia – considerando mudanças nos atuais marcos, que inclui a Lei do Gás 14.134/21, e observando o atual Decreto 12.153/24, Gás para Empregar, eu a segmentaria em 4 eixos, a saber: no da oferta, no da demanda, no do mercado do biometano e no do arcabouço normativo/institucional.

No eixo da oferta as sugestões seriam: 1) endereçar a concentração e verticalização da incumbente, que inclui dar transparência dos preços no uptream, promover leilões de gás release e não permitir que nenhum agente econômico tenha mais do que 50% em qualquer mercado; 2) retirar o Imposto Seletivo do GN; 3) diminuir da poporção da reinjeção na produção, se houver escoamento; 4) fomentar o setor privado a construir mais dutos de escoamento (vide Consórcio Projeto Raia); 5) o mesmo que (5) para a construção de armazenamentos subterrâneos; e 6) considerar o shale gas.

Já o eixo da demanda, as sugestões seriam: 1) focar 100% na substituição do carvão, óleo combustível e diesel da matriz energética: 1a) fomentando a conversão/construção de termoelétricas a GN (MME programou leilões de capacidade); e 1b) facilitando a troca/compra de frotas pesadas a GN (caminhão, ônibus, tratores); e 2) estudar uma forma de garantir as termoelétricas a GN previsibilidade de receita, sem onerar a conta de EE do consumidor.

O 3º eixo seria o incentivo a criação do mercado de biometano junto às distribuidoras de GN canalizado. Do lado da demanda, o mandato dado pela Lei 14.993/24 (Combustível do Futuro) pode ser que seja suficiente. A ver qual será o resultado da chamada pública da Petrobras. Do lado da oferta, como os produtores precisarão transportar o biometano, poderia ser criado um conjunto de regras em âmbito nacional, para um “condomínio local, com tarifas de transporte próprias”, objetivando a construção de infraestrutura de redes, conectando produtores de biometano, em geral fora dos centros urbanos, às redes locais. Quanto mais GN encanado for desenvolvido hoje, maior será a probabilidade da comercialização do biometano no futuro. Mesmo tendo a mesma molécula, CH4, o biometano tem baixa oferta e preço elevado. Esta barreira econômica pode ser superada.

Por fim, como 4º eixo, seria pertinente considerar, à luz da experiência internacional, uma fusão entre a ANEEL e ANP, para formar uma Agência Nacional de Energia, cuja meta seria unificar as políticas públicas acerca das diversas fontes de energia, dando unicidade a ambos os setores. Além disso, seria apropriado harmonizar legislações e regulações nacionalmente, em especial para o mercado livre. A meta é dar lógica única para o país, previsibilidade e segurança jurídica para atrair o setor privado, e identificar as falhas de mercado, onde o estado tivesse que agir.

Em suma, é um assunto intrincado, controverso e sem consenso, mas o debate se faz necessário. Independentemente de as propostas apresentadas aqui serem questionáveis, o Brasil precisa de maior uniformidade nos entendimentos sobre o tema. Uma agenda energética nacional única, objetiva e coordenada, deveria aproveitar as vantagens comparativas de todas as fontes de energia; considerar o setor de EE, a descarbonização e a lei da concorrência; assegurar a segurança energética para o país; e focar em baratear a energia para o brasileiro. A meta, em resumo, é trazer maior bem-estar ao consumidor e maior competitividade para as empresas. O Brasil precisa aumentar a sua produtividade e ter energia barata é parte da solução. Diminui o Custo-Brasil.

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