O protecionismo simples, como essa alíquota de 92,8%, é completamente surreal para qualquer mercado
Confira entrevista com a Duquesa de Tax, sobre a nova taxação de pequenas compras em plataformas internacionais
Publicado em 13 de maio de 2024 às, 16h42.
A notícia da taxação das compras internacionais de valor inferior a 50 dólares, que avança no Congresso, pode confundir, por parecer noticia repetida. Na realidade, essas compras já são taxadas atualmente, mas apenas por ICMS, num percentual de 20,5%. Se o projeto passar do jeito que está, incidirá também o imposto de importação, totalizando uma alíquota de 92,8% de tributação, algo que fará muita diferença no bolso dos brasileiros.
Para o governo, no entanto, só há vantagens: além de aumentar a arrecadação, a medida ainda agrada os grandes varejistas nacionais, que há tempos cobram uma solução para a concorrência de produtos chineses, especialmente os vendidos em plataformas populares, como Shein, Shoppee e Ali Express. Nesta entrevista para o Instituto Millenium, a advogada tributarista Maria Carolina Gontijo, conhecida nas redes sociais como a “Duquesa de Tax” explica os detalhes da mudança, e porque o protecionismo não é uma boa ideia. Confira.
Instituto Millenium: As compras internacionais abaixo de US$ 50 já não estavam sendo taxadas? O que mudaria com a aprovação deste novo projeto?
Maria Carolina Gontijo: Nos últimos 12 meses, esta já seria a terceira mudança. Já é difícil de entender, e quando fica mudando o tempo inteiro, só piora.
Até agosto de 2023, quando a gente comprava alguma coisa, de qualquer valor, que não era um envio de pessoa física para pessoa física, estávamos sujeitos à tributação. A questão é que não tinha fiscal suficiente para tudo isso, então era um negócio meio aleatório. Por isso que muita gente dizia "ah eu nunca fui tributado".
Às vezes os estados tributavam, às vezes não. Minas sempre tributou, mas, por exemplo, sei de muita gente que falava que São Paulo não tributava, só passava com o imposto de importação. Cada um fazia de um jeito.
Só que o governo viu um aumento brutal de importação e uma possibilidade de arrecadação. Vamos pensar que, há uns 10 anos, quem quisesse importar tinha que saber inglês, ter cartão internacional, tinha que ter um monte de coisas que dificultavam. O nível de importação era bem menor.
Mas, na medida que esses sites entraram, tudo em português, boleto, possibilidade de dividir em várias vezes... isso acessa muito mais pessoas, e muito mais gente começou a importar. Então o governo olhou aquilo ali e falou: ‘nossa, estou perdendo dinheiro aqui’. E então implementou o “remessa conforme”, que é o sistema em vigor no momento.
O remessa conforme trocou quem é o responsável por esse pagamento, tirando a responsabilidade da Receita Federal e jogando para as varejistas, e aí a coisa fica mais fácil, porque você já tributa na fonte. As lojas já embutem isso do preço, e aí foi que surgiu o remessa conforme para compras abaixo de 50 dólares, cobrado só o ICMS, que é de 17%, mas que, na verdade, é de 20,5%, porque ele é calculado por dentro.
Hoje, todas as compras que a gente faz no remessa conforme, abaixo de 50 dólares, estão sujeitas a uma tributação de 20,5%, que já está dentro do preço do produto. Isso pro governo foi mais eficiente, colocou ali uma tributação que era bem menor do que era (começava em 60%, e podia atingir mais de 100%), só que não mais de modo aleatório.
Vendo que o sistema está funcionando, colocar mais 60% de imposto é muito fácil. Então veio essa nova proposta de acabar com a isenção do imposto de importação, e aí, sim, a gente teria 60% a mais do imposto de importação. Só que ele entra na base de cálculo do ICMS, o que dá esse aumento de 92,8% que tá todo mundo falando. Resumindo, seria 92,8% de tributação contra 20,5% que a gente tem hoje e uma tributação aleatória que a gente tinha antes de agosto de 2023.
IM: Com essa nova taxação, o governo parece resolver dois problemas: aumenta a arrecadação e agrada grandes varejistas brasileiros, interessados em protecionismo. E o consumidor, nunca é considerado na equação? Na sua opinião, por que protecionismo é ruim?
MCG: A gente sabe da situação dos varejistas aqui no Brasil, que é uma situação difícil, isso é inegável. Mas a gente também sabe que essa situação decorre do ambiente de negócios ruim no país. Não tem que pegar o que é ruim hoje para eles e espalhar, para que fique ruim para todo mundo que quiser entrar.
A gente sabe da questão da concorrência da China, sabe que pode ser difícil competir, porque eles não têm tanta observância de normas da organização do trabalho. Isso, ninguém está negando. A questão é que eu não posso piorar um ambiente, porque o meu é ruim.
A questão é dar condições para os varejistas daqui do Brasil poderem competir, poderem continuar gerando empregos, mas de uma maneira sustentável.
Eu costumo brincar o seguinte: se a gente tiver um aquário, por maior que ele seja, se tiver uma água que não presta ali, não tem peixe. Então, não adianta você aumentar a quantidade de consumidor, ou pensar que está aumentando, porque não necessariamente se elas não comprarem do mercado asiático, elas vão comprar no Brasil. Nem sempre as pessoas têm condições de adquirir esses produtos aqui.
Não é porque eu estou aumentando a possibilidade de mercado, que de fato estou revertendo tudo isso para as empresas daqui. Isso tem que ser feito com muito mais cuidado, muito mais estudo. A gente sabe que o protecionismo puro e simples, como essa alíquota de 92,8%, é completamente surreal, para qualquer mercado, quando a gente está falando de pessoa física.
