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Limites do Poder: Oscar Vilhena discute a PEC 8/2021 e o futuro da justiça constitucional no Brasil

A PEC propõe limitar o uso de decisões monocráticas nos tribunais superiores, incluindo o STF, e tem sido objeto de discussões

 (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
(Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Na esteira da aprovação da PEC 8/2021 pelo Senado Federal, o Instituto Millenium entrevistou Oscar Vilhena, renomado jurista e professor da FGV Direito SP. Com uma formação diversificada em direito e ciência política, Vilhena é uma figura relevante no debate jurídico brasileiro, referência em questões constitucionais e de direitos humanos.  

A PEC 8/2021 propõe limitar o uso de decisões monocráticas nos tribunais superiores, incluindo o Supremo Tribunal Federal, e tem sido objeto de intensas discussões. Vilhena oferece sua análise sobre as possíveis implicações dessa medida, considerando tanto as dinâmicas de poder entre os diferentes ramos do governo quanto os impactos na jurisprudência e na garantia dos direitos fundamentais.  

A conversa abrange desde as motivações políticas por trás da PEC até as consequências práticas para a estrutura judicial do país. Vilhena discute a complexa relação entre os poderes Legislativo e Judiciário e reflete sobre o futuro da justiça constitucional no Brasil, em um momento em que se observa uma crescente tensão entre as instituições. 

Instituto Millenium: Como você interpreta a aprovação da PEC 8/2021 pelo Senado? Quais podem ser os efeitos gerais dessa medida no cenário político e institucional brasileiro? 

Oscar Vilhena: A proposta de emenda é claramente uma retaliação do Senado Federal contra o protagonismo alcançado pelo Supremo Tribunal Federal nas últimas décadas. Há muito ressentimentos por parte da classe política em relação ao Supremo, que passam por parte da esquerda, mas especialmente por parte da direita e da extrema direita. O papel central do Supremo na defesa da democracia no período Bolsonaro, jamais foi assimilado pela direita brasileira. 

Dito isso, há um problema grave na jurisdição constitucional brasileira - que venho denunciando desde 2008, quando escrevi um texto denominado Supremocracia, que é o emprego exacerbado de decisões monocráticas em detrimento do plenário por parte dos ministros do Supremo. Esse é um problema muito sério, pois gera insegurança jurídica, inconsistências na aplicação do direito, além de falta de controle do colegiado sobre os gabinetes.  

Esse problema começou a ser enfrentado pela alteração do Regimento Interno do STF, promovido pela Ministra Rosa Weber, em dezembro do ano passado. Daí a medida aprovada pelo Senado me parecer desnecessária. Há que se destacar, no entanto, que a emenda aprovada pelo Senado é ainda mais restritiva que as impostas pelo regimento, podendo gerar alguns problemas. Ao proibir medidas cautelares monocráticas, poderá em determinadas circunstâncias deixar vulneráveis direitos fundamentais, a paz social ou mesmo a ordem pública. A solução regimental me parece me parece mais adequada, pois impõe que as decisões monocráticas sejam imediatamente submetidas ao plenário.  

IM: Qual é a sua visão sobre a possibilidade e as implicações de uma eventual anulação da PEC 8/2021 pelo STF?  

OV: O Supremo já decidiu no passado – durante o plano Collor – que nenhuma lesão ou ameaça a direito poderá deixar de ser apreciada pelo Judiciário, em plena conformidade com o inciso XXXV, artigo 5º da CF. A obtenção de uma cautelar quando houver risco de lesão irreparável do direito, em face da demora na apreciação de um ato ou lei, é parte do direito fundamental de acesso à Justiça. Assim, toda forma de embaraçar o acesso à Justiça é uma violação de uma cláusula pétrea da Constituição. Nesse sentido, o Supremo poderá sim declarar a inconstitucionalidade de uma eventual emenda restritiva dos direitos fundamentais. Não creio, no entanto, que isso será necessário, pois deverá prevalecer no final dessa refrega o que foi estabelecido pelo Regimento. Temos que restringir as decisões monocráticas ao máximo, sem que isso, no entanto, iniba a devida proteção de direitos. E isso já foi equacionado pelo Regimento do Supremo. 

IM: A PEC 8/2021 entra em um debate complexo sobre os limites entre interpretação e criação da lei pelos juízes. Poderia compartilhar sua perspectiva sobre como essa medida se relaciona com essa distinção? 

OV: Não há dúvida de que o Supremo alçou a uma posição central em nosso sistema político, com a constituição de 1988, que lhe conferiu amplíssimos poderes. Também é verdade que o Supremo passou a emitir decisões sobre uma enorme gama de temas que antes estavam reservados aos legisladores e mesmo ao Executivo. Quem transferiu esses poderes ao Supremo foi o próprio legislador constituinte. Mais do que isso, aqueles que mais demandam a intervenção do Supremo em questões políticas, morais e econômicas, são os próprios partidos políticos. A politização do Supremo é em grande medida decorrente da incapacidade do sistema político de resolver os seus problemas, que terminam transbordando para o sistema de justiça. Isso não significa que não haja ministros que avancem o sinal, buscando impor suas decisões sobre o plenário e mesmo sobre os demais poderes. E isso deve ser corrigido. Aumentar a colegialidade, reduzir o protagonismo individual, produzir decisões mais consistentes é o que precisamos. 

