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Pix: eficiência técnica em um sistema monetário fragilizado

Liberdade e controle disputam espaço sob a aparência da inovação

Pix é o pagamento instantâneo brasileiro. O meio de pagamento criado pelo Banco Central (BC) em que os recursos são transferidos entre contas em poucos segundos, a qualquer hora ou dia (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Pix é o pagamento instantâneo brasileiro. O meio de pagamento criado pelo Banco Central (BC) em que os recursos são transferidos entre contas em poucos segundos, a qualquer hora ou dia (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Instituto Millenium
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Publicado em 4 de agosto de 2025 às 20h55.

Por João Loyola

 

Em meio a crises fiscais recorrentes, inflação persistente e descrédito internacional de sua política monetária, o Brasil protagonizou, de forma inesperada, uma das inovações financeiras mais relevantes da década: o Pix. Criado pelo Banco Central e lançado em novembro de 2020, o sistema de pagamentos instantâneos rapidamente se consolidou como peça central da vida econômica nacional. Em 2023, o Pix superou 160 milhões de usuários e processou mais de 43 bilhões de transações, movimentando aproximadamente R$ 17 trilhões. Esse montante equivale a mais de duas vezes o PIB do país naquele ano, conforme dados oficiais do Banco Central.

A adesão massiva e a fluidez das operações fizeram do Pix um marco global. Gratuito para pessoas físicas, disponível 24 horas por dia, com liquidação imediata e integração entre diferentes instituições, ele reduziu o uso de papel-moeda, impulsionou a bancarização e formalizou parte significativa das transações anteriormente invisíveis ao sistema financeiro. Trata-se, sob qualquer perspectiva técnica, de uma realização notável.

No entanto, esse avanço opera dentro de uma estrutura monetária enfraquecida. O real, moeda fiduciária criada em 1994, perdeu cerca de 87% de seu poder de compra desde então, segundo o IGP-M da Fundação Getulio Vargas e o IPCA do IBGE. Mesmo sendo percebido como relativamente “estável” em comparação com outras moedas latino-americanas, o real sofre os efeitos de décadas de expansão fiscal crônica, política monetária pró-cíclica e ausência de âncoras institucionais de longo prazo.

Esse contraste entre uma infraestrutura de pagamentos moderna e uma moeda estruturalmente vulnerável revela uma contradição central. O sistema operacional é do século XXI. O regime monetário, no entanto, permanece ancorado em lógicas do século XX, ou mesmo do XIX. A moeda brasileira, como toda moeda estatal contemporânea, não possui lastro real. Seu valor repousa na confiança no emissor, ou seja, no Estado brasileiro, cuja trajetória fiscal e regulatória é tudo menos confiável.

Friedrich Hayek, em sua obra seminal Denationalisation of Money (1976), antecipava esse dilema. Para ele, a monopolização estatal da moeda leva, inevitavelmente, à

erosão de seu valor real e ao comprometimento da liberdade individual. Em sua proposta, moedas privadas e concorrentes, emitidas em bases voluntárias, seriam capazes de preservar o poder de compra e proteger o indivíduo do arbítrio político. Ludwig von Mises, em The Theory of Money and Credit (1912), identificava a inflação como uma ferramenta deliberada de intervenção estatal. Para ele, o fenômeno não é fruto do acaso, mas expressão de escolhas governamentais orientadas por interesses imediatos. Murray Rothbard, em What Has Government Done to Our Money? (1963), via a moeda fiduciária como um mecanismo de redistribuição coercitiva. Já Robert Nozick, em Anarchy, State, and Utopia (1974), denunciava o caráter ilegítimo de qualquer interferência estatal que afete coercitivamente os direitos de propriedade, incluindo, naturalmente, a manipulação monetária.

A questão não se restringe ao valor da moeda. Ela se estende ao controle da informação e à vigilância. O Pix, ainda que seja apenas um sistema de pagamentos, está intrinsecamente ligado à infraestrutura do Banco Central. Toda transação é registrada, processada e armazenada em tempo real. Isso permite ao Estado, em tese, acesso irrestrito a dados como remetente, destinatário, valor, hora, local e recorrência. Tal capacidade de rastreamento é útil para o combate a crimes financeiros, mas abre margem para usos mais controversos, incluindo fiscalização seletiva, monitoramento ideológico ou penalização política.

