Negociar os próprios direitos trabalhistas – o inacessível exercício de liberdade
O trabalhador no Brasil é livre e senhor de si. Como tal, ele pode negociar as regras que impactarão sua rotina, seus ganhos, suas condições de trabalho
Colunista - Instituto Millenium
Publicado em 5 de setembro de 2023 às 16h30.
Última atualização em 6 de setembro de 2023 às 10h17.
O trabalhador no Brasil é livre e senhor de si. Como tal, ele pode negociar as regras que impactarão sua rotina, seus ganhos, suas condições de trabalho. Ele pode ajustar direitos, estabelecer deveres, aderir a normas diversas que regerão a sua vida.
Não sou eu quem diz isso. Quem o faz, e muito claramente, é a nossa Constituição, a nossa CLT e o nosso STF.
A coisa, é bem verdade, precisou ser reforçada ao longo do tempo. Enquanto a Constituição Federal de 1988 sempre reconheceu a prevalência das convenções e acordos coletivos de trabalho (artigo 7°, incisos VI, XIII, XIV e XXVI), a octogenária CLT dizia que as relações contratuais poderiam ser objeto de livre estipulação entre as partes (art. 444). A mesma CLT, talvez cansada de não ser ouvida quanto ao direito, passou a gritá-lo.
A mudança de tom ocorreu com a Reforma Trabalhista (Lei n° 13.467/17 ), a maior alteração legal nesse campo desde Getúlio Vargas. Impulsionada pelo motor da liberdade individual, a Reforma explicitou e detalhou – tediosamente, acrescento - o direito de negociação do trabalhador. Justamente por isso, aliás, a sua linha mestra recebeu o apelido de “negociado sobre o legislado”. (Os que querem entediar-se podem conferir os novos artigos 611-A e 611-B da CLT. O primeiro exemplifica o que pode ser negociado, e o seguinte indica as matérias que não podem ser objeto de negociação, por violentar o “patamar civilizatório mínimo” do trabalhador - cópia, vale o registro, do rol dos direitos constitucionais.)
Por fim, a prevalência do negociado sobre a lei tem sido afirmada e reafirmada também pelo STF.
Em 2015 foi julgado o Tema 152, um dos precedentes mais importantes sobre o assunto. Nele, o STF reconheceu a força de lei das negociações coletivas e afirmou que a autonomia negocial é um dos melhores mecanismos outorgados aos trabalhadores para ajustarem com seu empregador os seus direitos. Durante o julgamento, o relator, Ministro Barroso, não deixou passar a oportunidade de censurar as costumeiras anulações de pactos coletivos pela Justiça do Trabalho, as quais, segundo o Ministro, não deveriam ser vistas com bons olhos.
Também a pandemia de COVID-19 se tornou oportunidade para que o STF reiterasse a tendência de chancela à prevalência do negociado sobre a lei. Lembremos que em 2020 foram implementadas alterações trabalhistas no mundo inteiro como reação à paralisação econômica causada pelo isolamento social. No Brasil em particular, a pandemia ocasionou uma desregulamentação drástica e criou precedentes constitucionais impactantes. Foi o caso, justamente, da prevalência dos acordos individuais sobre a lei, autorizada pela corte constitucional e amplamente utilizada para manter postos de trabalho com reduções de salário e jornada.
Já em junho de 2022, o STF fixou definitivamente a tese de que: “São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.” ( Tema 1046 )
Os tais “direitos absolutamente indisponíveis”, relembre-se, são aqueles já explicitados pela Constituição e repetidos pela CLT desde a Reforma Trabalhista (art. 611-B). A repetição enfadonha não impediu que se (re)estabelecesse a discussão sobre o que estaria inserido no limite do indisponível, sendo, portanto, inegociável. A rediscussão, por si só e para não perdermos o hábito, tem gerado alguma insegurança jurídica.
O que importa afirmar, contudo, é que já não há qualquer dúvida de que o STF escolheu o caminho da legalidade quanto à negociação de direitos pelo trabalhador.
Até mesmo no recente e polêmico julgamento do piso da enfermagem, quando o Supremo determinou a imediata implementação do patamar salarial fixado por lei, o fez apenas para o setor público. Ao setor privado, a mesma implementação ficou condicionada à negociação coletiva que, segundo determinou o STF, deveria prevalecer sobre a lei.
Então, repita-se: (1) nossa Constituição prevê a liberdade do trabalhador de negociar os seus próprios direitos; (2) a CLT detalhou os limites dessa liberdade até o ponto de não deixar dúvidas; e (3) o STF bateu o martelo sobre a questão inúmeras vezes.
Assunto encerrado, certo? Claro que não.
Ainda hoje não se exerce o respeito às negociações feitas entre trabalhador e empregador. Ainda hoje há inúmeras ações, coletivas ou individuais, que buscam anulação de cláusulas validamente negociadas. E ainda hoje há notícias frequentes de invalidação de negociações coletivas pela Justiça do Trabalho.
Como explicar isso? Por que o caminho até o exercício pleno da liberdade pelo trabalhador parece alongar-se continuamente, independentemente do que seja feito para encurtá-lo?
