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“Plataformas vão ajudar na pesca sem saber o que pescar”, diz especialista sobre resolução do TSE

André Marsiglia, advogado constitucionalista e especialista em liberdade de expressão, acredita que Tribunal extrapolou seus poderes

André Marsiglia (Acervo pessoal/Reprodução)
Instituto Millenium

Instituto Millenium

Publicado em 29 de fevereiro de 2024 às 16h35.

Última atualização em 29 de fevereiro de 2024 às 17h09.

No início da semana, o TSE editou uma resolução para as eleições deste ano que praticamente repete o texto do PL 2630, conhecido como PL das Fake News pelos seus proponentes, ou da Censura pelos críticos. O texto, que responsabiliza as plataformas de rede social pela remoção prévia de conteúdos que “possam atingir a integridade do processo eleitoral”, foi amplamente combatido pela sociedade no ano passado, de modo que acabou sendo tirado de pauta no Congresso.

Sobre isso, conversamos com André Marsiglia, advogado constitucionalista, especialista em liberdade de expressão. Para ele, a resolução é problemática porque “impõe às big techs um poder de polícia para fiscalizar e gerenciar conteúdos antidemocráticos e desinformativos, sem que tais conceitos estejam definidos juridicamente”, mas ainda que não fosse, o TSE não pode criar normas, sobrepondo-se à legislação eleitoral e a Projetos de lei em debate no legislativo.

Leia a entrevista abaixo:

Instituto Millenium: Como você analisa a capacidade e a autonomia do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em estabelecer normativas que impactam a conduta das plataformas digitais e a disseminação de informações em períodos eleitorais? Qual é a importância desse equilíbrio entre autonomia do TSE e a representação democrática via Congresso Nacional na formulação de políticas que afetam a liberdade de expressão e a integridade eleitoral?

André Marsiglia: É uma ilusão infantil acreditar que fake news serão erradicadas. Que só a verdade prevalecerá nas eleições. Nunca foi assim, nem será, em parte alguma do mundo e da história. Então, estamos diante de uma pesca em que se escolhe o peixe. Talvez pela cor, pelo tamanho ou pelo gosto.

Pior, a resolução impõe às big techs um poder de polícia para fiscalizar e gerenciar conteúdos antidemocráticos e desinformativos, sem que tais conceitos estejam definidos juridicamente. Ou seja, as plataformas vão ajudar na pesca sem saber pescar, ou o que pescar. Óbvio que o resultado será censura. O TSE nestas eleições terceiriza para as plataformas a censura.

O TSE possui autonomia para expedir resoluções e atos normativos que orientem o funcionamento do Tribunal e das eleições, mas não para criar normas, sobrepondo-se à legislação eleitoral e a Projetos de lei em debate no legislativo, como ocorrido desta vez, ao praticamente substituir o PL2630/20, mesmo tendo havido uma intenção deliberada do legislador de o barrar.

O judiciário não pode passar por cima do Legislativo em nome de sua eficiência, pois a eficiência do Estado apenas se dá com os poderes se respeitando de forma harmônica

IM: A decisão do TSE de regulamentar a responsabilidade das plataformas digitais sobre o conteúdo publicado, especialmente em relação a fake news e uso de deepfakes, abre um precedente importante para a governança da internet no Brasil. Na sua visão, quais são os principais desafios e benefícios dessa abordagem para a sociedade e para a própria dinâmica das plataformas?

AM: É correto a resolução obrigar a constar rótulo informando alteração do conteúdo por inteligência artificial. Quando o assunto foi debatido no Conar, por exemplo, a imposição não foi feita, mas acabará sendo. O problema é ser ilegítima a medida, pois de competência do legislativo que, assim como no PL2630/20, estava debatendo fake news, estava debatendo o tema da inteligência artificial no PL2338/23.

Quanto à deepfake, acredito que o TSE se precipite ao proibir a tecnologia, como se ela fosse em si um problema. O uso inadequado tem de ser coibido e punido, não a tecnologia. Juiz não sabe fazer leis, acaba sempre tendo em vista a punição e não o direito de uso. O Tribunal não auxilia o debate sobre governança da internet no país, na verdade, atravessa o debate e o prejudica.

IM: Considerando a recente resolução do TSE que introduz medidas regulatórias similares a propostas legislativas anteriormente debatidas e não aprovadas pelo Congresso, como você vê o papel do legislativo na revisão ou contestação dessas normativas? Existe um caminho para que o Congresso e o TSE trabalhem conjuntamente?