No resto do mundo não existe esse tipo de alíquota praticada para a importação de pessoa física. Todos os pais sempre têm um limite, uma tributação razoável, o que poderia ser, por exemplo, os 20,5%. Uma tributação que seja possível de conviver.
Não dá para você colocar 92.8% de tributação, e achar que isso é normal, achar que é tranquilo e que as pessoas vão passar a comprar aqui dentro do Brasil. Não é assim que as coisas funcionam.
IM: Mudando um pouco de assunto, mas ainda no tema de aumento de arrecadação, a ministra do Planejamento, Simone Tebet já anunciou que está preparando medidas para aumentar a arrecadação de MEIs e Simples. Ao mesmo tempo em que o governo alega que esses regimes são deficitários, os tetos estabelecidos para o faturamento desses regimes estão defasados desde 2021, no caso de MEI, 2016, para empresas de pequeno porte e 2006, no caso de microempresas, apesar das alíquotas continuarem sendo reajustadas. Como sanar esse impasse?
MCG: A ideia é muito complexa, quando a gente fala de Simples e MEI, porque a gente sempre teve opção de fazer um sistema tributário mais racional e mais lógico, mas sempre miramos no que era mais fácil. Então, por exemplo, se o nosso sistema tributário estava penalizando as pequenas empresas, que não estavam conseguindo prosperar, a gente criou o Simples Nacional, que a curto prazo, talvez ali, focado, seria um bom projeto. Só que aquilo se estende por um período que a gente não consegue mais sustentar. Ou aquilo não é mais suficiente, ou o governo não tem dinheiro suficiente para bancar indefinidamente. É a famosa solução provisória, que acaba se tornando permanente e insustentável.
É como se tivesse uma goteira em casa, você vai pondo baldes embaixo, e depois, você fala: 'Nossa, mas agora eu não consigo mais viver nessa casa, porque eu não consigo andar, de tanto balde que tem.' Justamente porque a gente não teve esse esforço de resolver os problemas estruturais.
Quando a gente fala que se acabar o Simples Nacional, vamos arrecadar x, não é verdade, porque muitas empresas não sobreviveriam em outro regime. A mesma coisa o MEI. Se a gente acabar com essa possibilidade, eles não sobrevivem. Então, precisamos ser racionais nessa discussão. Não é simplesmente não reajustar ou manter aquilo ali a qualquer custo. A gente sabe que isso é essencial para alguns negócios, que as pequenas empresas têm um papel fundamental na economia.
O Simples é aquela coisa, o monstro que a gente vai gerando ali, você criou e não sabe mais o que fazer com ele. O governo não sabe mais o que faz com ele, e ao mesmo tempo não sabe viver sem ele. A gente tem um sistema hoje, que é tão terrível, que se a pessoa se jogar do Simples direto em outro sistema, ela simplesmente não vai sobreviver. A gente sabe disso. Então, esse é talvez o preço que a gente paga por esse tipo de negligência que a gente teve ali no passado, nos últimos 20 anos. Esse é o preço que a gente está pagando agora.
E o mais importante é isso, a gente mirar numa ideia de eficiência, numa questão de melhorar o ambiente de negócios, e não ficar criando algum subterfúgio para resolver temporariamente, porque a gente sabe que depois acaba estourando lá na frente.
IM: Nesta semana, também tivemos a aprovação da volta do DPVAT pelo Senado, que seguiu a mesma premissa. Até o momento, o governo não sinalizou nenhuma intenção de cortar gastos públicos, todas as tentativas de equilíbrio fiscal têm passado, necessariamente, por aumento de arrecadação. Na sua opinião, mesmo tendo esse projeto vencido nas urnas, o modelo terá seu momento de saturação? Até onde a sociedade brasileira estaria disposta a pagar mais impostos?
MCG: Chega num ponto que a gente não consegue mais tirar coelho da cartola. Isso é uma das coisas que aconteceu. Já criamos tanta aleatoriedade com PIS/Cofins, que no final das contas, você está no limite do que consegue criar. As pessoas me perguntam: 'E agora? Vai criar o quê?'
Não tem de onde tirar. O Brasil é aquele paciente que já tomou todos os antibióticos, até quando não precisava. Mas é porque tinha um pessoal com um pouco de... vamos dizer assim... de preguiça de fazer um trabalho mais duro. E agora, não temos outra opção que não seja enfrentar o problema.
Já fizemos tanto, por exemplo, aumentamos o IOF crédito, aumentamos o IOF câmbio. Agora não temos mais margem para aumentar o IOF crédito e não temos mais margem para aumentar o IOF câmbio. 'Ah, vamos colocar um aumento no IOF do cartão de crédito, ou vamos criar algo...' Eram coisas assim, tiradas do nada, que iam aumentando, e as pessoas iam aceitando até um momento, como agora, em que você não pode simplesmente chegar com uma proposta parecida com a do PIS e Cofins, sem trazer uma comoção social toda em torno disso.
Não temos mais carta na manga, não temos bala de prata. O brasileiro já sabe que paga muito e já não está mais disposto.
Então, vemos, por exemplo, em casos como a recriação do DPVAT, toda a repercussão que teve. Também essa questão dos importados, toda a repercussão. O brasileiro não está mais aceitando qualquer coisa calado. As coisas têm mudado.
Já estamos no limite, por exemplo, do imposto de renda, cujas faixas – sem ser a de isenção – não são atualizadas desde 2015. Tem essa questão do Simples.
Tudo o que podia ser feito em termos de aumento de tributos já está no limite. Então, é muito difícil pensar em criação de novas receitas agora, a partir do aumento de tributação, sem isso ter um elevado preço político. Se não tivermos uma política de gastos conscientes, a coisa simplesmente não se sustenta.