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Câncer em pessoas jovens: uma epidemia

Com o caso de Kate Middleton, o tema “câncer em pessoas jovens” vem chamando a atenção

Com o caso de Kate Middleton, o tema “câncer em pessoas jovens” vem chamando a atenção (Twitter/Reprodução)
Com o caso de Kate Middleton, o tema “câncer em pessoas jovens” vem chamando a atenção (Twitter/Reprodução)

Há poucos dias, a princesa da família real britânica Kate Middleton anunciou ao mundo estar com câncer e a necessidade de uma quimioterapia “preventiva”. Entrar no mérito sobre o diagnóstico específico que envolve o tipo de tumor e estadiamento seria apenas especulação uma vez que nada de mais detalhado foi revelado. Compreendo a tradicional discrição dessa família real, mas entendo que causas de impacto para a humanidade poderiam ser tratadas de modo mais aberto e o contexto gerou uma oportunidade de educar a população e angariar esforços para pesquisas científicas na área. Por outro lado, o tema “câncer em pessoas jovens” vem chamando a atenção. O presente caso serve de exemplo para abordarmos o assunto e fazermos algumas considerações mais subjetivas.  

Câncer em idade precoce, por definição, é diagnosticado antes dos 50 anos de idade no adulto. Uma opinião inteligente, mas sem análise dos dados, traz os programas de triagens como causadores do fenômeno. Ou seja, se diagnostica mais cedo porque estamos pesquisando mais cedo e nas pessoas sem sintomas. Mas isso já foi descartado. Há sim um aumento genuíno. O câncer é uma doença multifatorial. Estudos com gêmeos e irmãos não gemelares apontam para um risco herdado de câncer entre 30 e 40%, sendo que alguns tipos como o de próstata chegam a 60%. Mas até hoje conseguimos encontrar esses fatores genéticos hereditários em apenas 10 a 15% dos casos.  

Felizmente os estudos com técnicas mais modernas (escores poligênicos) já despontam num horizonte próximo. E mesmo que exista uma predisposição individual, são necessários vários outros fatores ambientais para o desenvolvimento da doença. Desde meados do século XX, testemunhamos mudanças marcantes em nossa dieta, estilo de vida, ambiente e até mesmo em nossa microbiota. Por exemplo, a transição de uma dieta tradicional para uma dieta rica em alimentos processados e com alto teor de gordura pode ter impactos profundos na saúde. Ademais, a exposição a poluentes ambientais, como substâncias químicas em produtos de consumo diário, pode desencadear alterações genéticas que aumentam o risco de câncer. 

Com as campanhas anti-vacina catapultadas na época da pandemia, reconhecidas personalidades desse vil movimento tentam atribuir relação causal da vacina mRNA para o fenômeno. Uma simples pesquisa em estudos já publicados pode mostrar a total ausência de correlação epidemiológica que poderíamos supor a priori pela total falta de mecanismo biológico para tal. Entretanto não podemos contar com a coerência e idoneidade intelectual de integrantes do movimento anti-vacina. Além do mais, o aumento da incidência de câncer e em especial em jovens já está identificado e em debate desde há décadas e se intensificou no pré-pandemia. Existe uma interessante página do Instituto Nacional de Saúde norte-americano que se chama “perguntas provocativas”. O intuito é aguçar a curiosidade de pesquisadores e enviarem propostas de estudos científicos para responderem essas questões. Lá, no início de 2020, a primeira pergunta da série era: “What are the underlying causes of the unexplained rising incidence in certain early-onset cancers? 

Não é preciso dizer o quão podem ser profundas as mudanças sociais com o aumento de câncer na população mais jovem. Desde impactos econômicos, sociais à saúde reprodutiva. E por isso é extremamente importante abordarmos o assunto porque enfrentamos, literalmente, uma epidemia de câncer. Voltando a duquesa de Cambridge que foi acometida pela doença aos 42 anos de idade, a postura dela em relação à doença traz a mim sentimentos mistos. Como médico, adepto aos preceitos éticos que norteiam nossa profissão e ao pensamento liberal, tenho imenso respeito pela postura da princesa em se resguardar e não falar sobre o assunto. Em pedir privacidade. Por outro lado, quando personalidades importantes assumem causas nobres, como o combate ao câncer, vivenciamos verdadeiros e significativos avanços na área. Cito 2 exemplos que marcaram a mim e a causa oncológica: 

No início da década de 2010, a atriz Angelina Jolie revelou ao mundo que era portadora de uma variante genética (mutação) que lhe conferia alta probabilidade de câncer. Realizou mastectomia redutora de risco (retirada de ambas as mamas) e salpingooforectomia (cirurgia para retirada de ovário e tubas uterinas). Desde então, desde que ela anunciou seu problema ao mundo, houve um efeito em acelerar as pesquisas em oncogenética, discutiu-se a questão de propriedade intelectual sobre as descobertas científicas na área e a população se interessou pelo tema. 

O segundo exemplo, apesar de não ter alcance global, foi uma das mais belas e comoventes campanhas contra o câncer que o país teve. O casal Tiago Leifert e Daiana Garbin transformou a dor e angústia pelo raro caso de retinoblastoma em sua filha Lua em informação e ação na campanha De Olho nos Olhinhos, militando ativamente no diagnóstico precoce e tratamento para essa doença. Duas pessoas mobilizando um país por uma nobre causa. 

O Brasil tem graves problemas em saúde pública que já apontamos em outros textos. O sistema público sofre dificuldade em oferecer acesso e está cada vez mais defasado. Quase inexistem pesquisas nacionais na área. O crescente número de casos de câncer vai sobrecarregar ainda mais nosso combalido sistema de saúde. Mesmo que pelo despropósito dos divulgadores anti-vacina ou pela postura quase envergonhada da Kate Middleton em anunciar seu câncer, finalmente o assunto saiu das discussões acadêmicas e ganhou a mídia. O combate ao câncer precisa se tornar uma pauta prioritária para o país.