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Narrar é governar

As guerras de narrativas e a busca pela verdade

 (Divulgação/Divulgação)

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Instituto Millenium
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Publicado em 28 de outubro de 2025 às 19h13.

*Priscilla Dalledone, psicóloga, bacharela e licenciada em Letras, membro do IFL-Brasília.

 

O filme Wicked, baseado no musical da Broadway, apresenta uma inversão do clássico O Mágico de Oz. Em vez de narrar a aventura de Dorothy, a obra dá voz a Elphaba, a “bruxa má do Oeste”. O que antes parecia simples — vilões de um lado, mocinhos de outro — ganha tons de cinza. Ao mostrar a história pelo olhar da personagem marginalizada, Wicked revisa papéis e transforma antagonistas em protagonistas. Esse recurso, embora artístico, revela algo profundo: narrar é também definir quem é bom e quem é mau.

Esse mecanismo não pertence apenas à ficção. Está no modo como fatos são relatados. Palavras nunca são neutras. O vocabulário escolhido interfere na forma como julgamos. Se digo “protesto”, evoco legitimidade; se digo “baderna”, criminalidade. Também a sintaxe importa: “a polícia reprimiu manifestantes” não é o mesmo que “manifestantes foram reprimidos pela polícia”. A ordem desloca responsabilidades. O que vemos em Wicked — a reconfiguração de sentidos — é a mesma técnica usada diariamente em discursos políticos e matérias jornalísticas.

O cidadão comum se vê enredado. Lê manchetes, consome análises e incorpora enquadramentos. O resultado é a sensação de que a verdade é apenas perspectiva, de que várias verdades coexistem. Todavia, embora existam múltiplas narrativas, a verdade em si é una. A filosofia clássica defendia isso. Platão falava da verdade como aquilo que se adequa ao real; Aristóteles, como correspondência entre intelecto e coisas. Mesmo em tempos modernos, John Stuart Mill argumentava que permitir a livre circulação de opiniões não relativiza a verdade, mas a fortalece, pois o debate aproxima dela.

Exemplo claro dessa disputa aparece na cobertura midiática de personalidades públicas. Quando o ativista conservador norte-americano Charlie Kirk faleceu, manchetes de veículos brasileiros como a Revista Veja o descreveram como “ativista da extrema direita”, enquanto o jornal O Dia o apresentou como “ativista conservador morto nos EUA”. A diferença não é detalhe. O adjetivo “extrema” funciona como rótulo carregado, inserindo no imaginário do leitor predisposição a associar o personagem a intolerância. Já “ativista conservador” descreve de forma menos estigmatizada. O leitor, antes de acessar a notícia, já é conduzido a uma postura moldada pela palavra escolhida. Esse é o coração da guerra de narrativas: a disputa não é apenas sobre fatos, mas sobre como se nomeiam os fatos.

Do ponto de vista psicológico, o impacto é profundo. O ser humano precisa de histórias que organizem o caos da realidade. Quando versões divergentes competem, o indivíduo pode experimentar ansiedade e insegurança. A psicologia cognitiva mostra que tendemos a aceitar narrativas que confirmam nossas crenças prévias — o viés de confirmação. Assim, não buscamos a verdade, mas o conforto de versões que reforçam o que já acreditamos. A imprensa e líderes políticos exploram esse viés. O resultado é a radicalização: comunidades inteiras presas em bolhas narrativas, incapazes de dialogar, porque já não partilham sequer do mesmo vocabulário.

É por essa vulnerabilidade que a guerra de narrativas é eficaz. Em vez de armas, usam-se palavras. Em vez de muros, erguem-se adjetivos. O controle da linguagem se torna controle do pensamento. Orwell já havia descrito isso em 1984, mas não precisamos recorrer à ficção: basta observar manchetes, campanhas e discursos que moldam percepções diariamente.

O perigo maior é que essa manipulação alimente o relativismo absoluto, no qual tudo parece igualmente válido. Se toda versão for apenas narrativa, a própria noção de verdade desaparece. A filosofia insiste: múltiplas interpretações podem existir, mas os fatos permanecem. Há uma realidade objetiva, ainda que mediada pela linguagem.

No Brasil, a disputa narrativa tem contornos ainda mais delicados: envolve a memória histórica. Em diversas ocasiões, setores políticos de esquerda tentam recontar episódios nacionais transformando vilões em heróis e heróis em vilões. Figuras acusadas de corrupção ou autoritarismo são reabilitadas como injustiçados, enquanto adversários são retratados como ameaças. O que está em jogo não é apenas o presente, mas a identidade coletiva. Se aceitamos qualquer versão, corremos o risco de perder o fio da verdade histórica.

Assim como em Wicked, a inversão narrativa não se limita a dar voz a quem nunca teve: ela reconfigura intenções e altera a percepção do que é justo ou injusto. Na peça, a bruxa má revela-se, talvez, vítima de preconceito. Na política, certos personagens são apresentados como salvadores quando, na realidade, contribuíram para males coletivos. O problema é que, na vida real, não se trata de arte: trata-se de memória, de justiça, de responsabilidade.

A guerra de narrativas não é jogo inofensivo. Molda percepções, impacta eleições e interfere no tecido psicológico da população. Cabe ao cidadão desenvolver senso crítico, questionar adjetivos e não se deixar capturar por versões convenientes. Cabe à imprensa preservar a fidelidade ao real, ainda que toda narrativa seja recorte.

A busca pela verdade não é fácil. Exige atravessar múltiplas versões, reconhecer vieses, resistir à tentação de acreditar apenas no que conforta. No entanto, é tarefa indispensável. Sem ela, ficamos entregues a um mundo de versões infinitas, onde qualquer vilão pode se tornar herói e qualquer herói pode ser condenado como vilão — e, pior, onde ninguém mais sabe distinguir a diferença.

O Brasil vive, nesse sentido, um momento de Wicked político: um palco em que se tenta reescrever a história, colorindo de verde personagens que já mostraram sua maldade e pintando de cinza aqueles que resistiram. A pergunta que fica é se teremos coragem de olhar para além dos artifícios narrativos e buscar, com esforço, a verdade que permanece. Porque, no fim, só há uma: os fatos. O resto são versões encantadas que, como no musical, podem emocionar, mas não devem nos enganar.