Exame.com
Continua após a publicidade

Limites extrapolados de um benefício que não faz sentido

É justo que um magistrado receba um bônus mensal de R$ 4.377,73, acrescidos de um gordo salário, como ajuda de custo para pagar as despesas de um imóvel?

I
Instituto Millenium

Publicado em 13 de dezembro de 2018 às, 10h28.

Última atualização em 13 de dezembro de 2018 às, 10h29.

Não restam dúvidas de que o fim do pagamento de qualquer auxílio-moradia a magistrados ou membros do funcionalismo público seja positivo para as contas públicas. No entanto, a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux por revogar suas próprias liminares de 2014, responsáveis pela autorização do pagamento do benefício à magistratura, esbarra no inevitável questionamento em torno da moralidade dos privilégios e das ações da Justiça brasileira. Faz sentido, ou melhor, é justo que um magistrado receba um bônus mensal de R$ 4.377,73, acrescidos de um gordo salário, como ajuda de custo para pagar as despesas de um imóvel?

A resposta o leitor já tem na ponta da língua. Antes da revogação, tomada por mera conveniência diante de um reajuste salarial de 16,38% concedido pelo presidente Michel Temer aos ministros do STF, o pagamento do auxílio-moradia tinha respaldo legal da Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979, que previa “Ajuda de custo, para moradia, nas Comarcas em que não houver residência oficial para Juiz, exceto nas Capitais”. A regulamentação, porém, não foi estabelecida de imediato, e nem todos os estados da Federação pagavam o benefício a todas as carreiras. Foi em 2014 que o próprio Fux fixou o valor de R$ 4.377,73 como teto para o auxílio e determinou o pagamento a todos os magistrados do país, inclusive àqueles com moradia própria na cidade onde trabalhavam. Desde então, o número de beneficiários aumentou 70%, contribuindo para pesar ainda mais no bolso dos contribuintes brasileiros — treze milhões deles desempregados —, responsáveis únicos por sustentar o equivalente a 2% do PIB gasto com a máquina do Judiciário.

Já é contrassenso estabelecer um benefício cujo objetivo é custear a moradia de um profissional que dispõe de casa própria, mas salta aos olhos a desfaçatez com a qual o auxílio-moradia foi liberado nos últimos quatro anos. Contrariando decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por todo este tempo decisões judiciais concederam a magistrados a acumulação do benefício com cônjuges, ou seja, um casal de juízes, por exemplo, residentes de uma mesma casa própria, eram autorizados a receber dois auxílios-moradia. Não há justificativa lógica, que não a má-fé, para tamanho descaso com o dinheiro público. A realidade é que, a letra da lei, nesses últimos quatro anos, foi utilizada para conceder benefícios que em nada se relacionavam à questão habitacional, e sim a aumentos disfarçados. E pior, apenas diante de um reajuste expressivo em seu subsídio o STF suspendeu o benefício — é importante ressaltar que o salário da mais alta Corte, em pouco mais de quatro anos, saltou da casa dos R$ 29 mil para, em 2019, ser fixado em R$ 39,2 mil.

Não há aqui questionamentos sobre a importância do Judiciário e do Ministério Público, tampouco sobre o brilhantismo com o qual as carreiras da magistratura podem ser trilhadas. Causa indignação, no entanto, a discrepância abissal com a realidade do país. O valor de R$ 4.377,73 representa mais de quatro salários mínimos e meio em um país cuja renda domiciliar per capita, segundo o IBGE, esteve na casa dos R$ 1.268 em 2017. É com o próprio salário que os brasileiros comuns pagam suas contas, inclusive suas moradias. Por que há de ser diferente com os servidores sustentados com dinheiro público? Salários generosos, cujo teto atual bate os R$ 33,7 mil, já não bastam para que se possa arcar com custos habitacionais? Não deveria ser de responsabilidade de cada um a administração eficaz do próprio dinheiro, ainda mais sendo ele proveniente da arrecadação de impostos? Confira aqui a remuneração dos magistrados brasileiros e tire suas próprias conclusões, caro leitor. O auxílio-moradia representa não mais que um desincentivo à poupança, afinal, age como uma punição a todos aqueles que precisam economizar para descansar sob um teto todas às noites.

Como se não bastasse o efeito cascata do aumento do subsídio dos ministros do STF sob os servidores do Judiciário, Ministério Público e de demais Poderes, há pressões para que o Estado compense financeiramente os profissionais que perderam o “direito” ao auxílio-moradia. Não tendo sido levada a plenário, a decisão de Fux não torna o benefício inconstitucional e abre brechas para que o penduricalho volte a ser regulamentado — é o que esperam entidades e associações de juízes, como noticiado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”. A sugestão dessas organizações é a criação de um benefício adicional para compensar o fim da ajuda de custo, que pode chegar a ser avaliado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). A revogação do benefício também incomodou a procuradora-geral da República Raquel Dodge, que recorreu da decisão com a justificativa de que Fux “extrapolou os limites” ao estender sua determinação a todas as carreiras jurídicas. Fux extrapolou os limites, Dodge está certa, mas sim quando, em 2014, lapidou um mecanismo legal responsável pela manutenção de privilégios à custa do cidadão brasileiro, aprofundando ainda mais a distância entre “eles” e “nós”.

Veja mais no Instituto Millenium