Só evoluiremos nessa seara quando conseguirmos responder a essas questões, identificando os motores dessa resistência e seus verdadeiros interesses. A nossa histórica aversão ao valor da liberdade pode não ser a única culpada.
O trabalhador no Brasil é livre e senhor de si. Como tal, ele pode negociar as regras que impactarão sua rotina, seus ganhos, suas condições de trabalho. Ele pode ajustar direitos, estabelecer deveres, aderir a normas diversas que regerão a sua vida.
Não sou eu quem diz isso. Quem o faz, e muito claramente, é a nossa Constituição, a nossa CLT e o nosso STF.
A coisa, é bem verdade, precisou ser reforçada ao longo do tempo. Enquanto a Constituição Federal de 1988 sempre reconheceu a prevalência das convenções e acordos coletivos de trabalho (artigo 7°, incisos VI, XIII, XIV e XXVI), a octogenária CLT dizia que as relações contratuais poderiam ser objeto de livre estipulação entre as partes (art. 444). A mesma CLT, talvez cansada de não ser ouvida quanto ao direito, passou a gritá-lo.
A mudança de tom ocorreu com a Reforma Trabalhista (Lei n° 13.467/17 ), a maior alteração legal nesse campo desde Getúlio Vargas. Impulsionada pelo motor da liberdade individual, a Reforma explicitou e detalhou – tediosamente, acrescento - o direito de negociação do trabalhador. Justamente por isso, aliás, a sua linha mestra recebeu o apelido de “negociado sobre o legislado”. (Os que querem entediar-se podem conferir os novos artigos 611-A e 611-B da CLT. O primeiro exemplifica o que pode ser negociado, e o seguinte indica as matérias que não podem ser objeto de negociação, por violentar o “patamar civilizatório mínimo” do trabalhador - cópia, vale o registro, do rol dos direitos constitucionais.)
Por fim, a prevalência do negociado sobre a lei tem sido afirmada e reafirmada também pelo STF.
Em 2015 foi julgado o Tema 152, um dos precedentes mais importantes sobre o assunto. Nele, o STF reconheceu a força de lei das negociações coletivas e afirmou que a autonomia negocial é um dos melhores mecanismos outorgados aos trabalhadores para ajustarem com seu empregador os seus direitos. Durante o julgamento, o relator, Ministro Barroso, não deixou passar a oportunidade de censurar as costumeiras anulações de pactos coletivos pela Justiça do Trabalho, as quais, segundo o Ministro, não deveriam ser vistas com bons olhos.
Também a pandemia de COVID-19 se tornou oportunidade para que o STF reiterasse a tendência de chancela à prevalência do negociado sobre a lei. Lembremos que em 2020 foram implementadas alterações trabalhistas no mundo inteiro como reação à paralisação econômica causada pelo isolamento social. No Brasil em particular, a pandemia ocasionou uma desregulamentação drástica e criou precedentes constitucionais impactantes. Foi o caso, justamente, da prevalência dos acordos individuais sobre a lei, autorizada pela corte constitucional e amplamente utilizada para manter postos de trabalho com reduções de salário e jornada.
Já em junho de 2022, o STF fixou definitivamente a tese de que: “São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.” ( Tema 1046 )
Os tais “direitos absolutamente indisponíveis”, relembre-se, são aqueles já explicitados pela Constituição e repetidos pela CLT desde a Reforma Trabalhista (art. 611-B). A repetição enfadonha não impediu que se (re)estabelecesse a discussão sobre o que estaria inserido no limite do indisponível, sendo, portanto, inegociável. A rediscussão, por si só e para não perdermos o hábito, tem gerado alguma insegurança jurídica.
O que importa afirmar, contudo, é que já não há qualquer dúvida de que o STF escolheu o caminho da legalidade quanto à negociação de direitos pelo trabalhador.
Até mesmo no recente e polêmico julgamento do piso da enfermagem, quando o Supremo determinou a imediata implementação do patamar salarial fixado por lei, o fez apenas para o setor público. Ao setor privado, a mesma implementação ficou condicionada à negociação coletiva que, segundo determinou o STF, deveria prevalecer sobre a lei.
Então, repita-se: (1) nossa Constituição prevê a liberdade do trabalhador de negociar os seus próprios direitos; (2) a CLT detalhou os limites dessa liberdade até o ponto de não deixar dúvidas; e (3) o STF bateu o martelo sobre a questão inúmeras vezes.
Assunto encerrado, certo? Claro que não.
Ainda hoje não se exerce o respeito às negociações feitas entre trabalhador e empregador. Ainda hoje há inúmeras ações, coletivas ou individuais, que buscam anulação de cláusulas validamente negociadas. E ainda hoje há notícias frequentes de invalidação de negociações coletivas pela Justiça do Trabalho.
Como explicar isso? Por que o caminho até o exercício pleno da liberdade pelo trabalhador parece alongar-se continuamente, independentemente do que seja feito para encurtá-lo?
Só evoluiremos nessa seara quando conseguirmos responder a essas questões, identificando os motores dessa resistência e seus verdadeiros interesses. A nossa histórica aversão ao valor da liberdade pode não ser a única culpada.