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Jurisdições especiais: o caso das cidades privadas

Sob um bom arranjo destes seis pilares, uma cidade privada pode ser um poderoso instrumento para o desenvolvimento econômico

Blumenau: cidade é parte do Polo de Tecnologia da Informação de Santa Catarina (SandroSalomon/Thinkstock)
Claudio D. Shikida

Colunista - Instituto Millenium

Publicado em 28 de agosto de 2023 às 13h19.

Hermann Bruno Otto Blumenau ou, apenas Hermann Blumenau, é conhecido como o fundador da colônia de Blumenau, em Santa Catarina. Oficialmente, sua fundação data de 02 de setembro de 1850, mas o próprio fundador considerava 28 de agosto de 1852, pois foi nesta data que distribuiu os primeiros lotes de terra, conforme informa-nos Mariana Deschamps, em sua dissertação de mestrado sobre a vida cotidiana dos colonos desta famosa cidade.

Neste mesmo trabalho aprendemos que, inicialmente, Blumenau apresentou o projeto da colônia à Assembléia Legislativa do estado em nome da alemã Companhia Protetora dos Emigrados Alemães de Hamburgo. Enquanto aguardava a aprovação (que não veio, mesmo com o pagamento de propinas), o empreendedor comprou terras e conseguiu algumas por doações do governo ao qual, aliás, nunca deixou de pedir (e de receber) algum auxílio.

A colônia existiu sob sua gestão por cerca de 10 anos. Sua população aumentou em cinco anos, mas, a partir de 1855, a situação econômica deteriorou-se por conta de chuvas e enchentes. Em 1860, o governo brasileiro comprou e passou a gerenciar a colônia, mantendo Blumenau com funções administrativas: o empresário transformou-se em um servidor público.

O resumo dos primeiros anos de Blumenau não é um caso isolado na história. Como nos lembra o recente relatório do Banco Mundial editado por Yuei Li e Martin Rama, Private Cities: Outstanding Examples from Developing Countries and Their Implications for Urban Policy. Urban Development Series , cidades privadas um tipo de jurisdição que sociedades podem usar para gerar desenvolvimento urbano e, claro, socioeconômico.

Um dos produtos deste relatório é a proposta de um protocolo de política urbana para estas cidades, composto de 6 itens: (1) potencial locacional; (2) papel dos atores privados; (3) funções governamentais; (4) captura do valor da terra; (5) incentivos e regulações; (6) cumprimento dos contratos. Vejamos cada um deles.

Colônias como Blumenau não parecem ter sido fundadas com base no potencial locacional. Visava-se proteger o território, principalmente de ataques de indígenas e o incentivo para trazer colonos, para as empresas, eram os descontos nas tarifas de ancoragem nos portos brasileiros. Entretanto, a localização de uma nova cidade não prescinde de infraestrutura, cidades próximas, potencial de turismo ou mesmo da existência de recursos naturais ( e.g., minérios).

A atuação dos atores privados consiste em sua capacidade de atuar na criação e/ou manutenção de infra-estrutura da nova cidade. Quanto mais eficiente, relativamente à ação governamental, maior deveria ser o seu papel na gestão da cidade. Por exemplo, um estudo de 1993, dos economistas De Long e Shleifer, mostrou que, antes da Revolução Industrial, cidades europeias governadas por comerciantes foram mais prósperas que as governadas por príncipes.

Quanto às funções do governo, elas não deveriam ser a de socorrer empreendedores malsucedidos como Blumenau. O governo deve vencer o espírito hesitocrático , ser ágil e eficiente. A chave está em uma honesta avaliação sobre quem tem vantagem comparativa em certa atividade essencial ao desenvolvimento urbano: o governo ou o setor privado?

A propósito, o arranjo público-privado está inevitavelmente ligado aos três últimos itens do protocolo. Primeiramente, o relatório nos dá vários exemplos de como a ‘captura’ do valor da terra pode ocorrer em cidades privadas e seu desenho é função direta do alinhamento dos interesses entre os diversos agentes governamentais (burocratas, políticos, poder judiciário) e privados. Trata-se de uma parceria público-privada que deve se basear em algum critério de custo-benefício social no qual a sociedade, obviamente, tenha ganhos líquidos.

Além disso, o texto de Li e Rama parece imputar ao setor privado a maior parte da culpa das externalidades, aumentando a demanda por regulações. Ora, o leitor que compartilha comigo o orgulho e o fardo de ser brasileiro está acostumado com as notícias sobre o descumprimento de legislações ambientais ou sociais por parte do poder público. Sim, a regulação criada pelo setor público pode gerar externalidades. A moderna Economia Política nos lembra que não existem apenas falhas de mercado, mas também de governo. Estas últimas, muitas vezes, causam as primeiras ( e.g. leis que criam privilégios).

Quanto ao cumprimento de contratos, o relatório se aproxima da solução proposta por Paul Romer, especificamente de sua ideia de charter cities. Neste tipo de cidade – que pode ou não ser privada – há a adoção de um código legal diferente do vigente no país. A ideia é que isto valeria a pena se, comparado com a lei do país na solução de disputas, seu benefício-custo fosse maior. De forma mais branda, Li e Rama falam no envolvimento de ‘parceiros estrangeiros’ que podem ser, inclusive, instituições multinacionais que bem podem ser o próprio Banco Mundial, o FMI etc.

