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IVA brasileiro promulgado: muito melhor do que o politicamente possível

A realidade dos últimos 40 anos não tem sido fácil para os empresários

Praça dos Três Poderes, em Brasília (Getty/Getty Images)
Praça dos Três Poderes, em Brasília (Getty/Getty Images)

Meu ex-chefe, o admirável ex-ministro Pedro Malan, nos anos 2000, nos alertava quão perigosa era a frase “foi o politicamente possível para a aprovação da lei”. Esse aviso ele repetiu no livro A arte da política econômica, organizado por José A. Fernandes. Em alguns casos, dizia ele, era melhor não aprovar lei alguma. Como de hábito, ele tinha razão. É o caso do PL 11.247/18 (energia eólica), aprovado na Câmara, com inclusões de artigos que, se não forem revertidos na volta ao Senado, serão danosos para o país. Não foi, entretanto, o caso da PEC 45 ou, depois de promulgada em 20/12, da Emenda Constitucional 132. Esta será revolucionária. 

O texto final não foi o tecnicamente mais adequado. Poder-se-ia ter o melhor sistema tributário do mundo. Perdeu-se, destarte, depois de 30 anos de discussão, uma oportunidade de gerarmos um sistema mais eficiente, com menos privilégios e mais justo, sem exceções e com progressividade. Ainda assim, o tal “politicamente possível” permitirá que o Brasil tenha o melhor modelo do mundo, ao lado de 174 países, e muito melhor do que o status quo. 

O que poderia ter melhorado? Primeiro, a cesta básica. Em um tributo regressivo, como é o do consumo, para torná-lo mais progressivo, bastaria onerar a cesta básica para o valor da alíquota-padrão e devolver o imposto (cashback) para os mais desfavorecidos. Foi, aliás, o que ocorreu com EE e GLP, com a inclusão do cashback. Por que dar desconto para o rico comer arroz, feijão e ovo? Segundo, dar desconto para o rico consumir educação e saúde, considerando que o vulnerável usa o SUS e vai à escola pública. Num país em que 70% dos trabalhadores formais ganham menos de dois salários-mínimos, esta é uma política pública que não mira na diminuição da desigualdade. 

Há outros maus exemplos nas três formas de exceções: nos regimes favorecidos (ZFM, áreas de livre comércio, simples nacional e biocombustíveis), nos regimes diferenciados (onde há reduções de alíquotas para 0%, 40% e 70%) e nos regimes específicos (onde não necessariamente haverá redução de alíquotas, mas onde não se pode tributar pelo IVA). Além disso, o subsídio ao setor automotivo, que existe há 70 anos, foi mantido. Viva o rico e a idosa indústria nascente. Mais uma vez! 

Um bom ponto foi a inclusão da revisão quinquenal dos incentivos, mas lástima que esta se restringiu apenas ao regime diferenciado (art. 9º, par. 10). Deveria ter abarcado todos os incentivos, em artigo à parte. Seria a chance de o Brasil ter o melhor sistema do mundo e mostrar que benesses temporárias não são permanentes, como de costume! 

A realidade dos últimos 40 anos não tem sido fácil para os empresários. Com um sistema complexo e cumulativo, eles se deparam com mais de 5600 leis, portarias, regulamentos, decretos e resoluções. Somente em um estado, além das diversas leis sobre o ISS, o contribuinte tem que entender mais de 1,5 mil páginas de normas sobre o ICMS, que mudam frequentemente e que podem ter interpretações distintas entre auditores, advogados e contadores. Imagina ter unidades produtivas em mais estados? O tempo e dinheiro gastos com atividades improdutivas é descomunal. Além disso, mesmo com a garantia de devolução sobre créditos, é comum os tesouros não devolverem. Os litígios sobre ISS x ICMS e sobre direitos de crédito (pois a base não é ampla) inundam os CARFs dos 3 entes federativos. 

Mais ainda. Com o tributo recolhido na origem, a guerra-fiscal entre os estados faz o Brasil brigar consigo mesmo (em vez de disputar com o mundo). Com isso, todos os entes copiam os benefícios fiscais dos vizinhos, a competitividade entre as empresas segue a mesma, os caixas estaduais esvaziam, a crise orçamentária se instala e a União, com situação fiscal frágil, socorre. Cenário improdutivo, onde empresas escolhem os locais para se instalarem ou se verticalizarão por questões tributárias e não por razão econômica. Tributar na origem, logo, gera alocações ineficientes dos recursos escassos. 

Toda essa confusão, todavia, acaba com o IVA brasileiro, com uma legislação única para todos! É por isso que esta reforma tem potencial de aumentar a produtividade e o crescimento do PIB. Não é mera hipótese. É indubitável que a simplificação, a desburocratização e a transparência diminuirão o “gap de conformidade”: sonegação, elisão fiscal, inadimplência e judicialização. Estudos acadêmicos mostram que países que adotaram o IVA (como Índia, Austrália e Canadá) tiveram efeitos positivos sobre a economia, corroborando as pesquisas feitas em equilíbrio-geral para o Brasil (EPGE/FGV Rio e UFMG). Se não fosse assim, a S&P não teria aumentado o rating Brasil pontuando a reforma do IVA brasileiro como um fator preponderante, tema também citado como fundamental por Clare Lombardelli, economista-chefe da OCDE. 

Claro que, dadas as incertezas sobre a atual tributação (qual é o imposto na compra de uma TV?), as estimativas de crescimento de PIB são igualmente incertas. Todas, contudo, vão na mesma direção: melhora no ambiente de negócios, na produtividade e no crescimento do PIB. 

Os desafios agora são dois. Um, concerne à transição para contribuinte, que vai de 2026 a 2032. É possível que até lá o “gap de conformidade” aumente, pela coexistência de dois regimes. O importante, porém, é saber que este caos tributário findará. O outro desafio diz respeito à regulamentação do IVA brasileiro, em forma de leis ordinárias e complementares. 

O governo tem 180 dias para encaminhá-las ao parlamento. Há que normatizar o funcionamento do IVA e do cashback, escolher alíquotas e definir os itens dos três tipos de exceções, que inclui os relativos ao IPI-ZFM, e da cesta básica. Há também que definir os itens que comporão o imposto seletivo, assim como suas alíquotas. Por último, há que regular o comitê gestor do IBS e os quatro fundos.

Sabe-se que os lobbies voltarão a Brasília em 2024 para garantirem seus benefícios. É uma pena que o Brasil seja o país do"jeitinho". Como este tributa muito (34% do PIB) e oferece péssimos serviços públicos, a população “tem gritado” para pagar menos tributo. Assim, espera-se que ditos grupos não tenham sucesso em seus pleitos. 

Com esta revolução no sistema tributário, assim, em que o politicamente possível gerou um marco muitíssimo melhor do que o status quo, cada cidadão, mais consciente de quanto paga, poderá reivindicar por uma redução tributária, que terá que ser acompanhada por uma ampla revisão dos gastos públicos e por uma reforma administrativa. Vamos para a próxima reforma?