João Mauad: O Dia de Ação de Graças e a Tragédia dos Comuns
"O direito de propriedade é também, e acima de tudo, a melhor arma contra a barbárie", destaca Mauad
Publicado em 22 de novembro de 2018 às, 11h13.
* Por João Luiz Mauad
Os americanos comemoram, nesta quinta-feira, o Dia de Ação de Graças (Thanksgiving Day), um dos feriados mais importantes do calendário deles. É o dia em que as pessoas, independentemente de religião, se reúnem para agradecer a fartura e a prosperidade. Pode-se dizer que é um feriado tipicamente capitalista. Há anos, neste dia, gosto de contar uma história interessantíssima, mas que, infelizmente, muito pouca gente conhece.
Segundo a história oficial (politicamente correta) do primeiro dia de Ação de Graças (1621), os peregrinos da Colônia Playmouth estavam morrendo porque não podiam cultivar alimento suficiente. Então, os índios bonzinhos vieram e ensinaram-lhes alguns truques e técnicas para ajudar em suas plantações. Com esse novo conhecimento, os peregrinos tiveram uma colheita abundante e compartilharam uma grande festa com seus novos amigos indígenas.
Trata-se de um conto de fadas, evidentemente, uma coleção higienizada de meias verdades, que desviam a atenção da verdadeira história dos primeiros colonos europeus da América do Norte. A Plymouth Colony foi estabelecida onde hoje é o estado de Massachussets, no ano de 1620. Numa experiência inédita até então, um contrato coletivo, assinado pelos peregrinos desembarcados do navio Mayflower, antes mesmo de sua chegada ao Novo Mundo, estabelecia um sistema no qual as propriedades seriam todas comuns. Além disso, toda a produção deveria ser entregue para armazenamento comunitário, do qual cada indivíduo receberia uma fração igual, não importando com quanto contribuísse. “De cada um segundo a sua capacidade, para cada um segundo a sua necessidade”, como diriam os socialistas.
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Não por acaso, a produção na Plymouth era insuficiente até mesmo para as necessidades da própria gente. Faltava comida, embora sobrasse ócio e acomodação. A insensatez coletivista levou rapidamente a economia da colônia à penúria. Em 1622, apenas dois anos após a chegada dos primeiros Pilgrims àquela colônia, a fome era desesperadora. William Bradford, que viria a ser governador da província por vários anos, assim descreveu aquele triste momento da história americana em seu famoso diário:
“A experiência que se teve neste curso e condição comuns, experimentada por alguns anos entre os homens piedosos e sóbrios, pode muito bem evidenciar a vilania daquele conceito de Platão e outros anciãos aplaudidos por muitos nos últimos tempos; que retirar a propriedade e trazê-la para uma comunidade os faria felizes e prósperos; como se fossem mais sábios que Deus. Pois descobriu-se que esta propriedade comum criava muita confusão e descontentamento, e retardava muito o emprego que teria sido dado para seu benefício e conforto. Para os jovens, que eram mais capazes e aptos para o trabalho e serviço, repetia-se que eles deveriam gastar seu tempo e força para trabalhar para as esposas e filhos de outros homens, sem qualquer recompensa. O forte … não tinha mais na divisão de alimentos e roupas do que aquele que era fraco e incapaz de fazer um quarto do que ele fazia; isso foi considerado injustiça… E porque as esposas dos homens eram obrigadas a servir a outros homens, como cozinhar sua carne, lavar suas roupas, etc., elas consideravam isso uma espécie de escravidão, e muitos maridos também não podiam tolerar esta situação…”
Segundo Bradford, os homens preferiam roubar comida. Ele diz que a colônia estava cheia de “corrupção”, “confusão e descontentamento”. As colheitas eram pequenas porque “muita coisa era roubada tanto de dia como de noite”. Nas festas da colheita de 1621 e 1622, “todos tiveram suas barrigas famintas cheias”, mas apenas brevemente. A condição predominante durante esses anos não era a abundância que a história oficial afirma, mas a fome e a morte. O primeiro “Dia de Ação de Graças” não foi tanto uma celebração, mas a última refeição de mendigos.
Encurralada pelas terríveis circunstâncias, a liderança dos colonos resolveu abolir a estrutura socialista que engessava qualquer possibilidade de progresso, transferindo para cada família uma parcela das terras, e permitindo o usufruto de tudo quanto seu trabalho produzisse. A eliminação da propriedade comunal em favor da propriedade privada logo mudou o panorama. Os colonos rapidamente começaram a produzir muito mais do que eles mesmos poderiam consumir. Em seu diário, Bradford assim descreveu aquele momento:
“Então começaram a pensar em como poderiam colher tanto milho quanto conseguissem e obter uma safra melhor do que tinham feito, para que não definhassem na miséria. Por fim, depois de muito debate sobre as coisas, o governador (com o conselho dos mais importantes entre eles) deu lugar a que eles colocassem cada homem em seu próprio particular e, a esse respeito, confiassem em si mesmos; em todas as outras continuariam da maneira geral como antes. E assim atribuiu a cada família uma parcela de terra, de acordo com a proporção de seu número, apenas para uso atual (mas sem divisão por herança)… O sucesso dessas decisões foi imediato, pois tornou todas as mãos muito laboriosas, Assim, muito mais milho foi plantado do que de outra forma teria sido…, e poupou-lhes uma grande quantidade de problemas… As mulheres, que antes alegariam fraqueza e incapacidade, agora foram voluntariamente para o campo e levaram seus pequeninos para plantar milho…”
Como ensinara Aristóteles 2000 anos antes, “aquilo que é comum ao maior número despertará sobre si os menores cuidados”. Na esteira da grande sabedoria do filósofo estagirita, e de acordo com a moderna teoria dos incentivos, os bons economistas ensinam que, quando as pessoas obtêm o mesmo retorno, não importa o esforço que precisem fazer, a maioria optará pelo empenho mínimo. Mesmo economistas não liberais, como John Maynard Keynes, reconhecem que a propriedade privada é um componente institucional primordial para a prosperidade econômica. Segundo Keynes, “A relação entre cada homem e os frutos do seu trabalho é muito forte … “seu” e “meu” são expressões comuns em todas as línguas, familiares entre os selvagens e entendidas mesmo pelas crianças”.
Talvez a principal virtude da propriedade privada seja justamente estabelecer a conexão entre esforços e ganhos, custos e benefícios, criando incentivos para que as pessoas produzam de acordo com as suas necessidades e ambições. Porém, o direito de propriedade é também, e acima de tudo, a melhor arma contra a barbárie – a garantia de que o pão obtido com o suor do próprio rosto não será tomado de ninguém arbitrariamente.
* João Luiz Mauad é administrador de empresas formado pela Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (EBAP/FGV-RJ), João Luiz Mauad é articulista dos jornais “O Globo” e “Diário do Comércio”. Escreve regularmente para o site do Instituto Liberal.