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Pablo Marçal, CazéTV e Taylor Swift

Os novos meios de comunicação nos obrigam a repensar nossas instituições

Redes sociais: os novos meios de comunicação nos obrigam a repensar nossas instituições (Oleg Blokhin/Getty Images)
Gabriel Prado

Colunista - Instituto Millenium

Publicado em 2 de outubro de 2024 às 16h36.

Como um candidato que até pouco tempo atrás estava fora do circuito político tradicional tem sido um dos principais nomes na corrida para a prefeitura de São Paulo? O caso de Pablo Marçal intriga analistas políticos porque os fatores usualmente evocados para explicar sucesso eleitoral, como alianças partidárias e tempo de televisão, parecem estar em segundo plano em sua campanha. Marçal decidiu focar seus esforços nas redes sociais, usando apoio orgânico e pago para se promover na internet, e tem colhido bons resultados.

Mas a ascensão à primeira vista improvável do candidato não é uma flutuação qualquer, resultado de uma mudança cultural passageira. É, na verdade, um reflexo de um fenômeno maior da sociedade: o declínio de instituições tradicionais de mediação, causada pela redução dos custos de transmitir informação.

Para ilustrar o que quero dizer, podemos pensar nas transformações pelas quais a imprensa tem passado nas últimas duas décadas. Até algum tempo atrás, o processo para que uma notícia chegasse em um leitor era bem mais extenso. Mesmo após escrita, revisada e diagramada, uma notícia ainda precisava ser impressa em grande volume, carregada em caminhões, carros e bicicletas, e distribuída fisicamente para chegar aos receptores finais.

Num mundo em que a distribuição era tão cara, a moderação do conteúdo precisava acontecer antes de que ele chegasse às pessoas; daí a importância dos editores, responsáveis por decidir o que merecia ou não ser publicado. Esses custos também faziam com que apenas grandes jornais conseguissem operar efetivamente, diminuindo a quantidade total de publicações. Inevitavelmente, os cidadãos Kane tinham o poder de controlar o que era veiculado. O número reduzido de jornais, por sua vez, fazia com que o conteúdo fosse mais moderado: se só há dois jornais em uma cidade, um pode até estar mais à esquerda e o outro mais à direita, mas nenhum vai correr o risco de perder leitores com posições mais extremas.

A internet mudou tudo isso. O barateamento da tecnologia da informação fez com que qualquer um possa criar um blog dentro de casa e sair publicando. Se a mensagem vai ressoar com uma massa de pessoas e ganhar tração é uma questão que passou a depender mais do interesse dos leitores finais do que de algum decisor anterior. No mundo em que é barato distribuir, a moderação acontece depois da distribuição: um vídeo do TikTok é primeiro publicado e é só então que a interação dos usuários iniciais impulsiona ou não aquele vídeo para mais usuários. Mais do que isso, os algoritmos de conteúdo permitem que vídeos diferentes cheguem a pessoas diferentes, propiciando a criação de nichos mais específicos ou extremos.

O analista de tecnologia Ben Thompson chama os efeitos econômicos disso de "Teoria da Agregação": a internet, ao derrubar o custo marginal de distribuir informação para quase zero, remodelou a cadeia de produção de diversos mercados, transferindo a vantagem competitiva de quem é capaz de produzir e distribuir para quem é capaz de atrair o maior número de consumidores sob uma mesma plataforma. A Netflix, por exemplo, fez com que o mais importante passasse a ser a retenção de usuários na plataforma, e não mais as relações com os estúdios, como acontecia no mundo da TV a cabo. Já o Uber inverteu um mercado no qual o mais relevante era a disponibilidade de licenças, carros e motoristas para um em que a vantagem está no número de pessoas com o aplicativo baixado. Se antes os distribuidores competiam usando relações exclusivas com fornecedores, hoje a oferta é comoditizada, e é a experiência do usuário final que é o verdadeiro diferencial estratégico.

É isso que explica, por exemplo, que a CazéTV, uma produtora de conteúdo que nasceu a partir de vídeos de YouTube do até então desconhecido Casimiro Miguel, tenha sido uma das principais formas de se assistir as Olimpíadas, ao lado da tradicional Rede Globo. Vivemos num mundo em que não é mais necessário subir postes de transmissão ou montar grandes estúdios para atingir um determinado público. Nesse mundo, a capacidade de se conectar e fidelizar a audiência, especialidade de Casimiro, ganha muito mais relevância do que tinha antes, quando o mais importante era ter a infraestrutura para chegar nas pessoas.

