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Moeda comum com a Argentina é uma boa ideia?

O Instituto Millenium entrevistou o especialista Márcio Salvato, professor e coordenador do IBMEC, sobre esse assunto

Pesos argentinos (Marcos Brindicci/Reuters)
DR

Da Redação

Publicado em 24 de janeiro de 2023 às 15h06.

Última atualização em 24 de janeiro de 2023 às 16h45.

Desde o ano passado, o assunto da moeda única entre Brasil e Argentina tem voltado à pauta, de tempos em tempos. A ideia não se resume a políticos de esquerda, já tendo sido ventilado também no governo passado. Mas qual o sentido da empreitada, e quais seriam as consequências dela para o Brasil? O Instituto Millenium entrevistou o especialista Márcio Salvato, professor e coordenador do IBMEC, sobre esse assunto. Confira abaixo

A ideia de ter uma moeda única para o Mercosul não é nova, mas estava adormecida. O próprio acordo do Mercosul também perdeu muito sua importância quando os países membros, inclusive o Brasil, optaram por seguir por regras de acordos bilaterais que se mostraram muito mais eficazes, por serem mais ágeis e com resultados mais dinâmicos. Interessante que a ideia de moeda única voltou à cena já num artigo de 2022 do atual secretário-executivo da Fazenda, Gabriel Galípolo, coautorado com o próprio Fernando Haddad, defendendo a ideia de moeda comum, iniciando com uma etapa de moeda comum apenas no sentido financeiro e contábil.

Vejam que fogem da ideia de moeda comum para o bloco econômico, nos moldes da região do Euro, mesmo porque esse tipo de acordo requer um alinhamento em vários sentidos e pressupostos inexistentes na relação Brasil-Argentina. Um acordo de "áreas monetárias ótimas" como definido por Robert Mundell (trabalhos publicados nos anos 1960 e prêmio Nobel de economia em 1999) requer as seguintes características: i) grande fluxo comercial; ii) muita mobilidade de mão de obra; e iii) alta integração financeira.

Ora, todo o Mercosul representa cerca de apenas 6% da corrente de comércio do Brasil e que vem sendo reduzida com a Argentina na última década; a mobilidade de mão de obra é baixíssima entre os países; e a integração financeira seria uma das etapas do acordo do Mercosul que nunca foi pra frente, com diferenciais de juros e de regulações bancárias bastante fortes. O ponto de referência é o acordo da zona do Euro, que durou décadas para atingir a uniformidade de moeda que requer simetria de choques econômicos, alinhamento de políticas fiscal e monetária e a existência de um único Banco Central que cuida da condução da politica monetária. Não existe moeda comum sem algum tipo de federalismo fiscal, veja o caso da crise Grega que custou caro para todo o bloco. Claro que benefícios surgem se o bloco atingir o nível de alinhamento exigido para chegar a uma moeda comum: mobilidade de capitais, de mão de obra, de recursos, escolha de sede contábil pelas empresas. Isso favorece toda a cadeia produtiva dos setores. Mas iniciar com moeda única sem alinhamento inicial de políticas significa trazer mais custos de ajustamento do que benefícios.

Se estivermos falando apenas de uma moeda comum meramente contábil para simplificar o comércio regional e sem significar o abandono das moedas nacionais, parece mais simples, mas mesmo nesse caso haveria a discussão sobre as garantias dos riscos cambiais de cada país na liquidação das operações. Vejam que definitivamente não é função dos bancos centrais o financiamento de riscos cambiais envolvidos no comércio exterior entre as partes. Se abandonamos o dólar como moeda de transação internacional, então como se formaria o câmbio de referência? Se há um novo câmbio com outra moeda contábil, o valor pode divergir da taxa do dia com o dólar, o que significa que um dos dois países terá prejuízo, enquanto o outro terá vantagem. Quem faria o ajuste, nesse caso?

Além do mais, o dólar já funciona de maneira simples como esse tipo de moeda contábil nas operações entre os países, com liquidez e facilidade transacional. Desta forma, não há nada de novo numa proposta deste tipo e só pode ser pior do que aquilo que já existe, complicando o comércio com o resto do mundo.  Para o Brasil, não faz sentido econômico, e serve apenas para desviar a atenção dos principais problemas nacionais, como o controle da dívida pública no Brasil e a inflação e baixo crescimento da Argentina.

A governança sobre cambiais (troca de moedas internacionais) já está sob a guarda do Banco Central, que deve continuar independente, centralizando todas as operações de compra e venda de moedas. Retirar do Banco Central essa governança é algo arriscado e sem sentido. A sugestão é primeiro seguir todos os protocolos necessários para alinhamento de políticas fiscais e monetárias dos países, abrindo fronteiras para movimentos de capitais, recursos e mão de obra, para só depois pensar em moeda comum. Esse é o último passo.