Sob um bom arranjo destes seis pilares, uma cidade privada pode ser um poderoso instrumento para o desenvolvimento econômico. Simples? Talvez. Fácil? Não, mas vale a pena.

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Hermann Bruno Otto Blumenau ou, apenas Hermann Blumenau, é conhecido como o fundador da colônia de Blumenau, em Santa Catarina. Oficialmente, sua fundação data de 02 de setembro de 1850, mas o próprio fundador considerava 28 de agosto de 1852, pois foi nesta data que distribuiu os primeiros lotes de terra, conforme informa-nos Mariana Deschamps, em sua dissertação de mestrado sobre a vida cotidiana dos colonos desta famosa cidade.

Neste mesmo trabalho aprendemos que, inicialmente, Blumenau apresentou o projeto da colônia à Assembléia Legislativa do estado em nome da alemã Companhia Protetora dos Emigrados Alemães de Hamburgo. Enquanto aguardava a aprovação (que não veio, mesmo com o pagamento de propinas), o empreendedor comprou terras e conseguiu algumas por doações do governo ao qual, aliás, nunca deixou de pedir (e de receber) algum auxílio.

A colônia existiu sob sua gestão por cerca de 10 anos. Sua população aumentou em cinco anos, mas, a partir de 1855, a situação econômica deteriorou-se por conta de chuvas e enchentes. Em 1860, o governo brasileiro comprou e passou a gerenciar a colônia, mantendo Blumenau com funções administrativas: o empresário transformou-se em um servidor público.

O resumo dos primeiros anos de Blumenau não é um caso isolado na história. Como nos lembra o recente relatório do Banco Mundial editado por Yuei Li e Martin Rama, Private Cities: Outstanding Examples from Developing Countries and Their Implications for Urban Policy. Urban Development Series , cidades privadas um tipo de jurisdição que sociedades podem usar para gerar desenvolvimento urbano e, claro, socioeconômico.

Um dos produtos deste relatório é a proposta de um protocolo de política urbana para estas cidades, composto de 6 itens: (1) potencial locacional; (2) papel dos atores privados; (3) funções governamentais; (4) captura do valor da terra; (5) incentivos e regulações; (6) cumprimento dos contratos. Vejamos cada um deles.

Colônias como Blumenau não parecem ter sido fundadas com base no potencial locacional. Visava-se proteger o território, principalmente de ataques de indígenas e o incentivo para trazer colonos, para as empresas, eram os descontos nas tarifas de ancoragem nos portos brasileiros. Entretanto, a localização de uma nova cidade não prescinde de infraestrutura, cidades próximas, potencial de turismo ou mesmo da existência de recursos naturais ( e.g., minérios).

A atuação dos atores privados consiste em sua capacidade de atuar na criação e/ou manutenção de infra-estrutura da nova cidade. Quanto mais eficiente, relativamente à ação governamental, maior deveria ser o seu papel na gestão da cidade. Por exemplo, um estudo de 1993, dos economistas De Long e Shleifer, mostrou que, antes da Revolução Industrial, cidades europeias governadas por comerciantes foram mais prósperas que as governadas por príncipes.

Quanto às funções do governo, elas não deveriam ser a de socorrer empreendedores malsucedidos como Blumenau. O governo deve vencer o espírito hesitocrático , ser ágil e eficiente. A chave está em uma honesta avaliação sobre quem tem vantagem comparativa em certa atividade essencial ao desenvolvimento urbano: o governo ou o setor privado?

A propósito, o arranjo público-privado está inevitavelmente ligado aos três últimos itens do protocolo. Primeiramente, o relatório nos dá vários exemplos de como a ‘captura’ do valor da terra pode ocorrer em cidades privadas e seu desenho é função direta do alinhamento dos interesses entre os diversos agentes governamentais (burocratas, políticos, poder judiciário) e privados. Trata-se de uma parceria público-privada que deve se basear em algum critério de custo-benefício social no qual a sociedade, obviamente, tenha ganhos líquidos.

Além disso, o texto de Li e Rama parece imputar ao setor privado a maior parte da culpa das externalidades, aumentando a demanda por regulações. Ora, o leitor que compartilha comigo o orgulho e o fardo de ser brasileiro está acostumado com as notícias sobre o descumprimento de legislações ambientais ou sociais por parte do poder público. Sim, a regulação criada pelo setor público pode gerar externalidades. A moderna Economia Política nos lembra que não existem apenas falhas de mercado, mas também de governo. Estas últimas, muitas vezes, causam as primeiras ( e.g. leis que criam privilégios).

Quanto ao cumprimento de contratos, o relatório se aproxima da solução proposta por Paul Romer, especificamente de sua ideia de charter cities. Neste tipo de cidade – que pode ou não ser privada – há a adoção de um código legal diferente do vigente no país. A ideia é que isto valeria a pena se, comparado com a lei do país na solução de disputas, seu benefício-custo fosse maior. De forma mais branda, Li e Rama falam no envolvimento de ‘parceiros estrangeiros’ que podem ser, inclusive, instituições multinacionais que bem podem ser o próprio Banco Mundial, o FMI etc.

Sob um bom arranjo destes seis pilares, uma cidade privada pode ser um poderoso instrumento para o desenvolvimento econômico. Simples? Talvez. Fácil? Não, mas vale a pena.

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