Outro exemplo emblemático é o de Taylor Swift, que regravou boa parte de seus álbuns diante dessa realidade. Acontece que a artista estava presa a um contrato desfavorável, que dava à gravadora com quem assinou antes do sucesso atual, a Big Machine Records, o direito sobre as gravações originais de seus primeiros álbuns. No entanto, o direito sobre as músicas e as letras continuava com ela. Swift decidiu então regravar os álbuns e orientar seus fãs a ouvirem apenas as novas versões, rotuladas de " Taylor's version ". Com o poder de se comunicar diretamente com o público pela internet, e com a facilidade de poder distribuir seus álbuns com custos marginais praticamente nulos, Swift não depende mais das decisões de uma gravadora para chegar aos fãs – e passou a capturar  a maior parte do valor para si.

A artista previu esse movimento em um artigo de opinião que escreveu para o Wall Street Journal em 2014: "Para mim, isso remonta a 2005, quando fui às minhas primeiras reuniões com gravadoras, explicando a elas que eu estava me comunicando diretamente com meus fãs através de um novo site chamado Myspace. No futuro, artistas conseguirão contratos com gravadoras porque têm fãs – não o contrário."

Essa desintermediação das instituições convencionais de moderação é também o que explica fenômenos como o de Pablo Marçal na política: o candidato consegue apoio político porque tem fãs, e não o contrário. Quando não são mais necessários cabos eleitorais ou tempo de televisão para levar sua mensagem aos eleitores, o poder de caciques partidários ou alianças políticas se reduz. É o declínio do que se chama na literatura de comunicação de "gatekeepers" (algo próximo a "guardiões", em português), as instituições que filtram a disseminação de informação na sociedade. Com menos barreiras à propagação de conteúdo, é a adesão de consumidores finais e não o apoio de instituições moderadoras que ganha maior relevância. Marçal chega aos ouvidos e olhos de milhões de pessoas sem precisar do apoio de quase ninguém.

Se os efeitos dessas mudanças parecem em um primeiro momento positivos, com a transferência de poder de poucos intermediários para as inúmeras pessoas que tomam as decisões de consumo na ponta final, eles também impõem questionamentos sobre como devemos organizar nossa sociedade. Pois, ao contrário do que se pode pensar, o estado democrático moderno não tem um propósito único de dar o máximo de atenção às vontades das massas, mas deve também conter anseios populares quando estes atentam contra direitos individuais ou desestabilizam o tecido social.

Para muita gente, essas instituições "guardiãs" podem parecer como o "sistema" lutando contra tudo aquilo que o ameaça e, de certa maneira, a análise está correta. No entanto, o que os pensadores que formaram as bases do estado liberal moderno retrucariam é que isso é uma propriedade intencional dessa organização, não um defeito.

Quando James Madison, pai fundador dos Estados Unidos, formulou os princípios que embasaram a Constituição americana, ele temia que uma democracia pura poderia ser tomada por facções: grupos de pessoas unidas por impulsos ideológicos ou interesseiros que fossem de encontro aos direitos de outros cidadãos ou aos interesses comuns da sociedade. Madison acreditava que uma república, com representação por intermediários e um sistema de pesos e contrapesos, seria o antídoto a esses riscos. Em Federalista n.º 10, refletindo sobre democracias puras, o estadista escreve: "tais democracias sempre foram espetáculos de turbulência e conflito; sempre foram consideradas incompatíveis com a integridade individual ou os direitos de propriedade; e, em geral, foram tão breves em suas vidas quanto violentas em suas mortes."

Que esse acesso desintermediado ao poder tenha, no Brasil recente, privilegiado candidatos mais à direita, é uma ironia histórica, pois foram autores conservadores que primeiro alertaram sobre os perigos das paixões das massas e sobre a importância das instituições para garantir o progresso adequado da sociedade. Esses sim são ventos que mudam de direção, um dia mais à direita, depois mais à esquerda. Mas os efeitos duradouros da corrosão institucional promovida pela evolução tecnológica são fatos com os quais teremos que lidar como sociedade por muito tempo. Se por um lado podemos comemorar a disrupção de algumas cadeias de valor, com mais poder fluindo para produtores de conteúdo e consumidores finais, por outro precisamos entender que as consequências mais profundas desse processo colocam em xeque o próprio processo democrático sob o qual o mundo moderno foi construído.

