Os ataques contra instituições em Brasília e suas consequências políticas
O Instituto Millenium ouviu o cientista político Carlos Pereira e o professor da Faculdade de Direito da UERJ Gustavo Binenbojm
Publicado em 9 de janeiro de 2023 às, 18h39.
Última atualização em 10 de janeiro de 2023 às, 13h29.
As invasões e depredação do Congresso Nacional, STF e Palácio do Planalto por manifestantes extremistas impactaram o Brasil e o mundo. Mas, indo além das reações, quais as implicações políticas de tudo o que aconteceu (e continua acontecendo)? O Instituto Millenium ouviu o cientista político e professor titular da FGV Carlos Pereira, e o professor Titular da Faculdade de Direito da UERJ Gustavo Binenbojm sobre o que esperar do cenário político no Brasil. Confira a entrevista abaixo:
1.Os eventos de ontem revelam uma reação, inédita na história republicana, contra os Três Poderes da República. Quais seriam as causas desse fenômeno político? As instituições da democracia brasileira saem fortalecidas ou enfraquecidas depois das invasões e depredações de ontem?
Carlos Pereira: Eu diria que uma das principais causas dos protestos antidemocráticos que o Brasil viveu ontem é o não reconhecimento do resultado das urnas em um ambiente de muita polarização política. Então, existe um germe antidemocrático baseado no não reconhecimento do legítimo vencedor das eleições de 2022 e, consequentemente, essas pessoas - mais radicais - por não reconhecer a vitória e não reconhecer a derrota como fazendo parte do jogo político, se entricheiraram e se manifestaram. E o processo de mobilização, que terminou em vandalismo e depredação do patrimônio público dos três poderes da República, são muito mais para mim um agravante… mas a causa principal é o sentimento de não reconhecimento da derrota e da não legitimidade do vencedor.
Com relação ao fortalecimento das instituições, eu acho que sim, eu acho que é possível que se verifique no Brasil algo semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos com o ataque terrorista de 11 de setembro, em que houve uma unidade muito grande de ação entre o executivo, o legislativo e o judiciário. Também na esfera subnacional, houve uma delegação de poder muito grande para o executivo para enfrentar um inimigo comum. Eu acho que o inimigo comum são aqueles, aqui no caso brasileiro, que se contrapõem à democracia.
Portanto, é muito provável que essa ação unificada do Judiciário, do Presidente Lula e do Legislativo, expressado especialmente na figura dos Presidentes das Casas Legislativas, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, sinaliza um fortalecimento grande da democracia brasileira e das instituições, porque também pode ser inédito a ação unificada de todos esses poderes na defesa das instituições. Então, a despeito das mobilizações, a democracia, na realidade, já se fortaleceu. Gustavo Binenbojm: Os ataques acontecidos no dia 8 de janeiro em Brasília às sedes dos três poderes da república têm causas profundas, que transcendem ao território brasileiro. Elas remetem a um cenário nacional, mas também internacional de polarização extrema em que num dos pólos se encontra uma extrema-direita agressiva, que não respeita as instituições democráticas e que aposta nesse tipo de mobilização política, de atuação violenta, inconformada tanto com o resultado eleitoral quanto com decisões dos poderes constituídos que as desagradam, especialmente decisões do poder judiciário.
Eu tenho a convicção de que esse fenômeno foi insuflado pelas lideranças bolsonaristas brasileiras, que emularam o fenômeno bastante semelhante acontecido nos EUA há dois ou três anos atrás, que foi a invasão do Capitólio, a sede do poder legislativo norte-americano, e que de alguma forma inspiraram esse movimento bolsonarista de depredação, intimidação, e que configura induvidosamente crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Me parece que há uma clara demonstração do enfraquecimento da democracia no Brasil, da debilidade das instituições, tanto de da segurança pública como das instituições de persecução penal, o Ministério Público simplesmente não se manifestou até o momento.
A atuação das forças de segurança, especialmente da Polícia Militar do Distrito Federal, foi pífia, senão conivente, o secretário de segurança não apareceu sequer para prestar esclarecimentos após os eventos. Governador do Distrito Federal pediu desculpas ao presidente da república, e eu tenho a impressão de que há uma percepção na decretação da intervenção federal no Distrito Federal na área de segurança pública, seguida das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, de que há medidas urgentes de desmobilização que precisam ser tomadas - já deveriam ter sido tomadas - em relação a esses acampamentos que pedem golpes militares, que insuflam as forças armadas, mas mas essa é uma crônica de uma tentativa de golpe anunciada.
