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Mecanismos vivos, Proposições Falsas e Políticas Públicas

A economia é um mecanismo vivo, no qual seus agentes reagem aos incentivos que lhes são apresentados

A economia é um mecanismo vivo, no qual seus agentes reagem aos incentivos que lhes são apresentados  (Germano Lüders/Exame)
A economia é um mecanismo vivo, no qual seus agentes reagem aos incentivos que lhes são apresentados (Germano Lüders/Exame)

Por Marcelo de Albuquerque e Mello

Partindo de uma falsa proposição, podemos chegar aonde quisermos, inclusive ao absurdo. Esse é um conhecido resultado dos matemáticos. Com base em falsas proposições podemos até “provar” que 2 é igual a 1. Outro dia em sala de aula eu fiz isso, até que um aluno intuitivamente retrucou: “Professor, deve ter alguma coisa errada nessa história, né?” Com certeza! Por incrível que pareça, partir de uma falsa proposição é algo comum na formulação de políticas públicas.  

Por exemplo, tomemos a ideia de que uma redução na jornada de trabalho semanal aumenta o nível de emprego. O argumento é o seguinte. Suponha que 𝐻 seja o número (fixo) total de horas-trabalhadas na economia. Então, podemos escrever 𝐻 como sendo o produto das horas trabalhadas por trabalhador vezes o número de trabalhadores. Ou seja, podemos escrever que 𝐻 = (𝐻𝑜𝑟𝑎𝑠/𝐿) ∙ 𝐿, onde L denota o número de trabalhadores. Então, se reduzirmos o número de horas por trabalhador, dado o montante fixo de horas trabalhadas 𝐻, o número de trabalhadores tem que aumentar. Ou seja, a redução das horas trabalhadas por trabalhador, vai gerar empregos. Conclusão óbvia e completamente errada.  

O erro está na falsa proposição de que o número total de horas-trabalhadas na economia é fixo. Na verdade, é o contrário, o número de horas-trabalhadas é variável, e aumenta ou diminui de acordo com os incentivos econômicos correntes. Acreditar que a economia vai responder de acordo com a intenção declarada em uma lei, é uma falácia baseada na crença que a economia funciona como uma máquina que pode ser reparada por um bom mecânico. Se “canetada” fosse capaz de resolver um problema econômico, então segue aqui a sugestão de passar uma lei acabando com a pobreza, ou, melhor ainda, uma lei estabelecendo um patrimônio mínimo de dez milhões de reais por pessoa. A taxa de juros está alta? Basta reduzir, ué. A inflação está alta? Basta congelar os preços, ué. A carga horária de trabalho está alta? Basta passar uma lei reduzindo a carga horária, ué.  

Assim como a intuição do aluno na aula de matemática do absurdo, deve ter alguma coisa errada nessa história. A economia é um mecanismo vivo, no qual seus agentes reagem aos incentivos que lhes são apresentados. Ao propor a redução do número de horas-trabalhadas na semana de 44hs para 36hs, mantendo o salário, como os agentes econômicos vão reagir? Será que o dono da farmácia vai internalizar o aumento dos custos, ou vai repassar para os consumidores? Será que ele/ela vai demitir funcionários e contratar mão de obra nova por um salário menor? Será que a farmácia vai reduzir suas horas de funcionamento para acomodar os custos maiores? Talvez seja melhor demitir alguns funcionários e diluir a qualidade do serviço, quem sabe? Por outro lado, não seria melhor reduzir a carga horária semanal de trabalho para 18hs? Será que a nova lei vai melhorar a vida dos trabalhadores, ou vai jogá-los na informalidade?  

É espantoso que no Brasil políticos proponham mudanças na legislação sem apresentar um estudo de impacto, simplesmente copiando alguma política que esteja sendo implementada ou testada em algum outro país. Foi feito algum estudo detalhado sobre as experiências dos países que reduziram a carga horária de trabalho sem redução de salário? Algum país com estrutura da economia parecida com a nossa adotou política semelhante? Qual foi o resultado? A lista dos países que implementaram (ou estão testando) a redução da carga horária semanal sem redução de salário inclui a Islândia, Japão, Nova Zelândia, Espanha, Escócia, Alemanha, Emirados Árabes Unidos, França, Portugal, Bélgica e Canadá. Todos esses países têm PIB per capita muito acima do PIB per capita brasileiro, e realidades muito diferentes da nossa (por exemplo, a população da Islândia é de cerca de 400.000 pessoas, provavelmente menos populosa do que a Barra da Tijuca, bairro no Rio de Janeiro). Será que podemos confiar na experiência desses países como referência relevante para o caso Brasileiro? Somente um estudo de impacto competente poderia responder a essas perguntas.  

Muitas “canetadas” têm boas intenções, mas acabam produzindo resultados no extremo oposto dos objetivos declarados. É famosa a história de que no auge do combate a peste bubônica no Rio de Janeiro, no início do século XX, com o objetivo de controlar a população de ratos, a prefeitura implementou uma política de pagar por rato morto. Rapidamente surgiu a profissão de “ratoeiro” - as pessoas começaram a criar ratos...  

Todos nós gostaríamos de trabalhar menos e ganhar mais, passar mais tempo com a família e os amigos, ter mais tempo para cuidar da saúde e do bem-estar. Entretanto, é importante lembrar que a economia é regida pelas leis da demanda e da oferta, e não pelas leis das “canetadas”. Para que seja factível reduzir a carga horária semanal de trabalho, é preciso aumentar a produtividade total dos fatores na economia, em particular, a produtividade do trabalho. Como? O investimento em educação de qualidade é um bom começo. Finalmente, com o aumento da produtividade, vem o aumento no padrão de vida, que permitirá comprar mais lazer para que possamos desfrutar mais tempo com a família e os amigos.  

Marcelo de Albuquerque e Mello, Economista e Especialista do Instituto Millenium