Não vivemos mais no mundo de Cidadão Kane, nem no de James Madison, para o bem ou para o mal.

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Como um candidato que até pouco tempo atrás estava fora do circuito político tradicional tem sido um dos principais nomes na corrida para a prefeitura de São Paulo? O caso de Pablo Marçal intriga analistas políticos porque os fatores usualmente evocados para explicar sucesso eleitoral, como alianças partidárias e tempo de televisão, parecem estar em segundo plano em sua campanha. Marçal decidiu focar seus esforços nas redes sociais, usando apoio orgânico e pago para se promover na internet, e tem colhido bons resultados.

Mas a ascensão à primeira vista improvável do candidato não é uma flutuação qualquer, resultado de uma mudança cultural passageira. É, na verdade, um reflexo de um fenômeno maior da sociedade: o declínio de instituições tradicionais de mediação, causada pela redução dos custos de transmitir informação.

Para ilustrar o que quero dizer, podemos pensar nas transformações pelas quais a imprensa tem passado nas últimas duas décadas. Até algum tempo atrás, o processo para que uma notícia chegasse em um leitor era bem mais extenso. Mesmo após escrita, revisada e diagramada, uma notícia ainda precisava ser impressa em grande volume, carregada em caminhões, carros e bicicletas, e distribuída fisicamente para chegar aos receptores finais.

Num mundo em que a distribuição era tão cara, a moderação do conteúdo precisava acontecer antes de que ele chegasse às pessoas; daí a importância dos editores, responsáveis por decidir o que merecia ou não ser publicado. Esses custos também faziam com que apenas grandes jornais conseguissem operar efetivamente, diminuindo a quantidade total de publicações. Inevitavelmente, os cidadãos Kane tinham o poder de controlar o que era veiculado. O número reduzido de jornais, por sua vez, fazia com que o conteúdo fosse mais moderado: se só há dois jornais em uma cidade, um pode até estar mais à esquerda e o outro mais à direita, mas nenhum vai correr o risco de perder leitores com posições mais extremas.

A internet mudou tudo isso. O barateamento da tecnologia da informação fez com que qualquer um possa criar um blog dentro de casa e sair publicando. Se a mensagem vai ressoar com uma massa de pessoas e ganhar tração é uma questão que passou a depender mais do interesse dos leitores finais do que de algum decisor anterior. No mundo em que é barato distribuir, a moderação acontece depois da distribuição: um vídeo do TikTok é primeiro publicado e é só então que a interação dos usuários iniciais impulsiona ou não aquele vídeo para mais usuários. Mais do que isso, os algoritmos de conteúdo permitem que vídeos diferentes cheguem a pessoas diferentes, propiciando a criação de nichos mais específicos ou extremos.

O analista de tecnologia Ben Thompson chama os efeitos econômicos disso de "Teoria da Agregação": a internet, ao derrubar o custo marginal de distribuir informação para quase zero, remodelou a cadeia de produção de diversos mercados, transferindo a vantagem competitiva de quem é capaz de produzir e distribuir para quem é capaz de atrair o maior número de consumidores sob uma mesma plataforma. A Netflix, por exemplo, fez com que o mais importante passasse a ser a retenção de usuários na plataforma, e não mais as relações com os estúdios, como acontecia no mundo da TV a cabo. Já o Uber inverteu um mercado no qual o mais relevante era a disponibilidade de licenças, carros e motoristas para um em que a vantagem está no número de pessoas com o aplicativo baixado. Se antes os distribuidores competiam usando relações exclusivas com fornecedores, hoje a oferta é comoditizada, e é a experiência do usuário final que é o verdadeiro diferencial estratégico.

É isso que explica, por exemplo, que a CazéTV, uma produtora de conteúdo que nasceu a partir de vídeos de YouTube do até então desconhecido Casimiro Miguel, tenha sido uma das principais formas de se assistir as Olimpíadas, ao lado da tradicional Rede Globo. Vivemos num mundo em que não é mais necessário subir postes de transmissão ou montar grandes estúdios para atingir um determinado público. Nesse mundo, a capacidade de se conectar e fidelizar a audiência, especialidade de Casimiro, ganha muito mais relevância do que tinha antes, quando o mais importante era ter a infraestrutura para chegar nas pessoas.

