Moeda comum ou subsídio cruzado?
A Argentina encontra-se em uma grave enrascada: para além de sua galopante inflação de 94% ao ano, os dólares estão cada vez mais escassos
Da Redação
Publicado em 24 de janeiro de 2023 às 09h27.
Última atualização em 24 de janeiro de 2023 às 14h55.
Por André Bolini
Nosso País não é para amadores - estou cada vez mais convencido disso (para o nosso infortúnio, claro). Na pauta da semana, o debate recai sobre a proposta de criação de uma moeda comum entre Brasil e Argentina. Via de regra, eu simplesmente soltaria uma longa gargalhada, com tão estapafúrdia ideia - e voltaria a trabalhar para pagar os meus quintos dos infernos devidos ao perdulário Estado brasileiro. Mas, diante de tanta confusão, quero lançar aqui oportunos questionamentos ao debate público. Comecemos, então, nossos dois dedos de prosa.
A Argentina encontra-se em uma grave enrascada: para além de sua galopante inflação de 94% ao ano, os dólares estão cada vez mais escassos na economia hermana. Isso naturalmente surte reflexos: não apenas o câmbio paralelo floresce, como o próprio comércio internacional argentino é colocado em xeque. Afinal, para poder importar produtos e serviços de outros países, a moeda corrente utilizada nas transações globalmente padronizadas - o dólar - já não se faz disponível. E, por mais próximos que sejam, nem sempre convém a todos os seus parceiros comerciais manter reservas em pesos. O governo chinês, por exemplo, em caráter de exceção, passou a operar com o Banco Popular da China, fazendo operações de câmbio (“ swaps ”) com o Banco Central da Argentina - que, por sua vez, mantém reservas internacionais em yuans - a moeda corrente chinesa. E, com isso, a China vem ganhando mais espaço na economia argentina.
O Brasil, em contrapartida, segue como o maior parceiro comercial da Argentina. No total, nossas exportações para o país vizinho totalizam o equivalente a US$ 15,3 bilhões e nossas importações, US$ 13,1 bilhões (2022). Nesse cenário, o Brasil registra um superávit comercial da ordem de US$ 2,2 bilhões - isto é, vende mais do que compra e, por isso, na relação Brasil-Argentina, entram mais dólares na nossa economia do que saem. Mas, diferentemente da China, o Banco Central brasileiro tem restrições legais para fazer o mesmo tipo de operação cambial. É nesse contexto que nasce a discussão de uma possível moeda comum entre Brasil e Argentina, a ser batizada de “sur”.
Não se propõe, por enquanto, a criação de uma moeda aos moldes do Euro - de uso único e cunho forçado para ambos os países, abolindo o peso e o real. Não é nada disso! Falsos alardes foram gerados, ainda que absolutamente compreensíveis - dado o histórico de loucuras e pirotecnias econômicas já defendidas e implementadas pelo PT. Do outro lado, contudo, não se alegrem os entusiastas do atual governo, pois complemento minha colocação: a ideia atualmente proposta é tão ruim quanto. Uma infame piada de mau gosto, a meu ver. Por isso, doravante, refiro-me à tal “sur” como “estalecas bolivarianas”.
Façamos a seguir alguns exercícios mentais, meu caro amigo leitor. O Brasil exporta mais para a Argentina do que dela importa - ou seja, vende mais do que compra. Hoje, isso significa acumular um saldo líquido de dólares, já que nosso comércio internacional é todo dolarizado. Diga-se de passagem, temos reservas em dólar porque este sim é uma moeda de altíssima liquidez e passível de aceitação por qualquer outro país do globo. Agora, imaginemos acumular, ao invés de dólares, as tais estalecas bolivarianas. No ápice de minha inocência, pergunto: o que diabos faríamos com esse saldo líquido de estalecas bolivarianas?
Historicamente, o Brasil sempre teve superávit comercial com a Argentina - isto é, sempre acumulou divisas recebidas dos hermanos. Sendo assim, é de se supor que também iríamos acumular saldo positivo de estalecas bolivarianas. Pois é neste pequeno detalhe que reside Belzebu: o que fazer com o histórico e estrutural superávit comercial quando revertido em uma moeda de baixa liquidez e com aceitação restrita a apenas esses dois países?
