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O que esperar das eleições americanas – parte 2

Na segunda parte da entrevista, os especialistas respondem o que mudou de 2020 para cá e como fica o Brasil nesta equação

Donald Trump e Kamala Harris, que disputam a presidência dos EUA (Kevin Dietsch/Elijah Nouvelage/AFP/Getty Images)
Donald Trump e Kamala Harris, que disputam a presidência dos EUA (Kevin Dietsch/Elijah Nouvelage/AFP/Getty Images)

Com desempenho fraco em 2020, Donald Trump não conseguiu ser reeleito em 2020, mas agora aparece como favorito. O que mudou? Para os especialistas, o fim da pandemia e a percepção de piora econômica no atual governo Biden foram cruciais para a alavancada do candidato conservador. Além disso, na segunda parte de nossa entrevista, Diogo Costa (cientista político, presidente da FEE e ex-CEO do Millenium), Adriano Gianturco (Coordenador do curso de Relações Internacionais do IBMEC de Belo Horizonte) e Vinícius Rodrigues Vieira (Professor da Faap, FGV e IDP) respondem qual resultado acreditam que seja melhor pro Brasil e quais serão os principais desafios do próximo presidente dos EUA. Confira abaixo:  

Instituto Millenium: Trump não conseguiu ser reeleito em 2020, mas agora aparece mais forte, com boas chances de vitória. O que mudou nestes 4 anos? Foi algo no ecossistema político local, ou um movimento mais amplo, do qual o Brasil também pode ver consequências em 2026?  

Diogo Costa: Acho que houve duas mudanças principais desde 2020. Primeiro, não estamos mais no auge de uma pandemia. Segundo, apesar de a economia não indicar recessão, a inflação e a incerteza econômica sob Biden geraram o que chamam de "Vibe Session" — uma espécie de “recessão de vibe”, em que, apesar do desemprego baixo e da inflação controlada, o sentimento das pessoas é de insegurança. Isso tem prejudicado Biden e favorecido Trump, que ficou com uma boa memória desse período. 

Além disso, o trumpismo se normalizou; há menos vergonha em apoiar Trump. Hoje, figuras como Ackman, Musk e até Ben Shapiro, que foi contra Trump em 2016, estão abertamente apoiando-o, o que facilita o conforto de outros em declarar apoio ao candidato republicano. 

Vinícius Rodrigues Vieira: Trump surge com boas chances de vitória, muito em função da memória econômica positiva de seu governo, em comparação com o de Biden. Embora tenha sido prejudicado nas eleições anteriores pela percepção de má gestão da pandemia, a narrativa que persiste é a de uma inflação mais controlada sob Trump do que na administração atual, mesmo que a inflação já fosse uma questão em seu governo. Essa percepção econômica, junto com sua capacidade única de mobilizar uma base radicalizada, solidificou seu apoio no Partido Republicano, onde outros candidatos como Nikki Haley e Ron DeSantis, que foram bem avaliados como governadores, não conseguiram superar o apelo do trumpismo. 

A base de apoio de Trump tem uma forte ligação com uma identidade WASP (branca, anglo-saxã e protestante), o que explica a dificuldade de candidatos republicanos moderados em atrair o núcleo duro dos eleitores de Trump. Este fenômeno não se limita aos EUA e reflete um movimento nacionalista global, muitas vezes excludente e centrado em uma visão personalista e messiânica da liderança. Esse nacionalismo radical, de teor religioso, está presente também no Brasil, onde Bolsonaro atraiu segmentos da população com valores conservadores e até reacionários, que buscam reafirmar uma identidade cristã, em oposição ao sincretismo e ao secularismo históricos do país. 

No caso brasileiro, embora o nacionalismo racial seja menos explícito do que nos EUA devido ao histórico de mestiçagem e sincretismo, há uma rejeição velada às raízes africanas e à diversidade religiosa, direcionando-se contra o secularismo e favorecendo valores cristãos conservadores. Essa abordagem visa reconstruir uma narrativa conservadora que contesta as interpretações progressistas da identidade nacional, reforçando um modelo de direita radical que, assim como a extrema esquerda, questiona a democracia e a independência dos poderes, além de promover um discurso messiânico que se apresenta como salvação para aqueles que se sentem marginalizados pela globalização e pelas mudanças sociais. 

IM: Para o Brasil, é melhor uma vitória de Trump ou de Kamala? Por quê? 