2. Ainda no dia 07 de janeiro, o Ministro da Justiça fez referência a "uma suposta 'guerra' que impatriotas dizem querer fazer em Brasília", e que teria orientado PF e PRF e conversado com o governador do DF e o Ministro da Defesa. O que esses agentes deveriam ter feito para evitar o pior?
CP: Eu acho que houve um erro generalizado. Naturalmente que o Governo Estadual é o principal responsável, por meio da sua Polícia Militar, na proteção do patrimônio público e da ordem em um determinado estado, mas já existia informação de sobra da intenção dos dos líderes dos protestos que estavam acampados em frente ao QG de Brasília. Então diante dessas informações (inclusive que foram publicadas no jornal, no sábado, nos principais jornais) competia também ao governo federal uma ação mais robusta no sentido de organizar junto com o governo do estado, junto com a Força Nacional, junto com as Forças Armadas, o ministro da defesa, uma ação mais robusta de proteção. Com isso eu não quero tirar responsabilidade do Governador e do Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, mas também o Governo Federal poderia ter se preparado melhor para enfrentar eventos dessa natureza.
GB: O ministro da Justiça é muito bom com as palavras, mas não se revelou muito ágil com as ações. O ministro da justiça, o presidente da república, têm a prerrogativa de convocar as forças armadas com base no artigo 142º da constituição, regulamentado por lei, para a Garantia da Lei e da Ordem, a chamada GLO.
E a percepção era de que, na véspera dos acontecimentos do sábado, ou mesmo antes disso, haveria um ataque à Praça dos Três Poderes e à sede dos poderes da república. Nada foi feito. As Forças Armadas não foram mobilizadas. O governador do Distrito Federal quedou-se inerte, omisso, a Secretaria de Segurança Pública do DF também. Essa Polícia Militar do Distrito Federal teve uma postura amigável, amistosa aos manifestantes que de manifestantes se tornaram rapidamente criminosos, violentos, que colocaram em risco o patrimônio público e o depredaram. Armas letais e não letais, informações e também vida, vidas humanas e a incolumidade física de pessoas.
Então me parece que houve um desacerto claro entre o governo federal e o governo do Distrito Federal na atuação preventiva contra esse tipo de manifestação, porque afinal de contas o Plano Piloto de Brasília é muito pequeno. A chegada desses cem ônibus lotados era previsível, poderia ter sido interceptada. E acho que houve ou uma negligência deliberada, uma cegueira deliberada por parte das autoridades do Distrito Federal, ou no mínimo uma grave negligência ou imperícia na atuação das forças de segurança do Distrito Federal combinada com uma atuação um pouco incisiva da parte do Ministério da Justiça e da Segurança Pública.
3. A Presidência da República, o STF, a AGU e o governo do DF tomaram medidas que ampliam seus poderes em resposta aos acontecimentos. Entre elas, o pronto afastamento do governador do DF por decisão monocrática do STF. Como você avalia essas atuações?
GB: Eu entendo que a Advocacia-Geral da União postulou medidas necessárias porque o governo federal talvez entendesse que não tinha competência para adotá-las de maneira autoexecutória, isto é, independentemente de determinação do poder judiciário, e o ministro Alexandre de Moraes acatou a maior parte dos pedidos da AGU. Dentre esses pedidos, o que me parece mais controverso é o afastamento do governador do Distrito Federal, que foi reeleito por ampla maioria no pleito eleitoral por uma decisão monocrática do relator de um inquérito que sequer terá competência para julgar um eventual crime comum do governador. Todos nós sabemos que a competência para julgar crimes comuns de governadores de estados e do Distrito Federal é do Superior Tribunal de Justiça. Então esse afastamento é algo problemático do ponto de vista constitucional e legal. Embora entenda as preocupações que motivaram a decisão do ministro Alexandre de Moraes, os instrumentos para o afastamento de um governador de estado são constitucionalmente previstos, no caso de crime de responsabilidade, autorização do Poder Legislativo com a instauração do processo, ou no caso de um crime comum pelo poder judiciário.
