"Precisamos de reformas que diminuam o espaço da Constituição de 88", afirma Felipe de Melo Fonte
Instituto Millenium entrevistou especialista sobre a gestão do poder Judiciário no Brasil
Publicado em 8 de setembro de 2023 às, 13h04.
O Instituto Millenium entrevistou Felipe de Melo Fonte, professor de Direito Constitucional na FGV Direito Rio, mestre e doutor em direito público pela UERJ, e Master of Laws pela Harvard Law School. Fonte é autor do livro "Jurisdição Constitucional e Participação Popular", publicado em 2017 pela editora Lumen Juris, uma obra que examina o impacto da TV Justiça no contexto jurídico brasileiro.
Durante a entrevista, Fonte analisou questões críticas que influenciam diretamente o funcionamento do poder judiciário brasileiro. Entre os pontos discutidos, estiveram a recente decisão do ministro Toffoli sobre a constitucionalidade de operações como a Lava Jato, a necessidade de equilíbrio entre o combate à corrupção e o respeito ao devido processo legal, além das consequências dessa dualidade no sistema judiciário nacional. A entrevista lançou luz sobre a complexidade e as nuances que envolvem o funcionamento do poder judicial, em um período onde as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) estão sob intenso escrutínio público.
Fonte também abordou a controversa sugestão do presidente Lula de implementar sigilo nos votos dos ministros do STF, uma proposta que vai diretamente contra o princípio da transparência prescrito pela Constituição Federal de 1988. Além disso, Fonte contrastou a dinâmica entre transparência e sigilo nas cortes superiores brasileiras com as práticas em países como Alemanha e Estados Unidos, enfatizando as peculiaridades da visibilidade e do protagonismo que os juízes brasileiros alcançaram no cenário atual. O debate também contemplou reflexões sobre como a atual polarização política pode estar afetando a percepção pública das decisões do STF, indicando uma potencial erosão da confiança na Constituição e nas instituições judiciárias.
Instituto Millenium: Sob a perspectiva constitucional, a decisão do ministro Toffoli respeita o devido processo legal ao anular provas obtidas de forma questionável? Quais podem ser as implicações disso para o sistema judicial brasileiro?
Felipe de Melo Fonte: Essa decisão do ministro Toffoli é um marco de uma sequência de ações do Supremo Tribunal Federal que vem, consistentemente, apontando para inconstitucionalidades e ilegalidades na operação Lava Jato. É de suma importância ressaltar que o STF tem o dever constitucional de ser o guardião da carta magna, interpretando e zelando pelas garantias fundamentais, inclusive no âmbito do processo penal, um direito resguardado desde tempos históricos, como evidenciado na Magna Carta de 1215 e na Declaração de Direitos do Homem de 1789.
Nesse sentido, é esperado que o tribunal atue na proteção desses direitos, podendo inclusive anular investigações que não estejam em conformidade com eles. O aspecto central, talvez, seja a busca por uma atuação estável e clara por parte do tribunal, estabelecendo, por exemplo, os limites de interação entre um juiz e um procurador ou promotor de justiça, a fim de evitar qualquer suspeição. A clareza nesses parâmetros será vital para que os órgãos de controle e tribunais inferiores possam se alinhar aos precedentes do STF, minimizando zonas de incerteza ou ambiguidade nas decisões judiciais.
IM: Essa decisão acaba por enfraquecer o combate à corrupção no Brasil? Em sua visão, como conciliar o respeito ao devido processo legal com a continuidade de investigações complexas como essa?
FMF: Com relação ao enfraquecimento do combate à corrupção, há de fato uma certa frustração social devido às decisões recentes do Supremo Tribunal Federal. Muitos depositaram esperanças na Lava Jato como uma ferramenta para estabelecer uma política mais íntegra no Brasil, e as perspectivas podem ter diminuído nesse aspecto. No entanto, é fundamental salientar que o combate à corrupção precisa seguir as normas estabelecidas pelo Estado Democrático de Direito.
O principal desafio atualmente está na interseção do devido processo legal e da eficácia das instituições que combatem a corrupção. Não é necessariamente o término da Lava Jato que é preocupante, mas a falta de clareza nas expectativas e responsabilidades dos agentes públicos envolvidos em tais operações, impedindo uma condução lícita das mesmas. Esta falta de definição clara pode ser a raiz de várias operações sendo anuladas pelos tribunais superiores, como vimos com mudanças nas decisões relativas à jurisdição competente no caso da Lava Jato.
Assim, mais do que o possível fim da Lava Jato, é essa incerteza na jurisprudência que torna operações complexas mais suscetíveis a anulações, o que, consequentemente, pode prejudicar o processo de combate à corrupção no país.
IM: Considerando o que estabelece a Constituição Federal sobre publicidade e fundamentação das decisões do STF, haveria alguma forma, dentro dos parâmetros constitucionais atuais, de tornar os votos dos ministros do STF sigilosos, conforme proposta do presidente Lula? Por quê?