Adriano Gianturco: Para o Brasil, com certeza, o melhor cenário seria uma vitória de Trump, por dois motivos principais, a meu ver. Um, pela possível batalha contra a censura, a perseguição e a repressão que está havendo aqui, especialmente nas redes sociais, a perseguição à direita, a formadores de opinião, analistas, comentaristas, jornalistas, etc. Internamente, é muito difícil que alguma solução venha, porque ninguém tem a força de se opor internamente. Alguma ajuda pode talvez vir de fora. Se alguma ajuda pode vir de fora, pode vir talvez dos Estados Unidos, que são obviamente a maior potência internacional. E se tiver Trump, um Congresso mais à direita, mais alinhado a essas ideias, talvez eles possam fazer algum tipo de pressão. Porque, hoje, as notícias de bastidores falam que há um apoio tácito, implícito, do governo americano democrata, exatamente um apoio a toda essa iniciativa de censura, perseguição e repressão.  

Segundo, até pela questão das relações internacionais, ou seja, o governo Lula está levando o Brasil para uma guinada à esquerda extremista, junto com países como Bolívia, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Irã, Rússia, China, etc. Obviamente, os Estados Unidos, mesmo sob o comando do Partido Democrata, não está gostando. Já expressou isso várias vezes, mesmo com Biden. Mas, obviamente, caso tivesse um governo de direita, o descontentamento seria com certeza mais forte e talvez alguma ação mais incisiva, tentando pressionar o Brasil para que não vá ainda mais naquela direção. 

DC: Eu não tenho muita certeza nesse momento, eu acho que o Brasil precisa ser melhor para o Brasil. Essa é a chave agora. E o Trump é muito protecionista, o que pode significar menos oportunidades de cooperação econômica. Pode também significar mais oportunidades, caso ele queira punir a China e encontrar no Brasil uma alternativa. E eu não sei, é difícil a gente saber exatamente para onde isso vai com ele. E os democratas, por mais que eles não idolatrem tarifas e protecionismo como o Trump, a gente também não tem muita certeza se eles vão dar passos importantes em direção ao maior livre comércio. Então algumas pessoas acham que os democratas só não falam, mas no fundo não vão agir muito diferente do Trump, ou pelo menos não vão agir muito diferente do que foi o governo anterior do Trump. Parece que agora ele reforça sua posição anti-China. Então eu acho que o importante aqui é o Brasil ser mais a favor do Brasil e com isso conseguir ter mais oportunidade de cooperação com os Estados Unidos. 

VRV: Para o Brasil, o impacto das eleições dos EUA varia conforme quem esteja no poder. No caso do governo Lula, uma vitória de Trump traria complicações, dado o alinhamento claro de Trump com a direita brasileira, que poderia usar esse respaldo externo para enfraquecer o governo Lula. A vitória de Trump, aliás, poderia incentivar setores mais radicais da direita a pressionar e até desestabilizar o governo, em um movimento semelhante ao que vimos em tentativas de subversão institucional nos eventos de 6 de janeiro nos EUA e 8 de janeiro no Brasil. 

Trump provavelmente adotaria uma postura mais isolacionista e hostil aos governos de esquerda na América Latina, o que seria desfavorável para Lula, possivelmente prejudicando suas chances de reeleição. Em termos econômicos, no entanto, é improvável que Trump corte relações com o Brasil, considerando a parceria de longo prazo e o interesse estratégico dos EUA em conter a influência da China na América Latina. Trump tende a adotar uma postura abertamente contra a China, enquanto Kamala Harris talvez buscasse a contenção por meio de investimentos indiretos e diplomacia econômica mais sutil. 

A nível global, a vitória de Trump poderia ser vantajosa para o Brasil no curto prazo por reduzir o envolvimento dos EUA em conflitos internacionais, como na Ucrânia e no Oriente Médio. No entanto, a visão isolacionista de Trump enfraqueceria ainda mais o multilateralismo, prejudicando países de médio porte como o Brasil, que dependem de alianças e da ordem multilateral para ampliar seu poder de barganha, especialmente em negociações com potências como a China. 

Kamala Harris, por sua vez, representa um compromisso com a continuidade da ordem democrática liberal e a inclusão econômica, princípios que marcaram o pós-guerra e que buscam promover igualdade de oportunidades em nível global, beneficiando também o sul global. Dessa forma, um governo de Kamala manteria mais ativa a participação dos EUA no multilateralismo, beneficiando a política externa de países que buscam diversificar suas parcerias e influências. 