Outro exemplo emblemático é o de Taylor Swift, que regravou boa parte de seus álbuns diante dessa realidade. Acontece que a artista estava presa a um contrato desfavorável, que dava à gravadora com quem assinou antes do sucesso atual, a Big Machine Records, o direito sobre as gravações originais de seus primeiros álbuns. No entanto, o direito sobre as músicas e as letras continuava com ela. Swift decidiu então regravar os álbuns e orientar seus fãs a ouvirem apenas as novas versões, rotuladas de " Taylor's version ". Com o poder de se comunicar diretamente com o público pela internet, e com a facilidade de poder distribuir seus álbuns com custos marginais praticamente nulos, Swift não depende mais das decisões de uma gravadora para chegar aos fãs – e passou a capturar  a maior parte do valor para si.

A artista previu esse movimento em um artigo de opinião que escreveu para o Wall Street Journal em 2014: "Para mim, isso remonta a 2005, quando fui às minhas primeiras reuniões com gravadoras, explicando a elas que eu estava me comunicando diretamente com meus fãs através de um novo site chamado Myspace. No futuro, artistas conseguirão contratos com gravadoras porque têm fãs – não o contrário."

Essa desintermediação das instituições convencionais de moderação é também o que explica fenômenos como o de Pablo Marçal na política: o candidato consegue apoio político porque tem fãs, e não o contrário. Quando não são mais necessários cabos eleitorais ou tempo de televisão para levar sua mensagem aos eleitores, o poder de caciques partidários ou alianças políticas se reduz. É o declínio do que se chama na literatura de comunicação de "gatekeepers" (algo próximo a "guardiões", em português), as instituições que filtram a disseminação de informação na sociedade. Com menos barreiras à propagação de conteúdo, é a adesão de consumidores finais e não o apoio de instituições moderadoras que ganha maior relevância. Marçal chega aos ouvidos e olhos de milhões de pessoas sem precisar do apoio de quase ninguém.

Se os efeitos dessas mudanças parecem em um primeiro momento positivos, com a transferência de poder de poucos intermediários para as inúmeras pessoas que tomam as decisões de consumo na ponta final, eles também impõem questionamentos sobre como devemos organizar nossa sociedade. Pois, ao contrário do que se pode pensar, o estado democrático moderno não tem um propósito único de dar o máximo de atenção às vontades das massas, mas deve também conter anseios populares quando estes atentam contra direitos individuais ou desestabilizam o tecido social.

Para muita gente, essas instituições "guardiãs" podem parecer como o "sistema" lutando contra tudo aquilo que o ameaça e, de certa maneira, a análise está correta. No entanto, o que os pensadores que formaram as bases do estado liberal moderno retrucariam é que isso é uma propriedade intencional dessa organização, não um defeito.

Quando James Madison, pai fundador dos Estados Unidos, formulou os princípios que embasaram a Constituição americana, ele temia que uma democracia pura poderia ser tomada por facções: grupos de pessoas unidas por impulsos ideológicos ou interesseiros que fossem de encontro aos direitos de outros cidadãos ou aos interesses comuns da sociedade. Madison acreditava que uma república, com representação por intermediários e um sistema de pesos e contrapesos, seria o antídoto a esses riscos. Em Federalista n.º 10, refletindo sobre democracias puras, o estadista escreve: "tais democracias sempre foram espetáculos de turbulência e conflito; sempre foram consideradas incompatíveis com a integridade individual ou os direitos de propriedade; e, em geral, foram tão breves em suas vidas quanto violentas em suas mortes."

Que esse acesso desintermediado ao poder tenha, no Brasil recente, privilegiado candidatos mais à direita, é uma ironia histórica, pois foram autores conservadores que primeiro alertaram sobre os perigos das paixões das massas e sobre a importância das instituições para garantir o progresso adequado da sociedade. Esses sim são ventos que mudam de direção, um dia mais à direita, depois mais à esquerda. Mas os efeitos duradouros da corrosão institucional promovida pela evolução tecnológica são fatos com os quais teremos que lidar como sociedade por muito tempo. Se por um lado podemos comemorar a disrupção de algumas cadeias de valor, com mais poder fluindo para produtores de conteúdo e consumidores finais, por outro precisamos entender que as consequências mais profundas desse processo colocam em xeque o próprio processo democrático sob o qual o mundo moderno foi construído.

Não vivemos mais no mundo de Cidadão Kane, nem no de James Madison, para o bem ou para o mal.

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