O comércio internacional é uma forma de tecnologia
"Nenhum país pode dar-se ao luxo de tratar empregos como uma riqueza a ser contada, armazenada e protegidas da obsolescência", acredita João Luiz Mauad
institutomillenium
Publicado em 23 de janeiro de 2019 às 13h49.
PorJoão Luiz Mauad*
Em seu (pra lá de econômico) discurso de ontem, em Davos, uma das poucas mensagens efetivas do presidente Bolsonaro foi a firme intenção de promover uma verdadeira abertura do Brasil ao comércio internacional, adiada nestas plagas desde que D. João VI falou em abrir os portos às nações amigas, no início do século XVIII.
Desde aquela época, com raríssimas exceções, Pindorama vem mantendo políticas protecionistas, governo após governo, sempre amparadas no surrado discurso de proteção às empresas e empregos locais, discurso este que contraria tudo que os economistas já sabem sobre os benefícios do comércio internacional. Esperemos que Bolsonaro não caia, como Trump, na esparrela desse discurso tacanho e acabe voltando atrás.
O trecho abaixo foi retirado do capítulo “Iowa Crop Car” (A safra automotiva de Iowa), do livro de Steven E. Landsburg, "The Armchair Economist" – que por sua vez é baseado numa aula do economista David Friedman. A história da “safra automotiva de Iowa” tem o mérito de conseguir explicar, através de uma metáfora simples, quase tudo que precisamos saber sobre a teoria do comércio internacional.
Existem duas tecnologias para produzir automóveis na América. Uma é fabricá-los em Detroit e a outra é cultivá-los em Iowa. Todo mundo sabe sobre a primeira tecnologia; Deixe-me falar sobre a segunda. Primeiro você planta as sementes, que são a matéria-prima a partir da qual os automóveis serão feitos. Você espera alguns meses até o trigo crescer. Então você colhe o trigo, carrega-o em navios e navega para o oeste, no Oceano Pacífico. Depois de alguns meses, os navios reaparecem cheios de Toyotas.
O comércio internacional não é senão uma forma de tecnologia. O fato de existir um lugar chamado Japão, com pessoas e fábricas, é bastante irrelevante para o bem-estar dos americanos. Para analisar as políticas comerciais, podemos também supor que o Japão é uma máquina gigante, com misteriosos mecanismos internos que convertem o trigo em carros. Qualquer política destinada a favorecer a primeira tecnologia em detrimento da segunda é uma política concebida para favorecer os produtores de automóveis americanos em Detroit, em detrimento dos produtores de automóveis americanos em Iowa. Um imposto ou uma proibição de automóveis "importados" é um imposto ou uma proibição sobre automóveis cultivados em Iowa. Se você protege os fabricantes de automóveis de Detroit da concorrência, então você vai prejudicar os agricultores de Iowa, porque os agricultores de Iowa são a concorrência.
[Isto é algo que está nitidamente ocorrendo hoje, depois das tarifas de Trump sobre o aço e os automóveis, que fizeram despencar as exportações agrícolas americanas, a ponto de o governo estar subsidiando os agricultores para compensar suas perdas]
A tarefa de produzir carros pode ser alocada entre Detroit e Iowa de várias maneiras. Um sistema de preços competitivo seleciona a alocação que minimiza o custo total de produção. Seria desnecessariamente caro fabricar todos os carros em Detroit, desnecessariamente caro cultivar todos os carros em Iowa, e desnecessariamente caro usar os dois processos de produção em algo diferente da razão natural que surge como resultado da competição.
Isso significa que a proteção para Detroit faz mais do que apenas transferir renda de agricultores para trabalhadores automotivos. Também aumenta o custo total de fornecer aos americanos um determinado número de automóveis. A perda de eficiência vem sem ganho compensatório e empobrece a nação como um todo.
Fala-se muito sobre como melhorar a eficiência da fabricação de carros americanos. Quando você tem duas maneiras de fazer um carro, o caminho para a eficiência é usar as duas em proporções ideais. A última coisa que você deve fazer é artificialmente desprezar uma de suas tecnologias de produção. É pura superstição pensar que um Toyota cultivado em Iowa é menos “americano” do que um Taurus construído em Detroit. Políticas baseadas na superstição não costumam produzir frutos eficientes.
Leia mais de João Luiz Mauad
A desonestidade intelectual de Paul Krugman
A última lição de Hayek
Por que a ideia de um projeto para o país é ruim e perigosa?
Como mostrado acima, o comércio internacional é uma forma de tecnologia, que certamente destrói alguns empregos temporariamente para fornecer mais bem estar para a maioria e para as futuras gerações. Ao contrário, entretanto, das novas tecnologias concebidas no Vale do Silício, por exemplo, que contam com a aprovação unânime das pessoas - ou pelo menos de quem não é idiota -, o comércio exterior, inexplicavelmente, é visto com ressalvas pela maioria.
