Ecoparque da Orizon, em Paulínia: Pioneiro na geração de biometano, substituto do gás natural (Leandro Fonseca/Exame)
Colunista - Instituto Millenium
Publicado em 9 de julho de 2025 às 11h14.
Última atualização em 9 de julho de 2025 às 11h14.
Dados a diversidade dos assuntos tratados na Reforma Tributária do Consumo – RTC (EC132/23, LC214/24 e PLP108/24), os infindáveis detalhes dos textos legais e o exíguo tempo para os parlamentares apreciá-los, é possível observar equívocos e pontos nebulosos, que podem – e devem – ser corrigidos ou esclarecidos.
Emendar ao PLP108 as modificações necessárias à LC214 mostra-se como uma apropriada opção. O fato é que, como o Brasil precisa aumentar a sua produtividade e esta Reforma representa uma oportunidade neste sentido, urge aprimoramentos à LC214. Quais seriam, então, os ajustes necessários no caso do gás natural?
Para contextualizar, vale lembrar que a LC192 e a LC194, aprovadas em 2022, alteraram, respectivamente, a forma de cobrança do ICMS para 5 tipos de combustíveis (gasolina, etanol anidro, diesel, biodiesel e GLP) e o nível da carga tributária, reduzindo-a.
Atendendo a uma demanda do setor, diante da elevada sonegação e da complexidade tributária de operar em 27 estados, a LC192 determinou que a cobrança do ICMS passasse a ser feita de maneira monofásica, com alíquota ad rem (i.e., fixa por unidade) e única por produto em todo território nacional, substituindo a sistemática plurifásica anterior, com alíquotas ad valorem e diferenciadas por estado.
Passados 3 anos, constata-se que a experiência foi exitosa, tanto para o setor privado quanto para os fiscos estaduais. A simplificação e a desburocratização tornaram-se realidade. Ressalva-se que, para encontrar a alíquota ad rem única Brasil para os combustíveis líquidos, utilizou-se, em linhas gerais, a média ponderada dos preços na bomba (PMPF) pela quantidade vendida por estado.
Assim, pela nova regra e de maneira previsível, alguns estados perderam arrecadação, enquanto outros ganharam, de tal forma que a carga tributária no país permaneceria igual, não fosse a aprovação, na sequência, da LC194, que impôs uma redução drástica na carga tributária para todos os estados, ao classificar tais combustíveis como bens essenciais. O que isso significou na prática?
À época, as alíquotas da gasolina, por exemplo, eram extremamente elevadas (variando entre 27% e 34%, a depender da unidade federativa) e precisaram ser reduzidas para a chamada “alíquota modal”, já que se tratava de bens essenciais, os quais não podiam ser tributados com alíquotas superiores às das demais operações em geral (conforme os arts. 18-A e 32-A do Código Tributário Nacional).
Na época, ditas alíquotas se encontravam entre 17% e 18%. Como solução negociada com o STF, o governo federal compensou a perda de arrecadação dos estados até dez/22. Como a partir de jan/23 haveria perda estrutural e permanente de receita, porém, muitos estados aumentaram ditas “modais” no tempo. Ainda assim, o saldo continua negativo para os fiscos.
Pois bem, qual a relação destas LCs com a RTC? Total! O inciso I do § 6º do art. 156-A da EC132 estabelece que os combustíveis e lubrificantes fiquem sob um regime diferente do IVA “normal” (débito/crédito, não cumulativo etc.).
De acordo com o Título V (regimes específicos), Cap. I (combustíveis), art.172 da LC214, os combustíveis foram definidos como sendo os 5 combustíveis da LC192 acrescidos de mais 6 outros tipos: etanol hidratado, querosene de aviação, óleocombustível, gás natural processado, biometano, gás natural veicular (GNV), além de outros definidos pela ANP. É neste contexto que valem alguns esclarecimentos à LC214.
O primeiro esclarecimento é que GNV nada mais é do que o gás natural processado (GN). Sua menção específica no inciso XI do art.172 é redundante e, portanto, pode ser suprimida. A inclusão possivelmente decorre de um desconhecimento quanto às múltiplas finalidades do GN.
Diferentemente de combustíveis líquidos, como gasolina ou etanol, o GN possui uma ampla gama de aplicações. Usa-se GN como insumo para indústria, comércio, termelétrica e cogeração de energia elétrica. Também é empregado em residências (gás canalizado) e como combustível veicular (GNV), usado em veículos leves (carros de passeio) e pesados (ônibus e caminhões).
O segundo esclarecimento é que transporte e distribuição são elos distintos na cadeia do GN, conquanto cumpram funções semelhantes: movimentar o GN por duto. No transporte (regulado pela ANP), a movimentação finaliza nas distribuidoras; na distribuição (regulado pelas agências locais), a movimentação termina nos consumidores finais.
Pode-se fazer um paralelo com a transmissão e a distribuição de energia elétrica. Esta distinção que ocorre no GN não ocorre com a gasolina. Talvez aí resida outra confusão. A alínea b do inciso I do § 6º, do art. 156-A da EC132 e o art. 180 da LC214 (que trata das hipóteses de vedação ao direito de crédito) sugerem que o legislador, ao escrever a norma, teve como referência a cadeia logística do combustível líquido e não a do GN, que é mais complexa. Logo, no art. 180 há que incluir os demais elos da cadeia: escoamento e armazenamento, além da regaseificação. No caso do transporte, a “distribuição” poderia ser definida como sendo “os elos da transportadora e das distribuidoras estaduais”.
O terceiro esclarecimento é que o GN pode ser transportado de três formas: no seu estado gasoso (GN), comprimido (GNC) e líquido (GNL). Assim, todos são GN! No primeiro caso, o transporte é feito por gasodutos de transporte (TBG, TAG, NTS etc.) e de distribuição (concessionárias estaduais).