Dentre os cenários possíveis, não vejo boa saída. Se podemos apenas utilizar as estalecas bolivarianas com a Argentina, isso significa que, ao acumular um saldo positivo da nova moeda, o Brasil ficaria obrigado, cedo ou tarde, a utilizar esse valor em importações da própria Argentina (atualmente, na ordem de US$ 2 bilhões ao ano - equivalente a quase R$ 11 bilhões). Mas, note, amigo leitor: se outrora eu, brasileiro, teria liberdade para utilizar minhas divisas em operações de compra e venda com outros quaisquer países, valendo-me dos dólares recebidos, agora, com a nova moeda em curso, acumulando o saldo de estalecas, eu deixaria de fazer comércio com quem normalmente faria para utilizar meu saldo junto aos hermanos. Ainda que de forma disfarçada, portanto, estabelece-se uma cota preferencial de comércio para com a Argentina - implicando, necessariamente, em destruição de valor para os brasileiros. Subsídio cruzado, na prática, em favor da Argentina.
Surgem alternativas, naturalmente. Há nomes no governo sugerindo que a nova moeda teria como lastro garantias reais em colateral. Mas, para aqueles que já aceitaram charuto como contrapartida de garantia em operações de crédito às exportações cubanas, reluto em acreditar que, desta vez, nosso colateral teria caráter tão diferente. Por isso, sequer considero a execução de tais garantias como fonte crível de liquidez. Assim como considero péssimas as possibilidades de eventuais operações de trading de crédito de estalecas bolivarianas - que País, afinal, compraria tais ativos a 100% do valor de face, sem impor deságio ao assumir nossa brilhante nova moeda? Novamente: subsídio cruzado, na prática, em favor da Argentina.
Elucidem-me os colegas, porque eu, particularmente, não consigo vislumbrar saldo líquido positivo nessa história. Competir com a China pelo espaço na balança comercial argentina? Não me parece valer o custo bilionário que se pode impor ao povo brasileiro por um parceiro que corresponde a 4% de nossa carteira de parceiros em exportações. Ademais, conheço a ficha corrida dos autores da iniciativa: confesso dificuldade em renegar aquelas frequentes intenções não declaradas por trás da típica ideia de integração regional - via de regra, o repasse de auxílios a governos amigos e financeiramente arruinados. Seria este que vos escreve demasiadamente cético ou apenas um conhecedor e nostálgico do tradicional modus operandi lulopetista?
André Bolini é formado em Administração de Empresas pela FGV, é analista de crédito no mercado financeiro e empreendedor.
Por André Bolini
Nosso País não é para amadores - estou cada vez mais convencido disso (para o nosso infortúnio, claro). Na pauta da semana, o debate recai sobre a proposta de criação de uma moeda comum entre Brasil e Argentina. Via de regra, eu simplesmente soltaria uma longa gargalhada, com tão estapafúrdia ideia - e voltaria a trabalhar para pagar os meus quintos dos infernos devidos ao perdulário Estado brasileiro. Mas, diante de tanta confusão, quero lançar aqui oportunos questionamentos ao debate público. Comecemos, então, nossos dois dedos de prosa.
A Argentina encontra-se em uma grave enrascada: para além de sua galopante inflação de 94% ao ano, os dólares estão cada vez mais escassos na economia hermana. Isso naturalmente surte reflexos: não apenas o câmbio paralelo floresce, como o próprio comércio internacional argentino é colocado em xeque. Afinal, para poder importar produtos e serviços de outros países, a moeda corrente utilizada nas transações globalmente padronizadas - o dólar - já não se faz disponível. E, por mais próximos que sejam, nem sempre convém a todos os seus parceiros comerciais manter reservas em pesos. O governo chinês, por exemplo, em caráter de exceção, passou a operar com o Banco Popular da China, fazendo operações de câmbio (“ swaps ”) com o Banco Central da Argentina - que, por sua vez, mantém reservas internacionais em yuans - a moeda corrente chinesa. E, com isso, a China vem ganhando mais espaço na economia argentina.
O Brasil, em contrapartida, segue como o maior parceiro comercial da Argentina. No total, nossas exportações para o país vizinho totalizam o equivalente a US$ 15,3 bilhões e nossas importações, US$ 13,1 bilhões (2022). Nesse cenário, o Brasil registra um superávit comercial da ordem de US$ 2,2 bilhões - isto é, vende mais do que compra e, por isso, na relação Brasil-Argentina, entram mais dólares na nossa economia do que saem. Mas, diferentemente da China, o Banco Central brasileiro tem restrições legais para fazer o mesmo tipo de operação cambial. É nesse contexto que nasce a discussão de uma possível moeda comum entre Brasil e Argentina, a ser batizada de “sur”.