AM: Não vejo conciliação entre Congresso e TSE, o legislativo tem sido afastado sempre que propõe debate ou composição. Também não vejo enfrentamento entre os poderes. Vejo hoje uma submissão do Congresso ao TSE e ao STF. A regra do jogo parece clara, os Tribunais dão ao Congresso a chance de legislar; se não o fazem, as Cortes acabam por fazer o trabalho. O problema é que o legislativo não serve apenas para aprovar leis, mas também para impedir as que sejam contrárias ao desejo da população. As Cortes, portanto, absorvem com essa postura a função do legislador que nos representa. É péssimo ao país.

IM: A crescente judicialização das regras eleitorais, especialmente por meio de decisões do TSE e do STF, tem alterado o cenário político brasileiro. De que forma essa tendência afeta a transparência das regras do jogo político e a confiança das instituições democráticas na visão dos eleitores e dos próprios candidatos?

AM: Tem sido recorrente estes Tribunais investigarem e cassarem políticos pelo que pensam ou dizem. Goste-se ou não, são os políticos que temos, representam parte da população e sua palavra é uma ferramenta de trabalho tão relevante que a constituição lhes conferiu poderes especiais de imunidade. Portanto, uma ferramenta a ser especialmente respeitada. As pessoas percebem essa interferência do judiciário na política nacional e entendem que as Cortes estão fora de seu papel original de guardiãs da constituição. Isso impacta na sua credibilidade institucional. Impacta também, creio eu, na segurança do legislativo para confrontar o que entende como abusos do poder judiciário.

IM: A implementação de regulações para combater a desinformação em contextos eleitorais levanta questões significativas sobre os limites da liberdade de expressão. Como essas medidas se alinham com os princípios democráticos de liberdade de expressão e qual deveria ser o papel das instituições eleitorais e das plataformas digitais na promoção de um debate público saudável e informado?

AM: O papel atribuído pela constituição de 88 ao STF é o de garantir o exercício da liberdade de expressão no país, não o de a controlar. O do TSE é garantir o debate público nas eleições, não o de o moderar. Estamos em um tempo em que nossos Tribunais perceberam que a liberdade de expressão, sobretudo nas redes sociais, é um ativo político decisivo para o convencimento do eleitor e precisa, portanto, não de apoio, mas de controle.

Uma visão avessa à intenção do constituinte ao proteger a liberdade de expressão, e que faz nossos tribunais, no lugar de guardarem a constituição, a reescreverem, com uma legitimidade tirada da cartola.

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No início da semana, o TSE editou uma resolução para as eleições deste ano que praticamente repete o texto do PL 2630, conhecido como PL das Fake News pelos seus proponentes, ou da Censura pelos críticos. O texto, que responsabiliza as plataformas de rede social pela remoção prévia de conteúdos que “possam atingir a integridade do processo eleitoral”, foi amplamente combatido pela sociedade no ano passado, de modo que acabou sendo tirado de pauta no Congresso.

Sobre isso, conversamos com André Marsiglia, advogado constitucionalista, especialista em liberdade de expressão. Para ele, a resolução é problemática porque “impõe às big techs um poder de polícia para fiscalizar e gerenciar conteúdos antidemocráticos e desinformativos, sem que tais conceitos estejam definidos juridicamente”, mas ainda que não fosse, o TSE não pode criar normas, sobrepondo-se à legislação eleitoral e a Projetos de lei em debate no legislativo.

Leia a entrevista abaixo:

Instituto Millenium: Como você analisa a capacidade e a autonomia do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em estabelecer normativas que impactam a conduta das plataformas digitais e a disseminação de informações em períodos eleitorais? Qual é a importância desse equilíbrio entre autonomia do TSE e a representação democrática via Congresso Nacional na formulação de políticas que afetam a liberdade de expressão e a integridade eleitoral?

André Marsiglia: É uma ilusão infantil acreditar que fake news serão erradicadas. Que só a verdade prevalecerá nas eleições. Nunca foi assim, nem será, em parte alguma do mundo e da história. Então, estamos diante de uma pesca em que se escolhe o peixe. Talvez pela cor, pelo tamanho ou pelo gosto.

Pior, a resolução impõe às big techs um poder de polícia para fiscalizar e gerenciar conteúdos antidemocráticos e desinformativos, sem que tais conceitos estejam definidos juridicamente. Ou seja, as plataformas vão ajudar na pesca sem saber pescar, ou o que pescar. Óbvio que o resultado será censura. O TSE nestas eleições terceiriza para as plataformas a censura.