O GNC é produzido pela compressão do GN, sendo transportado por caminhões até o destino, onde é descomprimido para o uso. Já o GNL resulta da liquefação do GN, permitindo seu transporte por caminhão, trem ou navio; especialmente em trajetos de longa distância, com posterior regaseificação.
Logo, para assegurar segurança jurídica e isonomia concorrencial, a LC214 deve mencionar essas três formas de transporte, atribuindo-lhes o mesmo tratamento tributário. Além disso, sugere-se explicar que o é o gás natural processado no art. 172.
Por isso, para garantir a devida simplificação do IVA no caso dos combustíveis, o legislador poderia adotar a monofasia apenas na UPGN e no importador (isto é, nos agentes econômicos do começo da cadeia produtiva do gás natural PROCESSADO), e assegurar o crédito aos que usam o GN como insumo no seu processo produtivo: indústria, comércio, cogeração, termelétrica etc. Logo, sugere-se excluir o produtor de gás natural do art.176 como agente passivo.
O quarto e último esclarecimento diz respeito à importação. O GN pode ser importado de três formatos: gasoso, líquido ou comprimido; embora hoje as importações ocorram majoritariamente pelos dois primeiros. Quando importado por gasoduto, o GN ingressa no país, na sua maioria, pelo duto da transportadora TBG, que, depois, tem a pressão reduzida para entrar nos dutos das distribuidoras estaduais.
Já no caso do GNL, importado por caminhões ou navios, começam a surgir diferentes modelos de operação. Como o GNL pode ser regaseificado no Brasil (mais comum) ou não, o ideal, assim, é cobrar do importador de GN, independentemente do seu formato, seja gasoso ou líquido ou comprimido. Logo, é fundamental que o art.176 explicite que o tratamento tributário do GN será isonômico não variando conforme o formato de importação.
Vale dizer que o maior desafio para o Comitê Gestor e para a Receita Federal será a definição da alíquota ad-rem única Brasil do GN, dados seus diferentes usos. Seu cálculo é factível, mas seria importante envolver o MME e, em particular, a EPE, para auxiliá-los na metodologia. Há que considerar, dentre outros aspectos, a média ponderada pelos diferentes usos, mantendo a carga tributária, conforme indica o art. 174 da LC214.
Além disso, de forma análoga ao que ocorreu na LC 192, a alteração de modelo deveria ocorrer em um único momento no tempo, sem transição. Já que um dos princípios da RTC é a simplificação, haverá uma desnecessária complexidade em manter por 6 anos dois modelos tão diversos (monofasia do IVA e plurifasia do ICMS).
Feitos os 4 esclarecimentos e os 2 alertas acima, passa-se para o Imposto Seletivo (Livro II da LC214). Para além de ser uma aberração majorar ainda mais a carga tributária do GN (lembrando que o IVA terá a mesma elevada carga atual) e de não haver qualquer argumento teórico para enquadrar o GN no art.153 da LC214; o art. 423 da LC214 é inexequível.
Nos termos do inciso VIII do art.153 da EC132, o Imposto Seletivo (IS) deve recair sobre bens prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, em consonância com um dos cinco valores da CF88 (proteção ao meio ambiente, art.225). Como o GN faz parte da transição energética e tem deslocado combustíveis mais poluentes (carvão e diesel) da matriz energética, o GN causa externalidade positiva ao meio ambiente.
Logo, o GN não se enquadra na tipificação do IS. É por isso que o MME tem promovido o GN, para que haja aumento no seu consumo e não diminuição! Logo, impor IS é, além de rasgar qualquer livro de microeconomia, afrontar com a política nacional e internacional de descarbonização. Além disso, como impôs a LC194, GN é um bem essencial, não podendo ter alíquota maior do que às das demais operações!
Ainda que o GN fizesse mal ao meio ambiente na conjuntura atual (o que não é verdade), o art. 423, que aplicará alíquota zero do IS para certas finalidades do GN (indústria e empresa de frota pesada), é inexecutável na prática. Para além de estarem faltando outros agentes nesta lista, como termoelétricas, comércio e cogeração, o mais grave é o fato de que o produtor/UPGN ou o importador não conseguem distinguir no início qual será o destino final do GN (para pagar alíquota zero), o que coloca em risco o crescimento deste mercado.
A solução, assim, é retirar as NCMs relativas ao GN do Anexo XVII da LC214 (2711.11.00 e 2711.21.00). Em não sendo possível, a sugestão é a Receita Federal impor por decreto alíquota zero para o GN ao menos nos 10 primeiros anos e, depois do IVA devidamente implementado, decidir o que fazer.
Por fim, tem-se o Reide, um Regime de Incentivo, contemplado no art.106 da LC214 como regime favorecido. Como o IPI e o PIS/COFINS findam em 2027, como o incentivo será absorvido na sua totalidade pelo CBS, se tal artigo menciona no IBS (que só existirá completamente em 2033) e o ICMS não faz parte desta isenção? E na fase de transição do IBS/ICMS, 2029-2032, o que fazer?
Em suma, é muito provável que o IVA sobre o GN se revele exitoso. A experiência da LC192 comprova a eficácia do modelo, mostrando significativa simplificação. É importante, pois, que o Comitê Gestor e a Receita Federal considerem os pontos aqui abordados para emendar ao PLP108/24 ditas melhorias. Além disso, é recomendável não haver transição, regulamentar o Reide, trazer à mesa o MME e a EPE para o cálculo do ad rem e retirar o IS do GN ou, ao menos, impor, por decreto, alíquota zero nos próximos anos. Oxalá tudo dê certo e o mercado de “gás natural bombe”! A transição energética agradece e o Brasil, mais ainda!