Essa hipótese de afastamento cautelar é uma hipótese realmente sui generis e precisa ser debatida com cuidado, com prudência, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. No mais, me parece que outras medidas poderiam ser adotadas pelo presidente da república e pelo ministro da Justiça e da Segurança Pública, sem a necessidade de um recurso ao Supremo Tribunal Federal. As Forças Armadas podem ser convocadas com base no artigo 14º da Constituição e na lei que regulamenta a garantia da lei da ordem. E a desmobilização de acampamentos com manifestantes violentos pode ser determinada também por governadores aos seus respectivos secretários de Segurança Pública.
Então acho que são medidas administrativas importantes, mas que não necessariamente precisariam mobilizar um juízo universal, que agora se concentrou no Supremo Tribunal Federal.
CP: Eu avalio de forma muito positiva a decisão da Suprema Corte, na figura do seu ministro Alexandre de Moraes e também do presidente Lula, de solicitar a intervenção no Distrito Federal e a suspensão do governador por noventa dias. Acho que diante do descontrole que foi verificado e da falta de cooperação, e de uma ação preventiva adequada, o Governo Federal, junto com o Judiciário, tem que tomar pé das coisas. E essa intervenção tende a trazer maior capacidade de atuação e de convencer a população, que ainda pretende ou pretendia se engajar em algum tipo de mobilização antidemocrática, a reavaliar essa decisão, dadas as potenciais penalidades, inclusive do ponto de vista judicial.
4. Acha que isso foi o desfecho de um cenário político conturbado, ou apenas o começo? O que devemos esperar daqui pra frente, tanto para os movimentos populistas quanto para as autoridades públicas?
GB: Acho que é o começo de um cenário político muito conturbado que se prenuncia nesse terceiro mandato do presidente Lula. Não há indicativo de que a situação se pacifique, pelo menos no curto prazo. As instituições precisam atuar de maneira pronta, firme, mas dentro da Lei.
CP: A tendência é que, com o passar do tempo, as coisas se acomodem. Especialmente se as punições vierem de forma muito contundente, e os que participaram diretamente, e financiaram esses atos antidemocráticos, sofrerem sanções importantes. Então, se o Estado for capaz de impor perdas, não só para os perpetradores diretos, mas também os que financiaram esses atos antidemocráticos e golpistas, é bem provável que ocorra um arrefecimento dessas mobilizações, e venhamos a enfrentar uma rotina democrática mais duradoura.
5.Quais são os impactos desses acontecimentos para a polarização da política brasileira e para a disputa de 2026? GB: Me parece que, em primeiro lugar, é um recrudescimento da polarização política. Há uma tendência de o grupo bolsonarista se tornar minoritário, porém mais radical, com atos de radicalização se repetindo, porém, de acordo com a repressão e a eficiência da repressão estatal, irem se minimizando. Acho que há também uma tendência a uma cisão na ala mais à direita do espectro político, com governadores como Romeu Zema, de Minas Gerais, e Tarcísio de Freitas, de São Paulo, desembarcando do bolsonarismo mais radical e buscando uma liderança mais independente, buscando se descolar do radicalismo bolsonarista para se afirmarem como líderes mais liberais e democratas.
E acho que ao centro e à esquerda vão surgir lideranças que vão procurar questionar a capacidade de reação do governo do PT a esses ataques bolsonaristas, afirmando que apenas com uma aliança, um arco de alianças mais amplo a partir de 2026 será possível conferir maior estabilidade política ao país no nosso regime presidencialista. Então, eu imagino que à direita surjam lideranças mais radicais, filhas do bolsonarismo, lideranças moderadas como Tarcísio de Freitas e Romeu Zema, ao centro líderes como Eduardo Leite, Simone Tebet e à esquerda, evidentemente além do presidente Lula, líderes como Fernando Haddad, o próprio Flávio Dino e novas lideranças como o próprio Boulos e outros que venham a reboque do governo petista.
CP: A grande maioria da população, de acordo com a pesquisa da Quaest de incursões na internet ontem, com mais de duas mil observações, mostra que 90% da população se posicionou de forma contrária aos protestos ocorridos ontem em Brasília e à depredação, à violência, ao vilipêndio contra os prédios que representam a República Democrática Brasileira.
Então, eu acredito que a tendência é que a polarização diminua diante do exagero, e ocorra um enfraquecimento paulatino desses radicais, diante da grande frustração e tristeza, que a maioria da população sentiu nesse episódio.
*As opiniões aqui publicadas não necessariamente refletem o posicionamento do Instituto Millenium