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O Uber e a crença na vida após a CLT

Esses são questionamentos de uma discussão legislativa que já nos cansa

Motorista do Uber: O Uber e a crença na vida após a CLT (Zanzar/Divulgação)
Motorista do Uber: O Uber e a crença na vida após a CLT (Zanzar/Divulgação)

O assunto segue quente, mas eu o trago aqui apenas como exemplo. Refiro-me à regulamentação de trabalhadores por aplicativos e, mais particularmente, à decisão da Justiça do Trabalho que ficou famosa no último mês. Como amplamente divulgado, a 4ª Vara do Trabalho de São Paulo declarou a natureza empregatícia do trabalho prestado pelos motoristas à Uber, e condenou a empresa ao pagamento de 1 bilhão de reais por “danos morais coletivos” (90% do valor foi destinado ao FAT, fundo que é a principal fonte de recursos do BNDES).

Não entro no mérito da decisão e resguardo o óbvio respeito ao entendimento do colega prolator. Relembro, contudo, algumas considerações de ordem geral que são feitas sempre que se apresenta o (já cansativo) debate sobre a construção de uma legislação futura sobre o assunto - e é apenas esse o meu enfoque aqui.

Inicio com o registro,  lamentável para alguns e divertido para outros, de que a própria associação porta-voz dos motoristas autônomos de São Paulo acabou por desdenhar da decisão com um polido “obrigada, Exa., mas não é isso que queremos”.

E por que esse registro importa em uma discussão sobre rumos legislativos? Porque, de fato, como já tive oportunidade de escrever mais de uma vez, os principais interessados na suposta proteção proporcionada pela CLT parecem nunca ter sua voz respeitada. Sempre que perguntados, dizem um inequívoco não ao vínculo empregatício (veja-se, entre tantas, a pesquisa Ibope feita em julho/20, quando mais de 70% dos motoristas responderam que dispensam a “proteção” estatal).

Relembro ainda algumas outras reflexões que costumo formular:

1) Será que é verdade o lugar-comum de que é preciso haver “alguma regulação” para os trabalhadores que auferem renda via plataformas? Esses trabalhadores, como microempreendedores que são (MEI), já não têm acesso aos principais benefícios previdenciários (auxílio-doença, auxílio-acidente, aposentadoria por invalidez, pensão e aposentadoria por idade), a um custo muito menor do que aquele pago pelos empregados celetistas (5% contra quase 30% do salário-mínimo)? 2) Não seria conveniente lembrar que essa forma de trabalho floresceu numa sociedade como a brasileira, onde há informalidade e baixa instrução, justamente em razão de sua relativa liberdade? Não é, por isso, uma ocupação que gera renda e trabalho imediatos a quase qualquer pessoa de quase qualquer qualificação? 4) Não seria bom ter em mente que o texto bem-intencionado que chega ao Congresso Nacional pode sair outro bastante diverso – de teor até oposto? Que há muitos interessados apenas na sindicalização desse enorme contingente de trabalhadores? Ou outros simplesmente de olho na maior arrecadação (e o governo de fato já sinaliza com um projeto de lei que preverá alíquota de 27,5% de contribuição previdenciária)?

Esses são questionamentos, reitero, de uma discussão legislativa que já nos cansa. Resta-nos observar que rumo ela tomará sem que, recomenda-se, tenhamos muitas esperanças no melhor desfecho.

Muito mais interessante no momento me parece a constatação de que o tema exemplifica um contexto não tão visível: a queda de braço que se estabeleceu nos últimos tempos entre o STF e a Justiça do Trabalho. E, de fato, como adiantei, trato do assunto apenas porque ele é representativo desse embate.

A nossa corte constitucional tem consolidado entendimentos jurisprudenciais de respeito à autonomia individual e à liberdade de contratação. Fundamentando-se explícita ou implicitamente na análise econômica do Direito, o tribunal tem valorizado o cumprimento de contratos firmados, a responsabilidade individual e o fomento a relações de trabalho não necessariamente empregatícias. Reclamações Constitucionais são julgadas em ritmo diário de modo a reiterar a observância a precedentes da Corte quanto à prevalência de contratos de prestação de trabalho sem características de emprego. Em coloquial resumo, o nosso STF acredita em vida após a CLT.

Alguns setores da Justiça do Trabalho, contudo, parecem ter dificuldade em lidar com isso. O apego ao passado, a aparente negação da realidade e a confiança em ideias anacrônicas como “luta de classes” e “exploração capitalista” parecem mover os resistentes. Não são poucas as decisões que se distanciam dos entendimentos do STF sobre a matéria e a quase integralidade dos cursos de formação institucionais parecem direcionados a convencer a magistratura a trilhar um caminho jurisprudencial diferente do Supremo. A coisa chegou a um nível em que já se noticia um inusitado enfrentamento institucional.

A consequência mais direta desse desnecessário embate é previsível: ainda maior insegurança jurídica e ainda maior descrédito no Poder Judiciário. É uma queda de braço que tende a machucar os dois braços até que sobrevenha o desenlace. É na boa perspectiva deste desenlace, aliás, que reside o único consolo: se a discussão legislativa sobre regulação do trabalho via plataformas tende a ter um desfecho desanimador, o embate entre a Justiça do Trabalho e o STF merece um acompanhamento mais esperançoso. A hierarquia constitucional e a liberdade devem prevalecer. Confiramos.