 

IM: Independente de quem seja eleito na semana que vem, na sua opinião, qual será o principal desafio do próximo presidente dos Estados Unidos? 

DC: Vou elencar três aqui. O primeiro é o déficit. Não dá para os Estados Unidos continuarem com um déficit acima de 6%. E pelo menos uma parte disso é porque o governo americano tem aumentado seu apetite de empréstimos. Isso tem algum impacto na economia. Então, um desafio é instituir uma política de austeridade nos Estados Unidos agora. O segundo é o desafio geopolítico, evitar uma Terceira Guerra Mundial. E como conseguir fazer isso com China, Rússia e Irã? Se tornando um pouco mais agressivos na política externa, acho que é outro desafio bastante sério, bastante importante, bastante difícil. E o terceiro é conseguir uma reforma micro nos Estados Unidos. Então você conseguir fazer com que o país tenha um ambiente regulatório capaz de ampliar a produção energética americana, a produção e distribuição energética americana, isso é fundamental. Você conseguir fazer uma reforma nas relações de licenciamento ambiental, de cabotagem, de transporte, fazer uma reforma capaz de aumentar a construção civil, de melhorar a infraestrutura. Ou seja, tem várias reformas e vários gargalos que hoje o governo americano se encontra, em grande parte por causa do atual estoque regulatório e também dos processos da configuração da burocracia americana, que ficou muito vetocrática, virou muito esclerosada, então eu acho que esse é um outro baita desafio que os Estados Unidos conseguiram atacar e também tem um impacto gigante para a população americana e também para o resto do mundo. 

VRV: O principal desafio é lidar com um país em declínio relativo, a dívida pública é assustadora e isso pode gerar no longo prazo uma perda de confiança no dólar, que talvez só mantenha seu papel pela falta de uma alternativa com credibilidade, uma moeda de reserva com credibilidade, vejo esse como principal desafio nos Estados Unidos, porque desse problema derivam em outros, a vontade de se isolar pela falta de capacidade militar, pela falta de liderança diplomática. E as divisões internas, que talvez possam até ser superadas pelo Trump, mas a custo do quê? De ignorar ali os grupos minoritários, que teriam que se contentar com o papel subalterno na sociedade. Ele quer voto de negros, latinos, mas desde que eles saibam o seu lugar dentro dessa ordem que claramente favorece a população branca e, dentro dos brancos, sobretudo, aqueles de origem anglo-saxã, protestante, descendentes de europeus do norte. Eu vejo essa lógica por trás do Trump, e isso às vezes aparece como lá no discurso, que se chamou Porto Rico, um aliado, de uma ilha de lixo. Então, lidar com uma hegemonia em declínio não é fácil. Todas as hegemonias ascendem e caem, os Estados Unidos talvez não tenham nada o que fazer se não controlar essa queda relativa. E esse processo de queda, a história ensina, pode gerar até mesmo tensões, guerras, conflitos internos, o que pode vir a acontecer num cenário em que Trump, por exemplo, perca por muito pouco, insista nas fraudes das urnas. Então, mesmo o lado democrata, talvez não aceite, mas por meio democráticos, pelo menos. Haverá resistência a um segundo mandato do Trump, então um país dividido e em vias de declínio é extremamente difícil de ser governado, porque as expectativas da população são elevadas e nem sempre a conjuntura internacional e doméstica vai ser propensa a entregas razoáveis nesse sentido. 

AG: Os desafios são vários, mas, ao meu ver, os principais são dois. Um, enfrentar a ascensão de países do chamado Sul Global, especialmente da China, e enfrentar o próprio “declínio”, que não é um declínio tão grave, mas essa questão de liderança nas relações internacionais. O segundo é algo muito complicado, que o próprio Trump fez muito mal no primeiro mandato dele, porque acabou isolando os Estados Unidos, na verdade, e não conseguiu isolar a China. Ele saiu de várias organizações internacionais quando o que devia ser feito era, ao contrário, isolar os adversários políticos.  

E, do outro lado, diria, iria encontrar uma certa unidade interna, doméstica, nacional. É claro que isso não é perfeitamente total, nunca é possível. Mas várias pesquisas mostram que a quantidade de americanos que não acreditam em alguns valores básicos fundantes dos Estados Unidos, de, por exemplo, do American Dream, o sonho americano, ou de uma certa superioridade da civilização americana, ou que o próprio país de fato seja um país livre, justo, etc, hoje aumentou muito. Então, há uma descrença dos americanos com a América mesmo, com os princípios e valores fundamentais que fundaram a nação americana.