Política de valorização do salário mínimo pressiona Previdência, afirma Pedro Nery
Nas últimas semanas, a discussão sobre a necessidade de uma nova reforma da Previdência ganhou destaque na imprensa
Publicado em 3 de junho de 2024 às, 07h00.
Nas últimas semanas, a discussão sobre a necessidade de uma nova reforma da Previdência ganhou destaque na imprensa, impulsionada por declarações do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sobre os riscos fiscais decorrentes da desoneração da folha de pagamento. Para analisar esses desdobramentos, o Instituto Millenium entrevistou Pedro Fernando Nery, Diretor de Assuntos Econômicos e Sociais da Vice-Presidência da República e especialista em economia do trabalho, renda e previdência.
Pedro Fernando Nery, doutor em Economia do Meio Ambiente pela Universidade de Brasília, consultor legislativo do Senado Federal e autor do recém-lançado livro Extremos (Companhia das Letras, 2024), oferece uma perspectiva aprofundada sobre os fatores que pressionam o sistema previdenciário brasileiro. Entre os tópicos abordados na entrevista estão os impactos das políticas de valorização do salário mínimo, o envelhecimento populacional, a informalidade no mercado de trabalho e as reformas complementares necessárias para garantir a sustentabilidade fiscal do país.
Instituto Millenium: Recentemente, voltou-se a discutir a necessidade de uma nova reforma da previdência no Brasil. Quais são os principais fatores que estão impulsionando essa discussão agora, especialmente considerando os impactos da última reforma em 2019?
Pedro Fernando Nery: Os grandes impulsionadores dessa discussão me parecem ser dois: a política de valorização do salário mínimo e o crescimento do PIB. Ao contrário do que alguns pensam, a política de valorização do salário mínimo não foi revogada em 2016. Ela continuou valendo depois do impedimento da Presidente Dilma e até o primeiro ano do governo Bolsonaro. Mas naquele momento a economia crescia pouco, e então a política de valorização afetou menos os gastos previdenciários. Como metade do gasto previdenciário é ligado ao salário mínimo, quando o PIB cresce, há um aumento contratado para dali a 2 anos pela regra;
Em 2023, a política de valorização foi retomada, depois de ficarmos sem aumento real em 2020, 2021 e 2022. Isso é uma fonte de pressão. Mas há outra, que é o crescimento do PIB acima do esperado. Se a década anterior foi a década frustrada, no sentido de o crescimento da economia ficar sempre abaixo do esperado no início do ano, por exemplo em pesquisas como o boletim Focus, nesta década o crescimento do PIB vem surpreendendo. A política de valorização conjugada com o PIB acima do esperado eleva o gasto previdenciário e pressiona as demais despesas do governo federal, já que ainda há um teto para o total das despesas (novo arcabouço fiscal).
IM: Além do envelhecimento da população, quais são os outros fatores econômicos e demográficos que estão pressionando o sistema previdenciário? Como esses fatores combinados podem afetar a sustentabilidade fiscal do Brasil nos próximos anos?
PFN: A última reforma está tendo os efeitos previstos, bem como a lei de combate a “fraudes” aprovada em 2019. Mas de fato a população parece estar envelhecendo um pouco mais rápido do que se pensava. E há outra fonte de pressão em curto prazo, que é a fuga da CLT. Muita pejotização entre os que ganham mais e a MEIzação nos que ganham menos, reduzindo a arrecadação do sistema em um primeiro momento, ainda que em um segundo momento isso também possa provocar uma despesa menor (porque as pessoas não estão cobertas).
A política de reajuste do salário mínimo, que inclui ganhos reais baseados no crescimento do PIB, tem sido apontada como um desafio para as finanças da previdência. Quais seriam os possíveis impactos dessa política a médio e longo prazo, e quais alternativas poderiam ser consideradas para equilibrar as contas?
A política de valorização do salário mínimo só tem impacto fiscal relevante porque há gastos do governo vinculados a ela, notadamente Previdência. Isso não ocorre em outros países, em que o aumento do salário mínimo tem mais a ver com a regulação do mercado de trabalho, não com as contas públicas. Aqui, tipicamente, temos mais pessoas que recebem o SM como beneficiárias da Previdência do que como empregadas com carteira assinada no mercado de trabalho. Então de certa forma o que existe não é tanto uma política de valorização do salário mínimo mas uma política de valorização de aposentadorias e pensões.