O TSE possui autonomia para expedir resoluções e atos normativos que orientem o funcionamento do Tribunal e das eleições, mas não para criar normas, sobrepondo-se à legislação eleitoral e a Projetos de lei em debate no legislativo, como ocorrido desta vez, ao praticamente substituir o PL2630/20, mesmo tendo havido uma intenção deliberada do legislador de o barrar.

O judiciário não pode passar por cima do Legislativo em nome de sua eficiência, pois a eficiência do Estado apenas se dá com os poderes se respeitando de forma harmônica

IM: A decisão do TSE de regulamentar a responsabilidade das plataformas digitais sobre o conteúdo publicado, especialmente em relação a fake news e uso de deepfakes, abre um precedente importante para a governança da internet no Brasil. Na sua visão, quais são os principais desafios e benefícios dessa abordagem para a sociedade e para a própria dinâmica das plataformas?

AM: É correto a resolução obrigar a constar rótulo informando alteração do conteúdo por inteligência artificial. Quando o assunto foi debatido no Conar, por exemplo, a imposição não foi feita, mas acabará sendo. O problema é ser ilegítima a medida, pois de competência do legislativo que, assim como no PL2630/20, estava debatendo fake news, estava debatendo o tema da inteligência artificial no PL2338/23.

Quanto à deepfake, acredito que o TSE se precipite ao proibir a tecnologia, como se ela fosse em si um problema. O uso inadequado tem de ser coibido e punido, não a tecnologia. Juiz não sabe fazer leis, acaba sempre tendo em vista a punição e não o direito de uso. O Tribunal não auxilia o debate sobre governança da internet no país, na verdade, atravessa o debate e o prejudica.

IM: Considerando a recente resolução do TSE que introduz medidas regulatórias similares a propostas legislativas anteriormente debatidas e não aprovadas pelo Congresso, como você vê o papel do legislativo na revisão ou contestação dessas normativas? Existe um caminho para que o Congresso e o TSE trabalhem conjuntamente?

AM: Não vejo conciliação entre Congresso e TSE, o legislativo tem sido afastado sempre que propõe debate ou composição. Também não vejo enfrentamento entre os poderes. Vejo hoje uma submissão do Congresso ao TSE e ao STF. A regra do jogo parece clara, os Tribunais dão ao Congresso a chance de legislar; se não o fazem, as Cortes acabam por fazer o trabalho. O problema é que o legislativo não serve apenas para aprovar leis, mas também para impedir as que sejam contrárias ao desejo da população. As Cortes, portanto, absorvem com essa postura a função do legislador que nos representa. É péssimo ao país.

IM: A crescente judicialização das regras eleitorais, especialmente por meio de decisões do TSE e do STF, tem alterado o cenário político brasileiro. De que forma essa tendência afeta a transparência das regras do jogo político e a confiança das instituições democráticas na visão dos eleitores e dos próprios candidatos?

AM: Tem sido recorrente estes Tribunais investigarem e cassarem políticos pelo que pensam ou dizem. Goste-se ou não, são os políticos que temos, representam parte da população e sua palavra é uma ferramenta de trabalho tão relevante que a constituição lhes conferiu poderes especiais de imunidade. Portanto, uma ferramenta a ser especialmente respeitada. As pessoas percebem essa interferência do judiciário na política nacional e entendem que as Cortes estão fora de seu papel original de guardiãs da constituição. Isso impacta na sua credibilidade institucional. Impacta também, creio eu, na segurança do legislativo para confrontar o que entende como abusos do poder judiciário.

IM: A implementação de regulações para combater a desinformação em contextos eleitorais levanta questões significativas sobre os limites da liberdade de expressão. Como essas medidas se alinham com os princípios democráticos de liberdade de expressão e qual deveria ser o papel das instituições eleitorais e das plataformas digitais na promoção de um debate público saudável e informado?

AM: O papel atribuído pela constituição de 88 ao STF é o de garantir o exercício da liberdade de expressão no país, não o de a controlar. O do TSE é garantir o debate público nas eleições, não o de o moderar. Estamos em um tempo em que nossos Tribunais perceberam que a liberdade de expressão, sobretudo nas redes sociais, é um ativo político decisivo para o convencimento do eleitor e precisa, portanto, não de apoio, mas de controle.

Uma visão avessa à intenção do constituinte ao proteger a liberdade de expressão, e que faz nossos tribunais, no lugar de guardarem a constituição, a reescreverem, com uma legitimidade tirada da cartola.

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