Colunistas

O caso Leo Lins: uma aberração jurídica e um retrocesso político

Quando o humor vira crime, o problema não está na piada — está na lei

 (Divulgação)

(Divulgação)

Publicado em 14 de junho de 2025 às 08h07.

O caso do Leo Lins impressiona. A mim, ataca meus dois chapéus. O de advogada que sou, e também o de cientista política, minha segunda formação. Juridicamente, é uma aberração. Enquanto fenômeno social, outra.

Antes de tudo, é preciso voltar um passo e entender o pano de fundo dessa decisão. A promulgação da lei anti-piadas, a Lei 14532/23. Na justificativa do PL estava um evento de racismo latente em um estádio de futebol, onde um torcedor chamou um jogador de macaco. Em momentos de comoção social como esse, pode apostar, sempre vai surgir um parlamentar com um projeto de Lei para jogar o Estado para sua “nobre” função de bastião da moral e tutela máxima dos oprimidos.

Acontece que, quase sempre (eu ainda diria sempre) esses projetos de Lei têm efeitos catastróficos. Não conseguimos um mínimo de razoabilidade no debate, afinal, quem seria o parlamentar a votar contra que se grite macaco em um estádio de futebol? No dia seguinte seu rosto estaria em todos os perfis de influenciadores das redes sociais.

Não foi diferente aqui, o PL teve orientação “sim” de quase todas as bancadas. Poucos parlamentares tiveram a coragem de expor o obvio: que o texto abriria brecha para que caso não pensados naquele momento fossem julgados com arbitrariedade e total distorção do texto. Esse é um problema seríssimo, inerente do Poder Legislativo, e que merece um artigo a parte.

E, voilá, Leo Lins se tornou o caso de referência da arbitrariedade trazida pela Lei. 

Vamos ao meu chapéu advogada. O PL incluiu os seguintes incisos na Lei sobre discriminação racial: 

“Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público [...]”

“Os crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação.”

Ou seja, a recreação que se aplicaria a ambientes esportivos foi estendida aos palcos. Uma interpretação inconstitucional, ao ferir o direito à liberdade de expressão artística. 

Para o Direito brasileiro é necessário haver a intenção de discriminar para que se configure a ilicitude. Por óbvio, o humor pode ser ácido, mas não tem a intenção de ofender. Basta que se use a lógica para isso, o humorista precisa de público e uma ofensa pessoal não me parece a melhor forma de se tornar popular.

Particularmente, nunca achei graça no tipo de humor de Leo Lins. Ao ler sobre suas piadas senti, provavelmente, a mesma repulsa que a juíza que o condenou sentiu. Meu primeiro reflexo foi pensar sobre que tipo de público aplaude esse tipo de coisa.

Mas um público grande aplaude. E calar essas pessoas não vai fazer como que o humor delas mude. Não vai fazer delas pessoas melhores. Ao contrário. Criaremos uma sociedade de pessoas ressentidas e censuradas. Um tiro no pé.

A ironia desse jogo é que as mesmas pessoas que se ofendem com piadas, a ponto de comemorar uma pena de 8 anos de prisão, são as pessoas que gritam por direitos iguais, no mais ínfimo sinal de desigualdade social (seja essa desigualdade justa ou não). São as mesmas pessoas que gritam por censura a médicos que expõem os problemas da obesidade, por exemplo, por acharem a pauta “gordofóbica”. São as mesmas pessoas que romantizam problemas emocionais, a ponto de tornar um debate claro sobre isso praticamente impossível no Brasil atual. A dor delas deve ser respeitada, mas não a dor de uma pena de prisão, em um país com um sistema carcerário como o nosso. Para elas, talvez roubos, latrocínios e outros crimes do mundo real mereçam uma redução de pena. Mas piada não. Uma lógica reversa, no mínimo perturbadora.

A verdade é que o desconforto que a piada do Leo Lins traz é causado pela exposição visceral de problemas sociais crônicos da nossa sociedade. Jogá-los para debaixo do tapete não vai acabar com eles, ao contrário, tende a agravá-los. 

A boa notícia é que o Congresso parece finalmente ter despertado para a gravidade do tema. Já tramita um projeto de lei que propõe retirar da esfera penal esse tipo de infração, transferindo seu julgamento exclusivamente para a esfera civil. É uma correção necessária e urgente. Afinal, prender alguém por fazer humor é um traço típico das piores ditaduras — não de democracias maduras.

Acompanhe tudo sobre:Humoristas