Pense em quantos empregos o avanço da automação e da robótica cancela todos os anos. Muitos, certamente. Nem por isso, entretanto, salvo raríssimas exceções, as pessoas saem por aí pedindo a paralisação do progresso ou uma maior taxação para os produtos de alta tecnologia.
Eu diria inclusive, sem medo de errar, que o número de empregos perdidos para a evolução tecnológica, nos últimos 100 anos, supera em muito o desemprego gerado pela globalização e pela maior liberdade de comércio entre nações.
Se o foco fosse criar e manter empregos, tudo que os governos precisariam fazer seria obstruir o progresso tecnológico, ou seja, todo e qualquer processo poupador de trabalho. No entanto, além dos ludditas, como o ex-deputado Aldo Rebelo, há muito pouca gente disposta a levar adiante tal política. Por outro lado, o mesmo não ocorre quando o assunto é a tecnologia do comércio exterior.
+ Fabio Giambiagi: "A abertura comercial"
Como escrevi em outro artigo, há apenas cento e poucos anos, praticamente 70% da mão de obra estava alocada no campo. Com o avanço da tecnologia (tratores, fertilizantes, colheitadeiras, sementes geneticamente modificada, etc.), esse número é atualmente de apenas 2% nos países desenvolvidos. Agora imagine como estaríamos hoje se a maioria das pessoas continuasse trabalhando apenas para produzir alimentos.
O progresso econômico e a destruição de empregos andam de mãos dadas. Empregos não são destruídos somente quando uma nova máquina ou programa de computador são desenvolvidos, mas também quando o trabalho fica obsoleto por conta de processos de produção e trocas mais eficientes e/ou baratos. A verdade é que nenhum país pode dar-se ao luxo de tratar empregos como uma riqueza a ser contada, armazenada e protegidas da obsolescência.
O incentivo à competitividade e à produtividade exige coragem e disposição para substituir o que é antigo pelo que é novo. Nesse processo, a destruição de empregos é inevitável. Eis aí o paradoxo do progresso. Uma sociedade não pode colher os benefícios da destruição criadora sem aceitar que alguns indivíduos possam ficar piores, não apenas no curto prazo, mas talvez para sempre. Ao mesmo tempo, as tentativas de suavizar os aspectos mais severos da destruição criadora, preservando empregos ou protegendo indústrias, levarão à estagnação e ao declínio, promovendo um curto-circuito na marcha do progresso, que não avança sem varrer a ordem preexistente.
*Administrador de empresas formado pela Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (EBAP/FGV-RJ). É articulista dos jornais “O Globo” e “Diário do Comércio”.
PorJoão Luiz Mauad*
Em seu (pra lá de econômico) discurso de ontem, em Davos, uma das poucas mensagens efetivas do presidente Bolsonaro foi a firme intenção de promover uma verdadeira abertura do Brasil ao comércio internacional, adiada nestas plagas desde que D. João VI falou em abrir os portos às nações amigas, no início do século XVIII.
Desde aquela época, com raríssimas exceções, Pindorama vem mantendo políticas protecionistas, governo após governo, sempre amparadas no surrado discurso de proteção às empresas e empregos locais, discurso este que contraria tudo que os economistas já sabem sobre os benefícios do comércio internacional. Esperemos que Bolsonaro não caia, como Trump, na esparrela desse discurso tacanho e acabe voltando atrás.
O trecho abaixo foi retirado do capítulo “Iowa Crop Car” (A safra automotiva de Iowa), do livro de Steven E. Landsburg, "The Armchair Economist" – que por sua vez é baseado numa aula do economista David Friedman. A história da “safra automotiva de Iowa” tem o mérito de conseguir explicar, através de uma metáfora simples, quase tudo que precisamos saber sobre a teoria do comércio internacional.
Existem duas tecnologias para produzir automóveis na América. Uma é fabricá-los em Detroit e a outra é cultivá-los em Iowa. Todo mundo sabe sobre a primeira tecnologia; Deixe-me falar sobre a segunda. Primeiro você planta as sementes, que são a matéria-prima a partir da qual os automóveis serão feitos. Você espera alguns meses até o trigo crescer. Então você colhe o trigo, carrega-o em navios e navega para o oeste, no Oceano Pacífico. Depois de alguns meses, os navios reaparecem cheios de Toyotas.
O comércio internacional não é senão uma forma de tecnologia. O fato de existir um lugar chamado Japão, com pessoas e fábricas, é bastante irrelevante para o bem-estar dos americanos. Para analisar as políticas comerciais, podemos também supor que o Japão é uma máquina gigante, com misteriosos mecanismos internos que convertem o trigo em carros. Qualquer política destinada a favorecer a primeira tecnologia em detrimento da segunda é uma política concebida para favorecer os produtores de automóveis americanos em Detroit, em detrimento dos produtores de automóveis americanos em Iowa. Um imposto ou uma proibição de automóveis "importados" é um imposto ou uma proibição sobre automóveis cultivados em Iowa. Se você protege os fabricantes de automóveis de Detroit da concorrência, então você vai prejudicar os agricultores de Iowa, porque os agricultores de Iowa são a concorrência.
