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”Proibir plataforma não se coaduna com Estado de Direito”, afirma Marco Aurélio Mello

O Instituto Millenium entrevistou o ex-ministro sobre a suspensão do X e a situação jurídica no Brasil

Marco Aurélio Mello (Rosinei Coutinho/SCO/STF/Divulgação)
Marco Aurélio Mello (Rosinei Coutinho/SCO/STF/Divulgação)

Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, nos últimos anos, Marco Aurélio Mello tem se manifestado um crítico de sua antiga casa. Em entrevista ao Instituto Millenium, ele comentou a recente proibição do X (ex-Twitter) no Brasil, pelo ministro Alexandre de Moraes, o que chamou de “retrocesso cultural”. “Proibir plataforma não se coaduna com Estado de Direito. O cidadão dispensa tutela, devendo atuar com desassombro. O ocorrido foi um retrocesso cultural, apenando-se milhares de brasileiros, com repercussão internacional negativa”, opinou. 

 Marco Aurélio Mello também falou sobre os limites do Judiciário, consequências do sentimento de injustiça pela população e o papel dos juristas na defesa das liberdades.  Confira:

INSTITUTO MILLENIUM: Como você define a relação entre a lei e a ética na prática judiciária? A decisão de um juiz deve ser sempre considerada inquestionável?

MARCO AURÉLIO: A ética é a arte de proceder. O juiz realiza o trinômio Lei, Direito e Justiça. Deve idealizar a solução mais justa para o conflito de interesses e, após, buscar apoio na norma de regência. A Justiça é obra do homem, passível de falha. Daí o sistema de recursos, imaginando-se que o órgão revisor tenha experiência maior. O juiz nada disputa. Exerce missão sublime, substituindo, como Estado – Julgador, a vontade das partes.

IM: O senhor poderia comentar sobre exemplos históricos em que leis foram utilizadas para justificar atos imorais, como o Holocausto, a segregação racial nos EUA e a escravidão no Brasil? Quais lições podemos aprender com esses casos? Ou deveríamos ter aprendido?

MA: O direito rege a vida em sociedade. É alvo de interpretação e, por vezes, norteada, por interesses condenáveis. Equívocos, erros, devem servir ao avanço cultural, fugindo-se à tentação de, por isso ou por aquilo – não importa – , repetir tragédias. Que estas sejam um alerta aos dirigentes. Que a visão humanitária prevaleça, vingando o entendimento. O sentido moral é o único aceitável. Nada justifica a força pela força.

IM: Como você avalia as consequências das decisões judiciais percebidas pela sociedade como injustas ou antiéticas, tanto em relação à confiança pública no sistema judiciário quanto ao impacto na imagem do Brasil no cenário internacional, considerando também as possíveis implicações para as relações externas do país?

MA: O julgador é servidor público dos semelhantes. Há de ter presente o bem coletivo. As leis são feitas para os homens e não o inverso, os homens para as leis. Deve buscar o melhor, sendo sensível às críticas construtivas. A prestação de contas à sociedade é constante. Artífice da segurança jurídica, deve possuir visão ampla, interna e internacional, sendo responsável pelo bom nome do Brasil. Em síntese, atua como Estado e deve fazê-lo com pureza d’alma.

IM: O que você pensa sobre a decisão do Ministro Alexandre de Moraes em bloquear o X no Brasil? Essa ação é justificável dentro do contexto constitucional e legal brasileiro?

MA: A liberdade de expressão é a mola mestra da República. Nem mesmo lei pode criar embaraço à veiculação de ideias. Proibir plataforma não se coaduna com Estado de Direito. O cidadão dispensa tutela, devendo atuar com desassombro. O ocorrido foi um retrocesso cultural, apenando-se milhares de brasileiros, com repercussão internacional negativa.

IM: Existem limites que os juízes devem respeitar ao tomar decisões? Como podemos garantir que a interpretação da lei não resulte em abusos de poder?

MA: O julgador está submetido, sob o ângulo técnico e humanístico, à ordem jurídica constitucional. A atuação é vinculada ao Direito aprovado pelas duas Casas Parlamentares – Câmara dos Deputados e Senado. Interpretar não é criar o critério de plantão. Acima dele está o Colegiado, no que revela somatório de forças distintas. É descabido abusar do poder.

IM: Considerando a importância da liberdade de expressão, como o papel da justiça deve ser equilibrado com a necessidade de proteger a sociedade de discursos nocivos?

MA: Discursos encerram liberdade de expressão. A nocividade tem contornos subjetivos. Possível prejudicado deve acionar o Judiciário e este apurará, caso a caso, a responsabilidade civil e criminal. De bem-intencionados o Brasil está cheio. Em Direito o meio justifica o fim e não o inverso.

IM: Qual é o papel dos juristas e advogados na defesa das liberdades individuais, do império da lei e do devido processo?

MA: O papel é fundamental. O jurista revela a boa doutrina. O advogado defende o interesse do constituinte, com zelo maior do que teria na defesa do próprio. Não ocupa cadeira voltada a relações públicas. Não deve ter receio de desagradar a quem quer que seja.