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O mercado como aliado do clima: da teoria liberal ao queijo premiado de Lunteren

A abertura dos mercados internacionais para créditos de carbono, de biodiversidade e outros serviços ambientais brasileiros é essencial

 (Aurea Carvalho)

(Aurea Carvalho)

Publicado em 15 de agosto de 2025 às 22h02.

Acabei de retornar de um seminário promovido pela Fundação Friedrich Naumann, na Alemanha, com apoio do Instituto Millenium, e até o fim do ano meus artigos serão frutos das múltiplas reflexões que vieram dessa imersão. Foram duas semanas intensas, discutindo com especialistas, economistas e formuladores de políticas públicas sobre temas relacionados às mudanças climáticas e proteção ambiental, tendo como pano de fundo o Liberalismo Verde. 

Mas o que seria isso? Liberalismo verde é trazer para o campo ambiental a mesma lógica que sustenta economias abertas e sociedades prósperas: alinhar incentivos, usar preços como sinais de escassez e valor, garantir que propriedade e responsabilidade caminhem juntas e criar regras simples e estáveis que permitam a inovação florescer. É uma forma de olhar para políticas públicas com perguntas diretas, mas exigentes: o incentivo está no sentido certo? O custo e o benefício são claros para todos? Há clareza sobre quem usa ou preserva o recurso e sobre como será responsabilizado? Existem mecanismos que punam a ineficiência e recompensem a inovação?

Não há novidade, tanto que às vezes penso soar repetitiva por trazer dois conceitos insistentemente: externalidades negativas e tragédia dos comuns. O primeiro descreve situações em que uma atividade impõe custos a terceiros sem que esses custos estejam refletidos no preço, como acontece quando o despejo de resíduos polui um rio usado por comunidades a jusante, sem que o responsável arque com a reparação. O segundo trata da sobreutilização de recursos de acesso livre, que inevitavelmente leva à sua degradação. E é diante dessa lógica que surgem as soluções conhecidas: intervenção governamental, privatização ou regras locais criadas e aplicadas pelos próprios usuários. Na prática, a resposta mais eficaz costuma ser a combinação desses instrumentos, no que Elinor Ostrom chamou de “governança policêntrica”.

Mas quero trazer um exemplo concreto que nos foi apresentado, que traduz de forma quase palpável a lógica do liberalismo verde: a história do queijo Remeker, produzido em Lunteren, uma pequena cidade nos Países Baixos. Em oito anos, a fazenda familiar De Groote Voort fez uma transição completa para a agricultura regenerativa, produzindo um queijo de leite cru, maturado em madeira, reconhecido entre os melhores do mundo e premiado em concursos internacionais, como por exemplo campeão da categoria World’s Best Jersey Cheese, no World Cheese Awards, duas vezes.

Na fazenda, quem conduz as inovações e o dia a dia é o dono Jan van de Voort, que em nossa visita apresentou, passo a passo, o sistema que construiu ao longo de oito anos de transição para a agricultura regenerativa. Começa pelas vacas Jersey, que mantêm seus chifres, uma prática rara na pecuária europeia. Jan relatou que estudos realizados na própria fazenda mostraram que eles têm duas funções cruciais: ajudam na regulação térmica e servem como reserva de cálcio para o período de lactação. Sem essa reserva, o cálcio é retirado dos cascos e ossos, gerando estresse fisiológico e, consequentemente, inflamações.

A dieta também foge ao padrão industrial: o núcleo é pasto de alta qualidade, feno e silagem próprios, com grãos orgânicos moídos na hora como suplemento. É uma alimentação que respeita a fisiologia natural dos ruminantes, evitando picos rápidos de energia e problemas digestivos. Na minha percepção, é quase o equivalente bovino a uma dieta cetogênica humana, o “petisco” das vacas é um pouco de aveia de tempos em tempos. Essa mudança, combinada ao manejo regenerativo do solo, reduziu drasticamente a incidência de doenças no rebanho. A fazenda opera sem antibióticos desde 2004.

O manejo do esterco é outro capítulo. Ele atrai besouros, que atraem pássaros específicos; ao buscar os besouros, eles espalham o esterco, devolvendo nutrientes ao solo e acelerando sua decomposição. Tudo se encaixa em ciclos naturais interdependentes, dispensando insumos externos e mantendo a fertilidade.

Só depois de entender todo esse cuidado faz sentido ouvir a frase que Peter repetiu mais de uma vez: independentemente de como ele produz, as pessoas compram e pagam o valor adicional porque o sabor é excepcional. É esse sabor que sustenta o modelo, permitindo que um sistema menos produtivista seja rentável. No caso do queijo, a diferenciação é natural: um produto de qualidade superior conquista seu espaço e encontra consumidores dispostos a pagar por ele.

E aqui, pela primeira vez, vamos usar o lado bom da externalidade, a positiva: ao respeitar a microbiologia do solo e estimular a rede de fungos micorrízicos, Jan afirma que consegue formar uma coluna de matéria orgânica de até quatro metros, contra cerca de 30 centímetros das práticas convencionais. Isso significa capturar muito mais carbono no solo, um serviço ambiental de alto valor na agenda climática.

Se esse valor é reconhecido? No caso do queijo, sim: o sabor premium garante a receita extra que sustenta o modelo. E não se limita a nichos gourmet: ele apresentou também trigo cultivado de forma regenerativa, com teor proteico mais alto, despertando interesse de mercado. O diferencial existe, mas exige demanda disposta a pagar pela qualidade.

E o Brasil, nessa história? Como boa mineira, provei o queijo e reconheci sabores próximos, como o do queijo Alagoa. Muitas das práticas me soaram familiares, presentes em pequenos produtores daqui. Isso acendeu uma ponta de esperança. Sempre ouvi que nossas vacas produzem menos que as suíças ou holandesas, mas talvez, por termos ficado de fora da corrida pela produtividade máxima das últimas décadas, estejamos mais próximos do “bonde” da agricultura regenerativa, aquele que melhora solo, captura carbono e entrega sabor.

O desafio é transformar essa vantagem potencial em renda. Isso não acontecerá sem incentivos financeiros claros. A abertura dos mercados internacionais para créditos de carbono, de biodiversidade e outros serviços ambientais brasileiros é essencial para que nossos produtores sejam remunerados por benefícios que vão muito além da porteira.