FMF: A Constituição Federal estabelece claramente a necessidade de transparência e fundamentação das decisões judiciais, como é indicado no artigo 93. A proposta de votos sigilosos parece conflitar com esses preceitos constitucionais e históricos. Embora seja possível criar decisões sigilosas em certas circunstâncias, como em casos envolvendo menores ou crimes graves, a ideia de tornar os votos dos ministros sigilosos é outra coisa.
Seria uma tentativa de ocultar a posição individual de cada ministro durante a votação, algo que acho complicado de conciliar com a Constituição atual e que provavelmente exigiria uma reforma constitucional. Além disso, considero que essa mudança seria prejudicial, especialmente considerando o papel significativo que o STF desempenha atualmente no cenário político do Brasil, muitas vezes tendo que tomar decisões que afetam diretamente a administração governamental.
O STF tem ministros que se especializaram em determinadas áreas, como segurança pública (Fachin) e questões indígenas (Barroso), desempenhando um papel vital na sociedade. Dessa forma, parece justo que os ministros assumam a responsabilidade política por suas decisões, mantendo a transparência nas votações. Importante ressaltar que, embora seja adequado atribuir essa responsabilidade aos ministros, ataques e insultos pessoais não devem ser tolerados, sobretudo em espaços privados.
IM: Como a relação das cortes superiores brasileiras com transparência e sigilo, discrição e publicidade, se compara com as de outros países de referência?
FMF: Os modelos constitucionais de países de referência, como o Tribunal Constitucional Alemão e a Suprema Corte dos Estados Unidos, diferem bastante do nosso, principalmente em termos de transparência e publicidade. Lá, embora possam transmitir julgamentos publicamente, como no Reino Unido, as deliberações geralmente ocorrem em ambientes sigilosos, apenas divulgando os debates orais e a decisão final. Além disso, os ministros dessas cortes não possuem a mesma proeminência pública e protagonismo que os nossos, evitando interações frequentes com a imprensa.
Essa distinção é fruto de vários fatores. Um deles é a cultura, e o outro é a nossa tradição de constitucionalismo dirigente, de raiz ibérica, que estabelece constituições detalhadas e atribui ao STF a responsabilidade de assegurar que as promessas feitas na Constituição sejam cumpridas. Essa configuração faz com que o STF assuma, muitas vezes, um papel protagonista, evitando a omissão e optando por atuar ativamente na sociedade.
Essa decisão de não ser omisso, pós-ditadura, levou a uma relação mais política e pública com a sociedade, refletindo em aparições frequentes na mídia e decisões de grande impacto social. Entendo que, devido ao nosso desenho institucional e cultura, era quase inevitável que o STF e seus ministros tivessem essa relação mais conturbada e visível com a população, marcando presença constante nos meios de comunicação e redes sociais, uma consequência direta dessa dinâmica.
IM: Como a polarização política mais ampla da sociedade pode estar influenciando a percepção pública dos votos individuais e decisões do STF?
FMF: O Direito Constitucional e as constituições, de modo geral, são construções sociais, não são elementos encontrados na natureza ou comparáveis às leis da Física. São uma criação humana que reflete consensos sobre determinados valores fundamentais da sociedade, sendo o mais central deles a ideia de igualdade política. É impossível manter a estrutura constitucional que temos sem reconhecer as pessoas como iguais politicamente.
No entanto, temos notado que a atual polarização política tem erodido os espaços de consenso nos quais as cortes constitucionais tradicionalmente operam, diminuindo a coesão social que é a base do constitucionalismo. Isso tem levado a uma percepção pública de que as decisões do tribunal podem ser vistas como ilegítimas, especialmente quando se trata de temas que dividem a sociedade.
Talvez estejamos nos encaminhando para um momento onde serão necessárias reformas que reduzam o papel da Constituição de 1988 na vida da sociedade brasileira, visto que muitos dos consensos de então já não são mais unânimes hoje. Isso faz com que o tribunal tenha que tomar posições em temas polêmicos, e se a polarização aumentar ainda mais, pode ser que, no futuro, uma parcela significativa da população veja as regras constitucionais como completamente ilegítimas, criando um ambiente propício para conflitos civis, como o que observamos no dia 8 de janeiro.
Isso tem um efeito direto na maneira como os votos dos ministros do STF são percebidos pelo público. No entanto, é preciso ressaltar que, mesmo neste cenário, os ministros não estão isentos de críticas. Em uma democracia, é direito da população criticar livremente as decisões do tribunal constitucional, sugerir mudanças no modelo da corte e nos mandatos dos ministros. Não é justificável tentar silenciar críticas às decisões dos ministros, sejam elas quais forem. Todas as decisões estão abertas a críticas, inclusive aquelas que vêm acompanhadas de paixão e fervor por parte da população.