Essa preocupação ganha contornos geopolíticos. Os Estados Unidos, por meio do Tesouro e do Federal Reserve, monitoram com crescente atenção a expansão de plataformas como o Pix na América Latina e na África. O temor é claro: sistemas autônomos e eficientes, geridos por bancos centrais de países emergentes, poderiam reduzir a dependência de redes bancárias ocidentais e, em certos contextos, desafiar a hegemonia funcional do dólar. Um sistema de pagamentos que movimenta trilhões sem passar por redes como SWIFT ou instituições como Visa e Mastercard não é apenas um avanço técnico. É também um fator de tensão estratégica.

Por outro lado, a China avança rapidamente com o yuan digital, moeda digital de banco central (CBDC) dotada de rastreabilidade absoluta e programabilidade total. O sistema chinês já permite que autoridades definam o destino de recursos, bloqueiem contas com base em critérios administrativos e até determinem prazos para o uso de determinados valores. Trata-se de um novo paradigma de controle monetário. O Brasil se aproxima dessa arquitetura com o lançamento do Drex.

O Drex, atualmente em fase de testes, será a versão brasileira da CBDC. Ao contrário do Pix, que apenas transfere saldos entre contas bancárias, o Drex será o próprio

dinheiro em forma digital. Essa diferença é fundamental. Enquanto o Pix depende de instituições financeiras privadas, o Drex será uma emissão direta do Banco Central. Com isso, torna-se possível, do ponto de vista técnico e jurídico, estabelecer condições de uso, prazos de validade, filtros geográficos, categorias de consumo autorizadas e até bloqueios automáticos com base em políticas públicas. A documentação oficial do Bacen já contempla essas possibilidades em seus testes-piloto.

Embora defendido sob os argumentos de inclusão financeira, modernização e combate à informalidade, o Drex levanta preocupações legítimas sobre a preservação da liberdade econômica. A experiência recente do Brasil mostra que tais riscos não são teóricos. Em 1990, o Plano Collor confiscou poupanças como medida de combate à inflação. Em 2023, decisões judiciais levaram ao bloqueio de contas bancárias com base em investigações de motivação política, em contextos de legalidade contestável. A combinação entre tecnologia disponível, jurisprudência estabelecida e aceitação social crescente cria o cenário ideal para que mecanismos mais intrusivos se tornem operacionais, mesmo sem ruptura institucional.

Enquanto isso, a população segue aderindo ao Pix com entusiasmo, naturalizando a progressiva extinção do dinheiro físico e acostumando-se a uma arquitetura financeira em que eficiência e rastreamento caminham lado a lado. O paradoxo é claro: o Brasil conta com uma das infraestruturas de pagamento mais avançadas do mundo, mas segue operando com uma das moedas mais frágeis e suscetíveis à manipulação política. O cidadão pode transferir valores com agilidade, mas não consegue escapar da inflação, da tributação regressiva e da vigilância fiscal integral.

A alternativa exige coragem institucional: permitir a pluralização monetária. Isso inclui reconhecer juridicamente o uso de moedas privadas, criptoativos descentralizados e ativos lastreados em commodities. O Bitcoin, por exemplo, oferece escassez programada, neutralidade política e resistência à censura. Esses são atributos que o tornam o experimento real mais próximo da tese de Hayek. Rothbard vislumbrava nesse tipo de sistema um meio de restaurar a soberania individual sobre a própria riqueza e acabar com a espoliação inflacionária promovida por governos.

A discussão não é apenas tecnológica. Ela é filosófica. Trata-se de escolher entre sistemas baseados na autonomia e sistemas baseados na conformidade. Entre moedas que servem ao indivíduo e moedas que servem ao Estado. Entre formas de pagamento que ampliam a liberdade e aquelas que permitem sua contenção silenciosa.

O desafio contemporâneo está em garantir que a eficiência operacional não se converta em instrumento de coerção. O Pix é um modelo técnico exemplar, mas sua integração a uma estrutura monetária estatal, centralizada e inflacionária exige vigilância crítica. A verdadeira disputa do século XXI não será apenas travada nas urnas ou nos tribunais. Ela ocorrerá também nas carteiras digitais, nas políticas de emissão monetária e na infraestrutura invisível das transações cotidianas. Controlar a moeda é, em grande medida, controlar a sociedade. E a luta por liberdade, nesse novo contexto, começa pela defesa de um dinheiro que seja, antes de tudo, expressão da vontade. Não da obediência.

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