Em longo prazo, pode-se fazer o mesmo que todo o resto do mundo fez: a criação de uma aposentadoria mínima. Quando isso for feito, salário mínimo e aposentadoria mínima teriam valores diferentes. Uma vantagem da aposentadoria mínima é poder permitir a redução do piso de contribuições, ampliando o acesso à Previdência por parte dos trabalhadores que ganham o salário mínimo. Poderíamos pensar em estudantes ou mães que trabalham e que até ganham o salário mínimo por hora, mas pela carga horária reduzida ganham menos do que o salário mínimo mensal, ficando assim excluídos do sistema de Previdência, voltado para quem ganha pelo menos o salário mínimo.
IM: O aumento da informalidade no mercado de trabalho é um problema crescente. Que políticas públicas poderiam ser implementadas para incentivar a formalização dos trabalhadores e, consequentemente, aumentar a arrecadação previdenciária sem prejudicar a economia?
PFN: Não tenho certeza se a informalidade chega a ser um problema crescente, porque ele é bastante crônico. Talvez a melhor alternativa seja a redução da tributação sobre o emprego de quem ganha menos, que poderia estimular contratações em médio e longo prazo e ajudar não só com a redução da pobreza mas também com a arrecadação. Mas em termos de equilíbrio atuarial da Previdência avaliação teria que ser cuidadosa. Parte dos trabalhadores que ganham menos já vai receber benefício de 1 salário mínimo pelo BPC, então neste caso uma redução da carga pode ter efeito líquido positivo sobre o fiscal. Mas para outros isso pode não ser verdade. Precisamos ter clareza sobre por que queremos combater a informalidade: para reduzir pobreza e incluir trabalhadores nas firmas mais produtivas ou para ajudar com as contas da Previdência? A política seria diferente dependendo da resposta.
IM: A reforma da previdência de 2019 deixou de fora algumas áreas críticas, como a previdência rural e a aposentadoria dos militares. Quais seriam as reformas complementares necessárias para garantir a sustentabilidade do sistema? E quais obstáculos políticos e sociais devem ser considerados na implementação dessas reformas?
É fundamental incluir setores que, embora não pesem tanto no agregado, recebem mais do que contribuíram. A sensação de injustiça, de privilégio, dificulta qualquer outro tipo de ajuste sobre quem ganha menos. Não é o caso dos rurais, onde eventualmente pode-se pensar em uma elevação das idades mínimas de 55 anos de acordo com os ganhos de expectativa de vida. Mas é o caso dos militares e dos servidores, ainda. Nos militares, é preciso dar isonomia nas regras de pensão morte: só eles mantiveram os 100%, em vez dos 60% como piso, mas 10% por dependente na reposição. Só eles mantém também a integralidade, o cálculo da aposentadoria pelo maior salário, e não pela média salarial. Isso deve ser revisto. As idades mínimas ainda são bastante baixas, também.
Quanto aos servidores, é preciso incluir todos os Estados e os grandes municípios, e talvez acelerar a convergência de regras com o INSS, que ficou generosa na reforma. Faz sentido neste debate ainda permitir aposentadoria com integralidade com menos de 60 anos? É a regra que ficou para as servidoras mulheres.
IM: Com o crescimento das novas formas de trabalho, como motoristas de aplicativo e freelancers, como o sistema previdenciário pode se adaptar para incluir esses trabalhadores de forma justa e sustentável? Quais são as alternativas que podem ser consideradas para garantir a proteção social desses profissionais?
PFN: O ideal seria ter algo entre o sistema CLT e o MEI. O sistema tradicional, ligado a CLT, é muito pesado, tem tributos demais para este trabalhador e as regras de trabalho não se moldam às especificidades da jornada. Mas o MEI tem seus problemas, e os benefícios só chegam a 1 salário mínimo. O Projeto do governo corrige parte dessas lacunas: a tributação ficou em 25% da remuneração e o acesso à Previdência é amplo. Se ele pegar, deveríamos pensar em como expandir este modelo para outras categorias.