IM: Na sua opinião, a movimentação em torno da PEC 8/2021 estaria associada de alguma forma à importação do conceito de 'weak judicial review', onde o legislativo e o executivo têm a capacidade de rejeitar decisões constitucionais do Judiciário de forma pública?  

OV: Sim. Há um movimento em diversos países, especialmente por parte de juristas mais à direita, mas não só, empenhados em reduzir o papel dos tribunais constitucionais nos sistemas políticos. No entanto, esse é um debate cheio de armadilhas, pois muitas vezes não leva em consideração a história concreta de cada pólis, de cada democracia. Podem países com minorias historicamente discriminadas abdicar de um controle constitucional forte, que proteja essas minorias dos ataques das maiorias? Devem países muito desiguais, como Brasil, Índia, Estados Unidos ou África do Sul, abdicar de um Judiciário forte que possa ser mobilizado por grupos que não conseguem mobilizar o sistema político? Creio que a resposta é negativa. Há um viés anglicano, inspirado no modelo político majoritário Britânico, nessas concepções. Por outro lado, não se deve desconsiderar que grande parte dos populistas autoritários da última década tiveram as cortes constitucionais como alvos de seus ataques. Veja o que aconteceu na Venezuela, Hungria, Turquia, Brasil e especialmente em Israel. Nos Estados Unidos isso não ocorreu porque a Suprema Corte se converteu, ela própria, num bastião conservador. Mas se olharmos para os ataques de Trump aos juízes federais e mesmo algumas cortes estaduais americanas, o problema se repete. 

IM: Como a PEC 8/2021 pode afetar a abordagem do STF em relação a 'casos difíceis', que envolvem questões morais e políticas complexas? 

OV: Penso que a PEC, em sua versão original, era uma tentativa de acuar o Supremo. Seu texto já foi bastante desidratado, felizmente. Seu vício maior, que era a possibilidade de o legislador derrubar decisões do tribunal – como se pretende em Israel ou foi feito aqui durante o Estado Novo -, foi abandonado. Caso a PEC venha a ser aprovada, com o atual texto, isso afetará predominantemente a forma coletiva como passará o Supremo a deliberar. No mais, as coisas seguirão o seu rumo. Não podemos ser ingênuos. Os tribunais não decidem no vácuo. O Supremo irá entender que questões mais polêmicas devem ser enfrentadas com mais cuidado, para que a autoridade do tribunal não seja contestada. Mais cuidado não significa omissão, mas maior qualidade na deliberação e consistência na elaboração das decisões.  

IM: Considerando as mudanças propostas pela PEC 8/2021, como você vê o futuro da justiça constitucional no Brasil? Estamos caminhando para um cenário de maior estabilidade ou de crescentes tensões institucionais? 

OV: Penso que o Supremo já estava num movimento de autocontenção, com a reforma de seu Regimento, quando veio o 8 de janeiro e um ataque inaceitável à sua jurisdição e à democracia brasileira. A reação do tribunal foi dura e isso tem levado a uma retaliação por parte de diversos segmentos da política brasileira. Não creio que haverá uma pacificação próxima, pois temos assistido a uma mudança na cultura política brasileira, que se torna cada vez mais conservadora, contrapondo-se ao próprio ethos da Constituição. Sempre que o Supremo exercer sua função de guardião da Constituição, enfrentará ataques dos inimigos da Constituição. Essa é uma realidade. Isso não significa, no entanto, que o Supremo não deva melhorar seu processo de deliberação. Isso é uma obrigação do tribunal que, inclusive, o deixará menos vulnerável aos ataques.  

IM: Considerando as dinâmicas distintas entre o STF e os governos de Bolsonaro e Lula, com o primeiro caracterizado por um conflito mais explícito e o segundo por interações mais de bastidores, como você avalia essas diferentes abordagens nas relações entre o Executivo e o Judiciário? Isso reflete uma mudança significativa na forma como os conflitos institucionais são gerenciados? 

OV: O poder é sempre um fenômeno relacional. A relação entre os poderes, portanto, sempre será dinâmica. A relação de FHC com o tribunal era uma, a relação de Lula, outra. Tendo a crer que quando o sistema representativo age de forma mais consensual, o papel do tribunal tende a ser mais tímido. Quando os conflitos políticos se acirram, o tribunal é acionado e se politiza. Vivenciamos um duro ataque à democracia, na cauda de um longo processo de instabilidade que começou em 2013. É natural que todos esses conflitos tenham respingado no Supremo.  

Se quisermos traçar algumas categorias grosseiras, apenas para ressaltar o modo como o sistema político brasileiro tem funcionado desde a redemocratização, eu diria que passamos por períodos de hiper presidencialismo de coalizão, presidencialismo de cooptação; um quasi semipresidencialismo; momentos de supremocracia e neste momento uma ascensão do parlamento, que não seria um problema, se o parlamento brasileiro estivesse submetido a regras mais claras de responsabilidade política, o que não ocorre. Então temos um processo de empoderamento do legislativo sem a correspondente capacidade de controle e responsabilização desse poder.