[Isto é algo que está nitidamente ocorrendo hoje, depois das tarifas de Trump sobre o aço e os automóveis, que fizeram despencar as exportações agrícolas americanas, a ponto de o governo estar subsidiando os agricultores para compensar suas perdas]
A tarefa de produzir carros pode ser alocada entre Detroit e Iowa de várias maneiras. Um sistema de preços competitivo seleciona a alocação que minimiza o custo total de produção. Seria desnecessariamente caro fabricar todos os carros em Detroit, desnecessariamente caro cultivar todos os carros em Iowa, e desnecessariamente caro usar os dois processos de produção em algo diferente da razão natural que surge como resultado da competição.
Isso significa que a proteção para Detroit faz mais do que apenas transferir renda de agricultores para trabalhadores automotivos. Também aumenta o custo total de fornecer aos americanos um determinado número de automóveis. A perda de eficiência vem sem ganho compensatório e empobrece a nação como um todo.
Fala-se muito sobre como melhorar a eficiência da fabricação de carros americanos. Quando você tem duas maneiras de fazer um carro, o caminho para a eficiência é usar as duas em proporções ideais. A última coisa que você deve fazer é artificialmente desprezar uma de suas tecnologias de produção. É pura superstição pensar que um Toyota cultivado em Iowa é menos “americano” do que um Taurus construído em Detroit. Políticas baseadas na superstição não costumam produzir frutos eficientes.
Leia mais de João Luiz Mauad
A desonestidade intelectual de Paul Krugman
A última lição de Hayek
Por que a ideia de um projeto para o país é ruim e perigosa?
Como mostrado acima, o comércio internacional é uma forma de tecnologia, que certamente destrói alguns empregos temporariamente para fornecer mais bem estar para a maioria e para as futuras gerações. Ao contrário, entretanto, das novas tecnologias concebidas no Vale do Silício, por exemplo, que contam com a aprovação unânime das pessoas - ou pelo menos de quem não é idiota -, o comércio exterior, inexplicavelmente, é visto com ressalvas pela maioria.
Pense em quantos empregos o avanço da automação e da robótica cancela todos os anos. Muitos, certamente. Nem por isso, entretanto, salvo raríssimas exceções, as pessoas saem por aí pedindo a paralisação do progresso ou uma maior taxação para os produtos de alta tecnologia.
Eu diria inclusive, sem medo de errar, que o número de empregos perdidos para a evolução tecnológica, nos últimos 100 anos, supera em muito o desemprego gerado pela globalização e pela maior liberdade de comércio entre nações.
Se o foco fosse criar e manter empregos, tudo que os governos precisariam fazer seria obstruir o progresso tecnológico, ou seja, todo e qualquer processo poupador de trabalho. No entanto, além dos ludditas, como o ex-deputado Aldo Rebelo, há muito pouca gente disposta a levar adiante tal política. Por outro lado, o mesmo não ocorre quando o assunto é a tecnologia do comércio exterior.
+ Fabio Giambiagi: "A abertura comercial"
Como escrevi em outro artigo, há apenas cento e poucos anos, praticamente 70% da mão de obra estava alocada no campo. Com o avanço da tecnologia (tratores, fertilizantes, colheitadeiras, sementes geneticamente modificada, etc.), esse número é atualmente de apenas 2% nos países desenvolvidos. Agora imagine como estaríamos hoje se a maioria das pessoas continuasse trabalhando apenas para produzir alimentos.
O progresso econômico e a destruição de empregos andam de mãos dadas. Empregos não são destruídos somente quando uma nova máquina ou programa de computador são desenvolvidos, mas também quando o trabalho fica obsoleto por conta de processos de produção e trocas mais eficientes e/ou baratos. A verdade é que nenhum país pode dar-se ao luxo de tratar empregos como uma riqueza a ser contada, armazenada e protegidas da obsolescência.
O incentivo à competitividade e à produtividade exige coragem e disposição para substituir o que é antigo pelo que é novo. Nesse processo, a destruição de empregos é inevitável. Eis aí o paradoxo do progresso. Uma sociedade não pode colher os benefícios da destruição criadora sem aceitar que alguns indivíduos possam ficar piores, não apenas no curto prazo, mas talvez para sempre. Ao mesmo tempo, as tentativas de suavizar os aspectos mais severos da destruição criadora, preservando empregos ou protegendo indústrias, levarão à estagnação e ao declínio, promovendo um curto-circuito na marcha do progresso, que não avança sem varrer a ordem preexistente.
*Administrador de empresas formado pela Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (EBAP/FGV-RJ). É articulista dos jornais “O Globo” e “Diário do Comércio”.