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Desde o ano passado, o assunto da moeda única entre Brasil e Argentina tem voltado à pauta, de tempos em tempos. A ideia não se resume a políticos de esquerda, já tendo sido ventilado também no governo passado. Mas qual o sentido da empreitada, e quais seriam as consequências dela para o Brasil? O Instituto Millenium entrevistou o especialista Márcio Salvato, professor e coordenador do IBMEC, sobre esse assunto. Confira abaixo

A ideia de ter uma moeda única para o Mercosul não é nova, mas estava adormecida. O próprio acordo do Mercosul também perdeu muito sua importância quando os países membros, inclusive o Brasil, optaram por seguir por regras de acordos bilaterais que se mostraram muito mais eficazes, por serem mais ágeis e com resultados mais dinâmicos. Interessante que a ideia de moeda única voltou à cena já num artigo de 2022 do atual secretário-executivo da Fazenda, Gabriel Galípolo, coautorado com o próprio Fernando Haddad, defendendo a ideia de moeda comum, iniciando com uma etapa de moeda comum apenas no sentido financeiro e contábil.

Vejam que fogem da ideia de moeda comum para o bloco econômico, nos moldes da região do Euro, mesmo porque esse tipo de acordo requer um alinhamento em vários sentidos e pressupostos inexistentes na relação Brasil-Argentina. Um acordo de "áreas monetárias ótimas" como definido por Robert Mundell (trabalhos publicados nos anos 1960 e prêmio Nobel de economia em 1999) requer as seguintes características: i) grande fluxo comercial; ii) muita mobilidade de mão de obra; e iii) alta integração financeira.

Ora, todo o Mercosul representa cerca de apenas 6% da corrente de comércio do Brasil e que vem sendo reduzida com a Argentina na última década; a mobilidade de mão de obra é baixíssima entre os países; e a integração financeira seria uma das etapas do acordo do Mercosul que nunca foi pra frente, com diferenciais de juros e de regulações bancárias bastante fortes. O ponto de referência é o acordo da zona do Euro, que durou décadas para atingir a uniformidade de moeda que requer simetria de choques econômicos, alinhamento de políticas fiscal e monetária e a existência de um único Banco Central que cuida da condução da politica monetária. Não existe moeda comum sem algum tipo de federalismo fiscal, veja o caso da crise Grega que custou caro para todo o bloco. Claro que benefícios surgem se o bloco atingir o nível de alinhamento exigido para chegar a uma moeda comum: mobilidade de capitais, de mão de obra, de recursos, escolha de sede contábil pelas empresas. Isso favorece toda a cadeia produtiva dos setores. Mas iniciar com moeda única sem alinhamento inicial de políticas significa trazer mais custos de ajustamento do que benefícios.

Se estivermos falando apenas de uma moeda comum meramente contábil para simplificar o comércio regional e sem significar o abandono das moedas nacionais, parece mais simples, mas mesmo nesse caso haveria a discussão sobre as garantias dos riscos cambiais de cada país na liquidação das operações. Vejam que definitivamente não é função dos bancos centrais o financiamento de riscos cambiais envolvidos no comércio exterior entre as partes. Se abandonamos o dólar como moeda de transação internacional, então como se formaria o câmbio de referência? Se há um novo câmbio com outra moeda contábil, o valor pode divergir da taxa do dia com o dólar, o que significa que um dos dois países terá prejuízo, enquanto o outro terá vantagem. Quem faria o ajuste, nesse caso?

Além do mais, o dólar já funciona de maneira simples como esse tipo de moeda contábil nas operações entre os países, com liquidez e facilidade transacional. Desta forma, não há nada de novo numa proposta deste tipo e só pode ser pior do que aquilo que já existe, complicando o comércio com o resto do mundo.  Para o Brasil, não faz sentido econômico, e serve apenas para desviar a atenção dos principais problemas nacionais, como o controle da dívida pública no Brasil e a inflação e baixo crescimento da Argentina.

A governança sobre cambiais (troca de moedas internacionais) já está sob a guarda do Banco Central, que deve continuar independente, centralizando todas as operações de compra e venda de moedas. Retirar do Banco Central essa governança é algo arriscado e sem sentido. A sugestão é primeiro seguir todos os protocolos necessários para alinhamento de políticas fiscais e monetárias dos países, abrindo fronteiras para movimentos de capitais, recursos e mão de obra, para só depois pensar em moeda comum. Esse é o último passo.

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