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Ignore as stablecoins por sua conta e risco

A tecnologia se consolida como a ponte entre o universo financeiro tradicional e a nova economia digital

 (Future of Money/Reprodução)

(Future of Money/Reprodução)

Publicado em 6 de outubro de 2025 às 21h37.

Quem acompanha o mercado de criptoativos de perto aprende a filtrar o ruído. Em meio à volatilidade, percebemos que alguns fenômenos se destacam como pontos de inflexão, momentos que redefinem o jogo. As stablecoins representam exatamente um desses momentos. Não por acaso, o Citi descreveu o cenário atual como o “momento ChatGPT” do blockchain. A analogia faz todo o sentido. Uma tecnologia que se desenvolveu por anos nos bastidores de repente explode em relevância, parecendo surgir do nada para quem não estava prestando atenção.

Para entender essa transformação, preciso que você esqueça por um instante a imagem de criptomoedas voláteis. As stablecoins são uma criatura diferente. Pense nela como uma ficha de cassino digital. Você entrega um dólar no caixa e recebe uma ficha que vale exatamente um dólar. Com ela, você pode transacionar livremente dentro daquele ambiente e, ao final, trocá-la de volta pelo seu dólar original. A lógica por trás das stablecoins mais robustas, como USDC e USDT, é similar. Para cada token digital emitido, a empresa responsável mantém um dólar real, ou um ativo de liquidez equivalente, em suas reservas. Elas se consolidaram como a ponte entre o universo financeiro tradicional e a nova economia digital.

A Ficha de Cassino da Economia Digital

Inicialmente, seu propósito era pragmático, servindo como um porto seguro para traders que buscavam proteção da volatilidade sem sair do ecossistema cripto. Essa função de nicho, porém, foi apenas o ponto de partida. Hoje, o mercado de stablecoins já superou a marca de 300 bilhões de dólares em capitalização. O mesmo relatório do Citi projeta que esse valor pode alcançar 1,9 trilhão de dólares até 2030. Um crescimento dessa magnitude não acontece por acaso. Ele é impulsionado por uma mudança significativa na percepção de seu uso.

O gatilho para essa mudança foi a chegada da legitimidade. A aprovação de marcos regulatórios, como o GENIUS Act nos Estados Unidos, dissolveu a névoa de incerteza que mantinha as grandes instituições à distância. Como resultado, gigantes como a Visa anunciaram programas piloto para usar stablecoins em pagamentos internacionais. A lógica é simples e poderosa. Uma empresa pode liquidar transações globais de forma quase instantânea, 24 horas por dia, com custos dramaticamente menores, liberando capital que antes ficava ocioso. O e-mail tornou a comunicação global e instantânea. Agora a blockchain pode fazer o mesmo com o dinheiro.

O Carimbo que Destravou o Mercado

Aqui no Brasil, observamos um movimento parecido do nosso Banco Central. Com a recente consulta pública sobre as operações de câmbio digitais, a autoridade monetária sinaliza que as transações com stablecoins deixarão de operar em uma “zona cinzenta”. Elas serão equiparadas a operações de câmbio formais. Essa formalização, é claro, impõe um custo de conformidade e transparência que antes não existia. Não é o cenário ideal para uma inovação que nasceu para ser ágil e descentralizada. Contudo, é essa estrutura que, na prática, funciona como a chave para destravar a confiança do grande público e viabilizar sua popularização em larga escala.

Essa integração abre portas para inovações que vão muito além dos pagamentos. Estamos vendo o surgimento das yield-bearing stablecoins, que geram rendimentos aos seus detentores, e a expansão da tokenização de ativos do mundo real (RWA). Imagine comprar uma fração de um título do Tesouro americano ou de um imóvel com a facilidade de quem envia uma mensagem. Instituições como Goldman Sachs e BNY Mellon já exploram esse universo, e uma pesquisa da EY revelou que mais da metade das grandes empresas planeja adotar stablecoins em breve.

O impacto dessa transformação já reverbera nos mercados mais tradicionais. A Tether, emissora da maior stablecoin do mundo, tornou-se uma das maiores compradoras de títulos de curto prazo do Tesouro americano. Pense no significado disso. Uma empresa do universo cripto agora exerce influência direta sobre as taxas de juros da maior economia do mundo. As fronteiras entre o sistema financeiro digital e o tradicional estão se dissolvendo mais rápido do que muitos imaginam.

As Fronteiras Começam a Desaparecer

Essa evolução tem, inclusive, uma dimensão geopolítica. Enquanto a China avança com sua moeda digital estatal, uma ferramenta de controle centralizado, os Estados Unidos parecem ter adotado uma estratégia diferente. Ao criar um ambiente regulatório claro para stablecoins privadas lastreadas em dólar, eles reforçam a hegemonia de sua moeda na era digital. É uma forma de projetar poderio financeiro através da inovação do setor privado, um contraponto claro ao modelo chinês.

Estamos, sem dúvida, em um momento que lembra a internet nos anos 90, como bem pontuou um ex-executivo da Paxos. Serviços como AOL e Netscape dominavam a paisagem, mas a revolução de verdade ainda estava por vir. É possível que a stablecoin dominante do futuro ainda nem tenha sido criada. A experiência do usuário ainda precisa melhorar muito. Contudo, a direção está clara. A transformação do dinheiro como o conhecemos já começou. O que antes era um instrumento de nicho para especuladores está se tornando a infraestrutura invisível que pode remodelar a forma como pagamos, investimos e transferimos valor globalmente.