Não se propõe, por enquanto, a criação de uma moeda aos moldes do Euro - de uso único e cunho forçado para ambos os países, abolindo o peso e o real. Não é nada disso! Falsos alardes foram gerados, ainda que absolutamente compreensíveis - dado o histórico de loucuras e pirotecnias econômicas já defendidas e implementadas pelo PT. Do outro lado, contudo, não se alegrem os entusiastas do atual governo, pois complemento minha colocação: a ideia atualmente proposta é tão ruim quanto. Uma infame piada de mau gosto, a meu ver. Por isso, doravante, refiro-me à tal “sur” como “estalecas bolivarianas”.
Façamos a seguir alguns exercícios mentais, meu caro amigo leitor. O Brasil exporta mais para a Argentina do que dela importa - ou seja, vende mais do que compra. Hoje, isso significa acumular um saldo líquido de dólares, já que nosso comércio internacional é todo dolarizado. Diga-se de passagem, temos reservas em dólar porque este sim é uma moeda de altíssima liquidez e passível de aceitação por qualquer outro país do globo. Agora, imaginemos acumular, ao invés de dólares, as tais estalecas bolivarianas. No ápice de minha inocência, pergunto: o que diabos faríamos com esse saldo líquido de estalecas bolivarianas?
Historicamente, o Brasil sempre teve superávit comercial com a Argentina - isto é, sempre acumulou divisas recebidas dos hermanos. Sendo assim, é de se supor que também iríamos acumular saldo positivo de estalecas bolivarianas. Pois é neste pequeno detalhe que reside Belzebu: o que fazer com o histórico e estrutural superávit comercial quando revertido em uma moeda de baixa liquidez e com aceitação restrita a apenas esses dois países?
Dentre os cenários possíveis, não vejo boa saída. Se podemos apenas utilizar as estalecas bolivarianas com a Argentina, isso significa que, ao acumular um saldo positivo da nova moeda, o Brasil ficaria obrigado, cedo ou tarde, a utilizar esse valor em importações da própria Argentina (atualmente, na ordem de US$ 2 bilhões ao ano - equivalente a quase R$ 11 bilhões). Mas, note, amigo leitor: se outrora eu, brasileiro, teria liberdade para utilizar minhas divisas em operações de compra e venda com outros quaisquer países, valendo-me dos dólares recebidos, agora, com a nova moeda em curso, acumulando o saldo de estalecas, eu deixaria de fazer comércio com quem normalmente faria para utilizar meu saldo junto aos hermanos. Ainda que de forma disfarçada, portanto, estabelece-se uma cota preferencial de comércio para com a Argentina - implicando, necessariamente, em destruição de valor para os brasileiros. Subsídio cruzado, na prática, em favor da Argentina.
Surgem alternativas, naturalmente. Há nomes no governo sugerindo que a nova moeda teria como lastro garantias reais em colateral. Mas, para aqueles que já aceitaram charuto como contrapartida de garantia em operações de crédito às exportações cubanas, reluto em acreditar que, desta vez, nosso colateral teria caráter tão diferente. Por isso, sequer considero a execução de tais garantias como fonte crível de liquidez. Assim como considero péssimas as possibilidades de eventuais operações de trading de crédito de estalecas bolivarianas - que País, afinal, compraria tais ativos a 100% do valor de face, sem impor deságio ao assumir nossa brilhante nova moeda? Novamente: subsídio cruzado, na prática, em favor da Argentina.
Elucidem-me os colegas, porque eu, particularmente, não consigo vislumbrar saldo líquido positivo nessa história. Competir com a China pelo espaço na balança comercial argentina? Não me parece valer o custo bilionário que se pode impor ao povo brasileiro por um parceiro que corresponde a 4% de nossa carteira de parceiros em exportações. Ademais, conheço a ficha corrida dos autores da iniciativa: confesso dificuldade em renegar aquelas frequentes intenções não declaradas por trás da típica ideia de integração regional - via de regra, o repasse de auxílios a governos amigos e financeiramente arruinados. Seria este que vos escreve demasiadamente cético ou apenas um conhecedor e nostálgico do tradicional modus operandi lulopetista?
André Bolini é formado em Administração de Empresas pela FGV, é analista de crédito no mercado financeiro e empreendedor.